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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mandamentos e exigências internas

Café com Dona Jacira - Victor Balde
Café com Dona Jacira Imagem: Victor Balde

10/07/2022 06h00

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Ainda este ano vou deixar minhas madeixas vermelhas feito fogo . Este é um dos mandamentos que quero cumprir para meu deleite. Eu me devo esta maldade vermelha. Quando eu estiver pensando em chegar no Ataliba, o vulto ensolarado dos caracóis de minha madeixas que gritem e anunciem minha chegada:

- Hei, cabelos opacos, estou chegando!

Dirão seus vizinhos: "Lá vem a filha de Maria". E desta vez não fará mais sentido virar o olho e dizer "aquela metida a escritora''.

Estou voltando com meu livro "Café" na axila, eu sou escritora, uma filósofa territorialista, faço fofoca. Dou um doce se adivinhares com quem aprendi.

- Que achas ?

- Tens mesmo coragem ?

- Se fizer isto, me esquece, pois já não basta. Não é pouco o que dizem de tu, daqui até a barra do pé de serra?

- Não me interessa o que dizem de mim - Retruco - Num dizem que aqui é o fim do mundo? Logo ,quem mora tão perto do fim, pode bem inventar um mundo novo.

O meu será colorido de vermelho. Apesar de dizerem que gente colorida não imprime seriedade, na prática mesmo tenho receio de padrões cinza e opaco.

Hoje me interesso mais pelo que diz quem me aceita. E o tanto que falam da gente aí pra fora da porta, por teu querer.

- Melhor pedir perdão que permissão.

- É inveja.

Vamos e convenhamos, fiquei órfã de pai antes de nascer, sofri tentativa de assassinato no convento, fui impedida de escrever na escola da igrejinha. A língua dessa gente, isso eu tiro de letra:

- O diabo tem cabelo vermelho, sabia?

- Curupira tem cabelo de fogo, eu gosto.

- Esquece isso de mudar o cabelo, tá muito frio pra inventar moda.

Vamos fazer uma viagem.

- Vamos à Juazeiro ver a festa de São João?

- Vixi? agora sou eu quem rejeito. Pra que ir tão longe sem conhecer ninguém lá?

Pra festejar é só acender uma fogueira, botar umas batatas doces pra assar e contar história. Fazer umas simpatias, esperar o sono chegar e ir dormir. De todo resto, os santos ou os astros se encarregam. Caso eu tivesse que ir a algum lugar, iria para um quilombo tipo Aparelha Luzia. Lá eu conheço gente, sou respeitada. Precisa ver quando chego na porta. É sair do carro e todo mundo olha, os olhos daquela gente brilham ao me ver chegar. Exu soprou na minha orelha a vida inteira que havia no mundo quem haveria de gostar de mim, apesar de mim. Era só dar o passo da elefanta e eu dei.

Assim que chego, alguém vem logo me esperar na porta e tira foto, me chama pelo nome. Ali sim eu me reconheço dona, ali eu tenho a minha passabilidade merecida e se quiser, posso me considerar uma Acotirene ou continuidade de Nzinga. Ali meu passe vale. Por que eu atravessaria este deserto cultural, iria pra um lugar que gosto como gosto do Brasil, mas que nunca pisei o pé, só pra ver uma festa?

Pra mim, a festa é dentro e é perto.

Lembra que anos atrás, me convenceste a ir até à Chapada para este mesmo fim.

Peguei dois aviões, mais uma viagem de três horas de carro, e quando cheguei lá tinha um famoso sertanejo no coreto da praça. Pra comer, só tinha macarrão 4 queijos.

A valia foi que conheci a loja de seu Espedito, celeiro descendente direto de Lampião,

pelo que dá conta quem é de lá. Quando chega o fim do mês de festa no Sertão, o primeiro desempregado segue sendo o sertanejo. Se for pra me aportar da minha história e me aculturar, me deixe que já vivo bem distante dela. Tenho viajado constantemente para um lugar incrível: pra dentro de mim. Foi de lá que tirei a cor do cabelo e coisas que talvez nem te faça bem saber.

Preciso viver coisas possíveis, já que rica eu já sou. Realizar minhas vontades é o mínimo que posso fazer. Se eu me mantiver sobre os meus sapatos, já fico feliz.

- Eu no seu lugar faria minha vontade.

- Pois vá só, não quero ir. Vou ficar e pintar o cabelo de vermelho acaju ou passar a navalha.

- Se fizer assim, nunca mais falo com você.

- Oxe! Tu mal fala comigo, então tá feito.

- Tens visto minha vó? Tô com tanta saudade dela.

- E por que não ligas? Perdeste a língua?

A viagem segue quase tranquila.

- Ficaste sabendo? Maria de seu Napoleão, viúva a menos de 12 semanas, acredita que já saiu pra festa? Pois foi no casamento do irmão, aquele que vive casando. Esse casou mais que Santo Antônio. Na hora que a noiva jogou o buquê , acredita que ela pegou? Disse que já está só a muito tempo.

- Mulé, tu num disse que o povo é que fofoca, é muita concorrência, é?

- Mas a senhora hoje tá muito fofoqueira. Eita que hoje a serra pega fogo, só com calor desta conversa.

- Que passarinho vistes ?

Tomaste o remédio de agonia, pois tome outro em nome da humanidade e da preservação do futuro. Tome mais um pela Maria, deixe esta alma casar e siga.

Aproveite a viagem .

- A filha da vizinha, que muito já foi sua amiga, tá lá pra morrer. Diz que o médico não deu pra ela mais que três meses de vida .

