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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tratado Sobre Doutorado, Escuta e Loucura

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

07/08/2022 06h00

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Só reclamo porque tudo o que mais eu quis fazer mãe não consentiu. Vixi, será mesmo? Quanta coisa sua mãe nem tomou conhecimento e mesmo assim você fez? Era uma sessão de terapia coletiva, "esse rendado se bem volteado vai longe viu? Vai dar num doutorado". Na hora eu entumeci, me virei do avesso, fiquei feito bomba, pronta para explodir, mas calei, enraivei e fingi paz, pra esperar a resposta do tempo e talvez desavessar. O fígado roía mais que de Prometeu corroído pela ave, Gaiarsa fala que o que a gente guarda nem morre e nem deixa de existir, vira assombração ou coisa do mau dito de gente ressecada feito a caatinga como reforça Seu Rosa.

Ah seu moço, minha vida já deram volta, sabe? Aguardei em silêncio uma defesa sobre mãe, toda terapia é pra falar mal da mãe ou justificar a falta dela, era meu ego gritando e querendo consolo, não aconteceu. Eu arranjei mais um problema, um caroço, um grão de areia mental, dele eu faria uma pérola, o mediador ali deu uma posição que só me deixou mais desconfortável, pois o que eu mais gosto é de estar certa, ter razão, sabe? É da minha natureza.

- É da lei da natureza que a dívida anoiteça e amanheça com o devedor, até que ele pague - disse ele - quando ouvimos algo que nos fere, cala fundo no nosso peito, fica batucando no coração, é preciso dar altar a esta mágoa, rezar, acender o lume e conformar.
- Pode ser que quem o disse não esteja errado, será?

Não gosto que se intrometam na minha vida, pensei, mas ali era uma terapia em grupo, os intrometimentos ali estavam liberados, era pra cada um cuidar de si e do outro, por isso me calei. O combinado não sai caro, é ou não é? Nos dias que se passaram não quis lembrar daquele assunto, mas ele me perseguia, cheguei a pensar em nem ir mais ali, o que eu estava fazendo ali? Lembrei, busquei uma terapia leve pra aplacar uma lapada que havia acabado de receber, botei o rabo entre as pernas e corri para me esconder feito um cãozinho perdido. Precisava resolver se seguiria só dali pra frente, se contaria pra família que meu segundo casamento precisava acabar, mas eles já haviam dito que não daria certo, nem era plano meu, era desejo delas que eu sucumbisse. Sentia vergonha que mais uma coisa nem dera certo comigo, me apavorava, me impedia de tomar qualquer atitude, minha vida estagnou, eu só iria ouvir risadas e o "bem-feito nós te avisamos". Como eu precisava de tempo, entrei pra bateria de uma escola de samba e me matriculei nessa oficina que se chamava Ria de Sí Mesmo, mas algo estava errado ali, tudo era babado, eu não saia dali rindo, era cada caso mais terrível que o outro, ali só dava lição de casa, coisa de travesseiro molhado, soluços e madrugadas abertas. O tropeço que levei me levou a confrontar coisas que eu sempre quis fazer e não fiz, como a promessa de conhecer o lugar onde nasce o samba, eu fui conhecer o esconderijo deles.

Bisa chamava o batuque de coisa do demônio, teve um tempo que até eu achei que fosse mesmo, lá na toca deles eu não gostei do que vi, fiquei quatro anos ali e saí. O teatro eu queria para fingir que tinha conhecimento, o exercício era toda quinta-feira de manhã, eu ainda seguia em terapia solitária e acompanhamento com o Dr. Ricardo, o psiquiatra, a risoterapia era por minha conta. Fui encaminhada a ele porque, de repente, meu rosto se encheu de manchas, mas manchas foi algo que tive a vida inteira, a psicóloga que me acompanhava me indicou um livro, O Corpo Fala, ela sabia que tinha algo que eu precisava dizer, dizia sobre a importância de falar sobre as dores que sentimos, mas eu não sentia dor, sentia vergonha. Hoje acho que vergonha também dói, parecia que todo mundo já sabia que algo ia muito errado na minha vida, algo estava morrendo e algo estava chegando, minha inocência estava sendo posta à prova, meu herói vinha galopando a qualquer momento, seu cavalo brabo escoiceava a cancela da minha segurança, as pessoas estavam me indicando livros, tudo o que sempre quis, eu já tinha o Povo Brasileiro, textos de MV Bill, Olhai os Lírios do Campo, O Vento Levou, Ópera do Malandro e agora O Corpo Fala, e escrevia em tábuas rasas este capítulo que escrevo agora, eu flutuava a todo momento.

Alguém me contava uma piada e eu ria por educação, mas entenderia dali a vários dias, o Dr Ricardo matou a pau.

- É a fluoxetina - disse ele - Por que você sendo uma pessoa tão inteligente deixa que te encham de venenos que você não precisa? Do que você se esconde?

O homem que eu nunca tinha visto, olha pra mim e já sabe que eu escondo algo, era assim tão visível? Eu buscava verdades e... Fui conhecer o Dr. Ajax, um outro psiquiatra tão moderno que andava de bicicleta e contava histórias da mitologia grega toda quinta-feira à tarde lá na biblioteca. Reunia pacientes do Caps que precisavam tomar remédio e nós que nos achávamos normais, eu saia de uma terapia e entrava na outra.

