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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O Fogo Da Promessa

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

26/06/2022 06h00

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Eis que me debrucei sobre o travesseiro cansado e o lume de minha esperança, foi tão intenso que me despertou. Toda noite é a mesma cantilena de entender por que eu durmo dez minutos e penso que dormi seis horas, isto já há 57 anos, os fantasmas conversam comigo da mesma forma. Apagou a luz do corredor? Checou a fechadura da porta da sala? O mundo está muito perigoso, compra-se mais plano de seguro que comida hoje em dia. O medo ronda cada centímetro do meu sono, aquela lagartixa que segue ali correndo atrás de seu sustento, será que tem plano? Será que debaixo deste teto há uma conspiração? Nada que você faz vende, você nunca vai conseguir viver sem mim, você vai para o inferno.

Dança comigo, pelo amor de Exu, me abraça, me beija. Mistura-se em mim realidades antigas e modernas, os resolvidos e os encalhados desejos misturam-se a esta noite que não quer passar. Não disseste a ti mesma que a madrugada é o melhor horário pra escrever, que é seu horário de poder e coisa e tal? Prove! Levante-se e trabalhe, não vou expor meus braços neste frio só pra fazer adormecer este espírito enfadonho de minhas ancestrais que insistem em me cobrar pelo que também não fizeram, partiram em dívida. Toda mulher negra capricorniana quando parte deixa muita coisa por fazer, nunca para, só leu em algum lugar que Exu a colocou aqui para ensinar os homens o dom de ganhar o pão com o suor do rosto.

E lhes entregou o ônus de ser guardiões das histórias e dos tesouros da humanidade. Todavia é inverno, e nesta época pouco se transpira, estamos no outonamento das coisas e tudo flui, devagar, mas flui. E daí, não é dado a esta gente da décima casa o direito ao descanso, temos que tomá-lo a força, por isso estou dizendo ao meu ndotolo: "Apague a luz de si, entregue-se aos anéis de saturno, encerre os olhinhos e durma, o que não o fizermos alguém encerrará com certeza, bote o sonho na mesa e durma". Sono perdido, noite gelada, coração quente, ouço vozes na rua, saio a janela para espiar. Rapazes de pé conversam, enganando o sono, decerto tem insônia como eu ou estão pensando em como resolver questões práticas iguais as que já tive como matar a fome pra ter sono. A periferia sofre com a fome ou a subnutrição, porque apesar de mãe sempre dizer que sono sustenta não valido esta afirmativa. Vou dormir dez minutos e acordar como se tivesse dormido horas, vou acordar e eles estarão ali ainda de bermuda, mão no bolso, visivelmente encolhidos de frio, por que não se recolhem? Tenho medo da resposta.

Já vivi dias incertos de não ter para onde voltar, para não ter que me submeter, se for ouvir cada história tem aí uma não aceitação. A juventude é forte e informada, mas não é protegida nem pela família omissa nem pelo governo genocida, são corpos empilhados sobre corpos. Nossa! Como eu vou dormir entrando neste assunto tão complexo? Ainda ontem eu disse a mim que não dormiria se não pudesse ajudar as pessoas, detectei uma das razões da minha insônia, tudo o que eu toco cresce, fica maior que eu, e vai embora, eu me sinto tão só. A lagartixa chegou na curva, na esquina do meu quarto e alcançou seu objetivo, uma barata enorme. Sou valente, mas nem tanto, chinelar uma barata tudo bem, porém se ela voar eu corro, até uma lagartixa é mais valente que eu, ou é a fome que a faz ter coragem? Já trouxe um lanchinho para madrugada, chega certa hora a larica vem.

