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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Respeite Quem Chegou Antes De Você

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

31/07/2022 06h00

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Lá em casa, em África, quando estamos em apuros nunca chamamos o nome de santos. Não existe nome mais forte que o nome de nossa mãe ou avó, que é uma forma tão maravilhosa de reconhecimento. É o mais antigo costume preservado de minha África, que também é mãe . A mãe é sagrada, então a terra é sagrada duas vezes ou mais. Só de estarmos vivos hoje, de termos sobrevivido às violências irreais e estarmos aqui a contar ou escrever nossa história, se dá ao fato de que a travessia e o banzo, suicídio e veneno não mataram nossos ancestrais. É por isso que estamos aqui.

As mulheres dedicam aos seus rebentos tanto amor que nunca acaba, nem depois que a gente morre . Em uma conversa interessante com um amigo da África me deixou assim, pensativa. É tanto amor que transcende a existência.
Exu, como a família é verdade!
Todos os dias o que aprendemos se renova. Levanto-me, fico de pé sobre a terra que me sustenta. Quem me ensinou os primeiros passos ? Ergo meus braços ao céu e agradeço. Iniciei levantando os bracinhos pra pedir colo, com certeza, e sigo até hoje.
Reconheço e agradeço.O que seria de mim sem esta rede de proteção e aprendizado?

Um dia, fiquei distante da força que rege o meu nome e, por um minuto na minha existência, quase me destruiu. Foi preciso me reconectar com a verdadeira força.
Exu, como a família é verdade!
Pois, eu até fiz um documentário recentemente falando sobre legado, coisas que aprendi e reproduzi. Deixo, mas também levo comigo. Todo dia, logo que acordo, escrevo minhas impressões sobre a noite passada numa mandala. Sou um objeto vivo de meus estudos, pois tudo o que sinto, o porquê sinto e se não sinto são registrados por mim. Só as escritas são novas, todo o resto já foi inventado: da cama ao papel que escrevo, tudo aí já foi criado.

Minha reflexão de hoje é sobre quem veio antes. Por que a maioria das pessoas mais velhas são abandonadas?
Por que nunca se dá o valor aos mestres?
Qual mundo queremos deixar para nossos herdeiros? Um lugar salutar possível ou isto que estamos destruindo ?
Se tudo continuar como está e seguirmos ignorando as pessoas mais velhas, é bom pensarmos que este será o nosso futuro.

Amanhã seremos nós por aí invisibilizados, como se nunca tivéssemos contribuído com nada, vivendo em asilos sombrios ou perambulando pelas ruas mendigando a vida. Será mesmo este o mundo novo que queremos? Não deveríamos estar cuidando deste território de nossas vidas para mantê- lo forte e acolhedor, para termos pra onde voltar depois da luta? Um dia, a gente vai à luta. É preciso, mas chega um dia que é preciso também voltar. Já dizia Rubem Alves: "Sigamos o exemplo da pipoca. Queremos ser pipoca ou piruá?"

Sou filha da Zona Norte
Exu me deu tanta sorte
Eu só quero agradecê.
Fio, teço, bordo,
Tempero, banho, curto, curo e cozinho
Qualquer lugar nem é perto
Não estou só, caminho certo.

A vida me mostrou que minha busca nunca seria em vão.
Tem amor e potência em tudo o que crio.
Em tudo o'que deito a mão,
Resta-me pouco a ajustar
Não quero ir sozinho
Considere este verso um caminho
Venha me visitar

Nem sempre me senti iluminada
São revezes da estrada
Já me enganei, já fui enganada.
E vendo de onde estou hoje
Cada qual tem sua sina
Obrigado
A quem cuidou desde menina ,
A quem acendeu meu sol
A quem puxou minha orelha
Axé a todo aquele que ilumina.

Esta felicidade que sinto não é vã
Os ipês estão se abrindo por toda Sezefredo Fagundes
O coentro nasceu
A taioba está acordando .
Os dias de sol pleno estão voltando.
Para chegar aos 100, já caminhei mais da metade e não sigo só.
E quem nunca anda só tem história pra contar.

Não é de hoje que ouvimos todo tipo delas.
Na minha infância contava-se muito uma história de um homem que, ao se casar, trouxe a esposa para casa de seu pai que já estava um tanto envelhecido. Com o tempo, a presença do velho já não era mais tão forte quanto fora no passado e tornou-se incômoda. A esposa reclamava muito, chegando ameaçar o homem com a separação caso ele não se livrasse do pai. Era costume naquela época, quando a velhice chegasse, levar a pessoa pra um lugar distante e deixá- la. Tem vezes que a própria tradição é contradição. Um dia, como era de costume, ele levou o pai pra morrer nalgum lugar. Saiu pela manhã com o velho, o filho pequeno e uma manta.
Chegando no lugar ermo escolhido, entregou a manta ao homem e virou-lhe as costas.
O filho puxou o casaco de seu pai pedindo-lhe metade da manta que entregara a seu avô. O pai disse ao filho que em casa tinha outra manta e que deixasse seu avô com a manta inteira. "Para que você quer a metade da manta?", perguntou.
"Meu pai, eu preciso de metade desta manta porque quando eu casar e for morar na sua casa com minha esposa. Vou precisar trazer o senhor pra morrer aqui e esta metade de manta que eu vou levar e dar pra o senhor", o filho respondeu.