O que seria mitologia? E por que misturar tanto doido na mesma sala? Alguém perguntou. Para que uns ouvissem os outros, ele chamava isso de direito a escuta e respeito aos pontos de vista de cada um, ali, ao fim de algumas quintas, eu questionava sobre o que seria loucura afinal. Ele lia um trecho do conto e fazia uma pausa pra que cada um fizesse sua própria interpretação, eu ali entendi a arte de contar histórias que estavam em mim, eu ganhei ali a sabedoria de saber que quem ama carrega a lanterna e por isso é o primeiro a receber luz, foi uma cura de algum processo dentro de mim, a contadora de histórias acordou, quando tudo isso passar vou contar histórias, eu dizia.

Dr. Ajax me apresentou o Caeiro Heterônimo de Fernando Pessoa, aquela vontade de escrever que tentaram matar em mim lá na escola acordou forte, eu ficava feliz, eu estava triste, eu queria mesmo era um quarto remédio e razão nenhuma. O doutor me disse que talvez uma outra mitologia me encaixasse melhor, e saí de lá com menos dois calmantes, a Fluoxetina e o Valium. Fiquei ainda com Lexotan, sabe como é este foi minha mãe que introduziu na minha vida, eu não queria olhar pra mim, mais iria ter que me ver, pra isso teria que jogar muita coisa fora.

A escrita vinha a galope, ela queria sair de dentro de mim se estabelecer cá fora a qualquer custo, lutei contra ela, fiquei assim por meses até que algo muito grave aconteceu. Em setembro daquele mesmo ano, Tiana iniciou estágio no Hospital Mandaqui, iniciou também com uma tosse que não terminava, era tuberculose. Eu conhecia os sintomas, trabalhei muitos anos na pneumo do mesmo hospital e tive a doença, e uma vez que eu tive, quem conviveu comigo, tem o bacilo e ele pode acordar a qualquer momento. Levava ela no médico e afirmava que era tuberculose, o ego dos médicos que encontrei não dava atenção porque eu já tinha o diagnóstico fechado, uma mulher negra de periferia entender de uma doença tão grave era um insulto. Foram quatro meses tentando, ela emagrecendo a olhos vistos, e eu sofrendo pensando no tempo, que é fator principal de cura. Até que em janeiro tudo piorou, ela teve apendicite, foi um pesadelo com médicos que se sentiam estrela e não entendiam o perigo novamente, um deles disse: "Mãezinha, isso é dor de barriga, se cura em casa". O Dr. Manoel, médico da diálise, me ajudou, internou minha filha e a acompanhou como se fosse pai nosso. Ao internar, o outro doutor perguntou o porquê demorou tanto, achei melhor nem explicar, foram dois meses de UTI, morre não morre. O cavalo furou a cancela, tudo o que citei mais acima não tinha o menor valor, minha mãe estava ali lutando comigo, o pessoal da terapia me dando suporte, as amigas da hemodiálise ajudando no que podiam, e todo mundo torcendo pra que tudo terminasse bem, algo que não posso deixar de contar.

Eu estava ciente que seria muito difícil minha filha escapar, porque a tuberculose estava em grande parte do pulmão e apendicite, era uma patologia infecto contagiosa junto a uma infecção maior. Naquele dia, eu cresci e enfrentei, consegui vencer o medo e entrar na UTI, quando entrei, tinha uma mulher miúda aspirando ela, era tão pequenina que se apoiava num banquinho, ao me ver ela terminou o que estava fazendo, desceu do banquinho e veio me dar atenção.

- Deve ser a mãe dela com certeza, não se desespere, tenha fé, eu só sairei daqui quando ela melhorar, eu prometo.

Dizia isso segurando minhas mãos e pedindo paciência, ela estava comigo em luta, assim ela disse, assim eu senti.

- Sabemos de todo descaso que sofreram, da demora no pronto socorro, mas agora ela está em tratamento. E eu sigo com vocês até a melhora dela, só saio daqui pra ter meu filho.

Ela estava em dias de parir, a barriga enorme, no entanto arriscava sua vida pra salvar a nossa, aquela mulher me acendeu o sol das coisas impossíveis, minha pérola estava pronta, eu precisava fazer este doutorado sobre mim, sobre o que sei, sobre o que presumo apenas. No fim de tudo, tudo estava certo, e não, este era o marco da minha vida naquele momento.

Em casa, Leandro e Evandro gravavam conversas e músicas pra gente levar pra Tiana ouvir em coma e as tias se revezavam para visitá-la. Quando ela foi para a enfermaria, recebeu muitos presentes e todos eram de comer, eu vivi o tempo do Ataliba, o velho costume de dar comida como presente. Acho que foi ali que o Lexotan rodou, eu comprei um lindo vestido verde pra mim na Katimandu.

O ano era 2007, em 2008 eu entrei para estudar diáspora africana, voltei a dançar e comecei contar histórias. Já ri muito com minha mãe sobre este assunto dela me proibir as coisas.
- Mas quem disse isso, você nunca obedeceu a ninguém - disse ela.
Olhei de lado pra ver se a moça da terapia não estava por ali.