- Ainda não sei de que água bebestes, mas a cota pra casá ou morrê é três, né, dona Maria? Mas, fique tranquila, tem mais de trinta anos que o doutor disse isto a ela.

Ele disse pra ela deixar de fumar em três meses, ela inverteu as palavras e tá aí vivona e vivendo.

- Vai jogar terra no buraco de nóiz tudo se brincar, três vezes.

- Olha as árvores, que lindo é andar por tanta mata, tanto verde. Do jeito que o povo vem feroz aí pra dentro, matando indigenista, jornalista e o povo da terra, acho até melhor tirar foto pra guardar de lembrança. Quem esperou proteção de instituição tá rodando e não demora chega por aqui, é com isto que a gente deveria se preocupar. Não com o que vai debaixo dos lençóis alheios.

- A gente não vale nada mesmo nesta vida. Tudo o que a gente diz é refutado.

Por isso tô resolvida, na primeira perfumaria já vou garantir a tinta.

Da vida nada se leva e cabelo a gente lava.

- Saudade de minha amiga, já se foi há um ano. Foi muito maltratada pelas filhas antes de morrer. Eu vendo isso, ponho minha barba de molho. Já com 82 e não sei se alguém cuidará de mim, se virá pra me fechar os olhos ou só pra acender velas e contar os vinténs.

- Mulé, curta a viagem em vida. Ninguém ta olhando por nós não, a não ser este céu maravilhoso. Nem se usa mais este negócio de fechar olho, isto é coisa de novela, de morte de coronel que morre rodeado de escravos. A morte é industrial, morremos no meio de estranhos, dá até pra prever por região. Aqui ou será são Luiz Gonzaga ou indigente. Quem tem sorte, alcança o Mandaqui, melhor não usar este teu convênio, ?cê viu que o homem disse, né, ele falou que óbito também é alta.

Lembra quando certa pessoa, que não vou dizer o nome, tomou umas cangibrinhas num sábado, subiu no muro para ajeitar a arara de enfeite e se estatelou no chão feito bolacha? Antes resvalou na ponta da grade e furou as costas em três lugares, lembra?

A gente lá em casa sossegado e a policia chegou lá, já com algema pra prender a gente como mandante de assassinato, lembra?

Passamos a noite no frio congelante, entre hospital e delegacia. No dia seguinte, ainda fugiste do hospital igual Darcy Ribeiro, que isto não condeno. E se salvou de boa, tivesse ficado e sabe se lá o'que poderia ter ocorrido. Já deste olé na morte, Maria.

Hoje em dia tudo está mudado.

As velas são incluídas no enxoval de aluguel do kit velório, quanto aos vinténs? vamos torrar agora. Faça uma surpresa, mulher, esvazie a burra consigo. Na morte a gente sofre e esquece.

- Essa conversa tá ruim, será se é fome?

Entramos numa churrascaria e pedimos logo uma caipirinha de velho barreiro, um velho conhecido. O garçom educado trouxe logo um mimo, uma quartinha cheia de torresmo.

- Torresmo não vou comer.

- Chegar a 82 anos é a maior prova de que cuidaste bem, melhor que as estatísticas.

Eu, caso chegue a esta idade, viverei só desta iguaria.

E tem mais, visse? Cá entre nós, nem temos mais necessidade de guardar segredos.

No passado, quando eu era criança, fui obrigada a respeitar gente que nunca me respeitou. Sua amiga dona Maria é uma delas. Sempre tivemos que escapar da fúria das mãos dos filhos dela, que com consentimento dela cometeram contra nós todo tipo de abuso, ofensas e calúnias só por serem brancos.

Dona Maria não morreu isolada, mas poderia, porque foi ela quem plantou toda esta violência em torno dela. A senhora mesma, eu cansei de ver ela humilhar, nunca entendi o porquê nunca se defendia. Nunca respondi a ela, mas não nego o ódio que tenho, só não tenho mais por falta de espaço e porque nem lembro dela.

De sorte que, por obra do destino e de território, minha filha e o neto desta senhora vieram a se casar, os conflitos a senhora já conhece. Chegou cá em casa com vestígios da violência, da desumanidade com que foi criado assim como nós.

Ali no meu quintal, temos um propósito de viver em paz. Esse negócio de dizer tudo o que vem à boca, nem é sinceridade, é falta de educação. Da união dos dois, tivemos agora a Juju e o Biel, que nasceram num tempo melhor. O tempo de ser respeitado.

Sim, temos os sangues cruzados, isto não quer dizer que não tomaremos cuidado com esta parte racista que entrou em nossa família. É uma oportunidade, inclusive, desta mulher melhorar, sabe, através dos herdeiros.

- Eu também e a senhora podemos muito melhorar, através dos nossos, sabe? A gente refina, seja por orgulho, vontade ou dinheiro. Tudo no mundo tem uma alavanca, a melhora também. Fui à escola pra aprender e saí de lá triste. Pra fugir dela, entrei mata a dentro e aprendi muito mais com o silêncio, principalmente ao meu lado um bonito que sabe beijar, agradecer e gosta de vermelho.

A mata com seus troncos cheios de orelha de pau, que ironia, como pode a gente dar orelhas à madeira? Me ensinaste que orelha de pau era veneno, que fulano sabe lá onde, comeu e morreu na hora. Hoje, estou aprendendo a comer estas orelhas mal assombradas, pois aprendi que se chamam cogumelos e fazem muito bem ao corpo. Quem sabe melhore em mim este ranço, que o vento me traz e condena a dividi-lo.

Apesar das estatísticas e das coisas internas, precisamos renascer para amanhecer melhor.

Não me deixe esquecer a tinta ,por amor de mim mesma!