Era um costume horrível. Eu sentia dó do velhinho, ele deveria voltar pra casa dele.
E aqui no Ataliba fazia muito frio. Depois, eu esquecia a história e a vida seguia, tinha meus próprios compromissos, como ir a escola, que era ruim. Uma senhora nos ensinava os hinos todos os dias, éramos punidos toda vez que errávamos algo que era importante pra ela. Hastear a bandeira, decorar os hinos da Marinha, do Exército, da Aeronáutica até cansar de lavar os banheiros, ser humilhado e ir pra casa. Ela dizia que de gente como nós nunca esperava nada. Uns iriam à guerra, os demais à morte e uns tantos ao cárcere. Os que sobrassem, o mercado trataria de dar fim.

Esta senhora dava aula de artes. Talvez ela desejasse que a gente fosse tão longe que sumisse das vistas dela. A sala de aula é algo muito distante daquela sala onde as mulheres se copiavam. Lembrar desta senhora e o que dizia sobre nossa cor de pele faz com que me falte o ar até hoje. Eu levaria ela pra morrer na montanha, sem dúvida. Mas, não foi só ela que cruzou meu caminho e que bom que existem professores e existem mestres. Porque, se tudo der certo, envelheceremos.

Quando eu era criança, minha bisa vivia nos visitando, indo e vindo como alguém que nunca tinha paradeiro. Era sempre frequente as brigas de quem deveria recebê- la. Uma mulher que teve 16 filhos e não conseguia se sentir acolhida na casa deles. Vindo pra casa da neta, que ela aceitava porque não tinha pra onde ir. A bisa era branca e queria ficar entre os seus, como não conseguia, ficava pirracenta e mal criada, como fica todo enjeitado. Foi uma péssima lição que presenciei. No entanto, como eu era muito jovem, não havia pensado nisso. Só penso agora, quando meus joelhos doem.

De sorte que consegui o pecúlio da aposentadoria, mas o governo vive nos ameaçando este direito. Como mestre em artes manuais, sofro o desprezo das estruturas institucionais que preferem sempre fazer novos grupos do que valorizar nosso mestrado. Já que artes manuais, como dizem os iludidos, "qualquer um faz".
Será mesmo que quem começou a bordar e tecer, hoje já sabe tudo, a ponto de desprezar quem os ensinou até agora? É preciso contar novas histórias, cuidando da terra e cuidando de quem nos ensinou, nos deu colo.

O exemplo dado é a maior maneira de ter o legado recontado e preservado.
Eu também errei no passado, estava muito ocupada sobrevivendo. Hoje, agradeço a Exu por ter minha mãezinha aqui do meu lado. Foi o estudo da diáspora que me mostrou este pensamento errado que eu tinha, de não atribuir valor às coisas simples e ensinadas por amor. Como foi triste pra mim voltar atrás e entender esta realidade.
Mesmo assim, foi através desta convivência que entendi de quem havia recebido este legado, embora de formas tortas. Acho que foi por isso que não chorei quando a bisa morreu, porque pouco se acrescentou em afeto.

Afinal de contas, o que há conosco? Por que temos a maldita mania de abandonar e ironizar as pessoas quando envelhecem, principalmente quando são mulheres? Este hábito não é novo, nem apenas capital. Agora que já falei aos jovens e comigo, vou perguntar: Você que está lendo pertence à alguma instituição que contrata ou não pessoas mais velhas? Sabe dizer o porquê?

Você que tece e borda, se lembra de quem te ensinou os primeiros pontos e nós, e dá visibilidade a esta mestra ou mestre? Você que faz abayomi, conta a história real e sabe que quem idealizou a bonequinha de nós foi Lena Martins, a mãe delas? Se não sabe, trate de saber e fazer a obrigação de dar crédito à sua criação. Não espere cair a casa, dê asas à imaginação e legitimidade a quem lhe ensinou a primeira lição.

"Mas quem és tu pra dar lição de moral a esta hora, senhora?", alguém perguntará.
Sou uma escritora com mais de 50 anos, que já sente a pontinha deste abandono. Uma herdeira de gente que tocava gado, eu toco com as palavras e com as mãos. Sinto que as pessoas estão espalhadas pra longe de si, e neste momento, eu monto na cela do meu cavalo e vou à luta. Pensei que seríamos chamadas a dar nossa contribuição nas artes manuais e nos fortaleceríamos juntas, após nossas perdas. Mas, o que estou vendo é que novos grupos surgiram sem nos levar em conta.

Se você é desta geração e se sente abandonada, vamos nos unir em causa própria, fazermos um espaço para valorizar e conservar nossa virtude. Termino parafraseando Rubem Alves quando diz que "adulto é como milho de pipoca velha: duro, difícil de estourar". Mas, nós queremos ser ainda milho que vira pelo avesso, não queremos ser este milho que não vira, chamado piruá.

Que orixá nos ajude a dar o primeiro passo para nos valorizar.