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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Verdades De Um Herói Diante Da Diáspora e o Zodíaco

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

24/07/2022 06h00

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Era uma noite qualquer, bisa bordava no sofá, as mulheres, três se copiavam sentadas no sofá. Eu olhava, os cães se acotovelavam no quintal, os gatos miavam nalgum lugar, o rádio rezava o horóscopo.
- Quem quiser que se fie nesta profecia, é tudo mentira parecida minha neta. Tempo é caro, estas coisas se dão certo pra alguém é lá para outras bandas viu. Aqui só o que conta é comida na mesa, barriga vazia é tristeza de verdade. Só Jesus salva e ajuda, mas o sol e a lua são certo.

Bisa era visita, chegava de repente e ocupava seu lugar, mandava na gente e na tv, depois se levantava dali e ia embora. E mandava com segurança.
- Areia bem esta caneca que quando eu for beber nela quero ver meu semblante na lata, feito espelho.
Toda noite era uma noite qualquer, no sofá da sala só tinha mulher. A bisa chuleava, as mulheres se copiavam no sofá, eu olhava. De mim pouco se exigia, eu pouco obedecia, bisa enxergava, muito com as mãos eu trabalhava de enfiar linha na agulha dela, e vivia na rua, caçava passarinho, empinava pipa, rodava pião, corria pra sala quando mãe estava pra chegar.
- Mas que chateação, toda noite a mesma cantilena a mesma expiação. Lavou o pé pra dormir caçula? Cuidado que o rameleiro te pega.
Era uma noite a passar na infância, a bisa guardava o balaio, as três mulheres copiavam o mesmo penteado e iam pra cama de bobe na cabeça e lenço amarrado, eu olhava. As luzes se apagavam e sombras surgiam na parede, eu tinha medo, mas com medo também se dorme, demora, mas o sono chega. O sol saia, a bisa vinha pra o sofá com o balaio, de dia só ela ocupava aquele lugar. Ela juntava tudo o que sobrou da janta, apoiava com farinha de mandioca e fazia um bolinho que chamava capitão. Das três mulheres, cada qual desfazia o penteado, deixava a bacia com os bobe de lado, e eu cuidava no papel de seda pra não amassar, pra fazer pipa. De novo tinha uma noite na vida de cada mulher, será que sonhavam?
A bisa fiava na agulha, elas fiavam em si, fustigavam as madeixas de caracóis, ficavam tão engraçadas com a cabeça cheias de rodelas, eu achava.
- Pra casá tem que se cuidá, tem que fica bonita.
Não, eu não me envolvia, gostava muito de só olhar, e só isto já me cansava, secava-me o olho.

Meu cabelo faz chover toda vez que mexem nele, mas uma vez a mãe ajeitou meu cabelo, vestiu-me de rosa, vestido, chapéu e meia, levou-me a igreja onde o padre Raimundo lavou-me a cabeça de novo, e naquele dia estava chovendo. Já de outra vez, mãe arrumou meu cabelo esticando com ferro quente para eu ir a um programa de TV, ficamos ali por muito tempo, ela puxando meu cabelo frito, dizia que neste mundo pra ficar bonito tem que sofrer. No dia seguinte, na hora de sair de casa, choveu. No desfile de 7 de setembro na Antonelo da Messina, choveu, eu estava de roupa branca, short vermelho e cabelo frito. Naquela noite foi diferente, a bisa se foi, a gente chorou.
As três mulheres se copiavam, eu fui dormir triste com o cabelo queimado, segundo as saias da minha casa toda mulher deveria sempre se arrumar e saber como conduzir uma casa, dividir a mistura, manter tudo nos conformes, cobrir os espelhos quando relampejava e nunca juntar faca e garfo na mesma gaveta, era obsceno. Para que ao chegar uma visita nunca a pegasse de surpresa, diziam que eu um dia eu haveria de ser como elas, uma mulher. Vai que na hora chove, eu ficava ali aos pés delas ouvindo e obedecendo às vezes, noutras mandando recado. Eu era ótima como moleque de recado e decorador de reza, mãe dizia que não me queria com filhos de fulano, ciclano e beltrano, mas eu ia lá sim. Ela tinha amigos que eu nem gostava também, mas a casa era delas e não vou dizer nomes pra não entornar o caldo. Mesmo porque agora na pandemia foram estas amizades que lhe valeram, mãe mudou bastante.

Eu trazia os meus somente da porta pra fora, minhas irmãs me faziam lembrar as irmãs daquela moça que perde o sapatinho, quando elas se arreliavam diziam que eu tinha vindo de uma lata de lixo, principalmente porque mãe me adulava, me dava sempre o bocado maior de doce, de manhã arrumava meu café e dizia que eu era bem amarelinha, eu bolinava nas coisas delas, nos cremes de cabelo, na brilhantina. Nem toda noite era a mesma coisa, ficava só as três mulheres que se copiavam, no dia seguinte, desenrolar, ficar bonita, trabalhar na feira. As mais jovens às vezes namoravam a mais velha também, será que não tinha nada mais legal pra fazer? A paixão vira a cabeça, a gente vira bicho. A todo momento a voz me dizia que eu deveria ouvir e guardar, eu achava que ia ter uma hora que não caberia mais muita coisa dentro de mim, dava vontade de perguntar se ninguém ali quisesse deixar os cabelos de lado e guardar história comigo. Tinha noite que luz nem tinha e mesmo assim, certeiramente, elas se copiavam, vez ou outra me pego copiando o jeito delas, querendo ter ficado de alguma forma parecida com elas em alguma coisa, no corpo, na vida. Ah como eu gostava de olhar os corpos nus delas, eu fiquei quase sem impressão delas feito um azulejo, sem memória, tanto que elas nem estão no Café de tanto que eu as anulei. Ontem, 18 de julho, foi o niver de uma delas, sessenta e tantos, o que ela fazia quando falou comigo nas felicitações? Enrolava bobe nos cabelos, antes de cortar o bolo, todo niver dela a mãe chora desde que meu irmão faleceu nesta data, isto está lá no Café, hoje nossa idade nem é tão longe, antes era mais.

Na missa de domingo eu era olheiro delas, mãe me incumbia deste serviço, viu? Quem manda ficar bonita. Mãe me botava pra olhar elas quando a gente saia pra missa, elas me pediam segredo, eu cobrava dinheiro delas pra resumir algum beijo ou abraço, não entender sabe? Mãe também nunca me pagava, se ela pagasse eu talvez tivesse sido mais fiel nos recados, às vezes eu dizia que nunca fui o que sempre quis porque a família nunca deixou, eu esqueci das coisas que fiz sem elas saberem, toda noite em que o sofá as agarrava. Muitas noites depois, cada qual seguiu seu destino, bisa foi ter com Deus, a religião separou as três, eu fui embora viver a minha vida. Depois que meu irmão morreu, minha mãe desgostou de festa, nunca mais deixou o cabelo crescer, e vira e mexe vai ao cemitério da Vila Formosa dizer a ele o que acontece no sofá da sala, depois volta pra casa pra brincar de ser forte, minhas irmãs seguram a barra, eu só observo.

Em 2016, o rádio disse isso de mim, a décima casa, e não o é por acaso. Casa sagrada escolhida por Deus como qualquer outra, posta ali pra ensinar os dons do trabalho e a humanidade. Guardar as memórias do mundo no fundo das cavernas, melhor lugar do Zodíaco, mas ninguém falou que seria fácil, tem grande resistência física, capacidade, senso de dever. É prudente, diplomata, não age intempestivamente, mantem o sangue frio, acha difícil demonstrar calor humano, porém é integro, parece austero no trato com os outros, embora este signo seja o signo da amizade por excelência. É justo e julga com imparcialidade, é ambicioso, quer o sucesso e trabalha para chegar lá. Tem força de vontade e é muito seguro de si mesmo, sendo assim, há que ser bem dirigido senão se torna vingativo e rancoroso.

Em anos pra trás, de quando eu estava escrevendo meu livro Café, tinha em mim um poço de mágoa delas, coisa de gente caçula, coisas de rituais ausentes, que eu me deitei com detalhes nas folhas. Uma mulher sábia me orientou numa roda de conversa
que ninguém escreva antes de 50 anos, meio século será suficiente pra que entenda a vida, o suficiente pra nunca mexer com o que vai adormecido como as dores alheias. Ninguém tem direito de acordar a dor que vai no outro, isto o horóscopo não disse, todo dia tem uma noite em seguida. A bisa agora está em nós, diluiu-se em memória, restaram ali duas mulheres que quase se copiavam, insuportavelmente, tentando fugir de si e continuar ali. Foi o nosso refúgio, e agora, nos finais de semana, o sofá da titia era ocupado pelas duas recém-chegadas que assistiam sua avó e sua tia cuidarem do cabelo na mesma sala onde eu vivi. Eu sabia oque deveria fazer, eu revi todo livro, reescrevi trecho por trecho, e pra isto retornei em pensamento a casa em que vivemos, eu retornei ao sofá. Quando o sonho de casar acabou, nada mudou, elas sempre muito bonitas eu cheia de terra, elas sempre fazendo planos pra o futuro e eu para o dia seguinte, elas já tão preocupadas com o amanhã e eu só queria saber se teria sol. Fico preocupada com este dever que Exu me deu em ser alguém tão correto, tão grande, diante do meu ponto de vista, receio não ter sido suficiente pra honrar a promessa, ao mesmo tempo reconheço minha parte ordinária, que pra mim, é a melhor, principalmente de ser moleque de recado, desbocado, arteiro, malcriado, empoeirado, mas cheio de poesia. Exu mandou Gonzaga dar-me um recado, Gonzaga perguntou: "Mas como ela só tem quatro anos?". Entre pelo rádio da mãe dela e crave se Exu no ndotolo dela e deixe o resto com o vento. Deixe as misturas que disto o tempo se encarregara, e o zodíaco estará a nosso favor, levará a ela os ímpetos do herói. Às vezes a cabeça é bagunçada, mas a vida se organiza, e sabe o que mais? Tropeçar também ajuda caminhar. Onde estava escondido o papel com regras de como criar uma pessoa da décima casa? Quem plantou este quiabo na roseira? Quem deitou a pipoca aos pés da terra? Quem filho da terra não erra na oração? Certo ou errado, o amor nos conduz a reproduzir muito daquilo que aprendemos, de sorte que fomos deixando algumas vilezas e violências que vão ficando pra trás, isso que importa. Toda vez que nosso herói bate a nossa porta e nos convida pra nova aventura, pra além do sofá da sala, o chão treme, e a gente segue pra salvar o mundo ou não. O espelho vai sempre conosco, ele sabe muito de cada um de nós, depois todo herói volta pra casa, sobre permanência e imanência.

E termino aqui, sentada no sofá de sempre, esperando que um filho me ligue, parafraseando Cortella, fomos felizes, nossos filhos serão?