Rezo por tudo que disse que iria resolver e não consigo, porque não depende só do meu querer, entrego meus propósitos e agradecimentos e tento dormir, e durmo. Poderia ir dizendo a prestação de hora em hora, insistem os astros que isto faz parte da minha terrenicidade capricorniana, que se dane os astros, botei um desenho repetido e virei de costas, já sei de cór e salteado todas as cenas, preciso ouvir uma outra voz além desta que vai na minha cabeça. Sou um ser perturbado que nunca descansa, vivo com o hábito de nunca parar, nem corpo e nem pensamento, não há um só instante vago em mim, se me sobrar um tempo eu penso, por vezes até me evito, finjo que não me vejo de tanto que me incomodo, passa a lagartixa e eu penso: pra que falar? Traças sobem bem devagar, pra que pressa se ela tem a noite toda?

Fosse pra cismar mesmo eu mesma não falaria mais comigo, por vezes encerro o relacionamento truculento no mesmo dia até. Depois, cansada de procurar alguém igual a mim, volto em busca de meus próprios passos e me perdoo, quem neste universo me entendera mais que eu? Vou assim dormindo a prestação, todas as madrugadas que o frio me rouba o sono é assim, no verão também, e deixo estar ao pé de mim, somente as memórias, sem descanso. Culpado de eu não ser totalmente feliz é você tempo e você que está lendo que dá trela.

Vamos viajar há tempos atrás, numa noite como esta, eu estaria lá fora em mangas de camisa, contando lorota, fazendo simpatia, riscando na cinza algum futuro, minha mãe dizia: Põe agasalho! Eu não colocava e se ria dela, eu não tinha frio. A bisa dizia: Olha o vento encanado, mais tarde ele cobra. Cobrou a praga pegou, não há um só canto de meu corpo que não sinta dor, mas naquela época tinha madeira por todo lugar, depois elas foram indo embora de nós, virando fumaça, não sobrou nem pra esses rapazes ali na rua, e tinha-se obrigação com o futuro.

Escrever num retalho de papel o nome dos garotos da região, não existia outro mundo naquele tempo, só o Ataliba, e se deitar na tina com água, deixar o sereno guiar-nos o futuro, depois era só casar e viver feliz pra sempre, acertar no jogo de loteria ou no bicho o resto viria, a saber quantos filhos eu teria, se seria pobre, rica, milionária, e a cidade, qual eu escolheria pra viver, passar descalça sobre as cinzas.

Fechava os olhos e corria num estirão, nem sei se doía, se queimava, só lembro da aventura. Nem sei mais que data se comemora, perdi esta sacralidade de tanta coisa que tentei salvar, a gente era tão livre, podia se deixar ficar ali com filhos de fulano e sicrano sem medo, enquanto isto as comadres proseavam, nunca era tarde, enquanto tivesse madeira, era tempo. Às vezes as pessoas iam saindo, o fogo findava, sobrava brasa que virava cama de cachorro. Antigamente, por praxe, eles tinham o dever de cuidar do quintal, não sei se o exerciam, mas era o emprego deles.

De dia éramos companheiros e de noite a hierarquia nos separava, eu sentia vontade de amanhecer ali na beira do calor do fogo, se a mãe não botasse cuidado eu dormia sujo. Ainda hoje busco a conformidade do fogo, o fogo que transforma, queima e renova em mim, pra mim tudo que sou. Sim, eu vivo de passado, é o que tenho por certo. Meus rastros deixados por toda Coronel Sezefredo Fagundes e este travesseiro, meu confidente e você. E um pessoal que está lá fora conversando todo encolhido de frio, eram mentira todas as fantasias, mas acalentou meu espírito ali. Pior coisa pra ter como companhia é um capricorniano isolado, dando voltas na cama feito frango assado, a cada tempo a fogueira tem uma história, era um tempo que a palavra dada valia, de comprar fiado na caderneta.

O tempo frio de junho que geava, o orvalho cobria tudo, a manteiga virava pedra, São João botava crédito nas palavras para que não se esquecesse, fiava-se o fio, fiado nobre, uma mãe grita seu filho. Um filho obedecia a conselhos e mandados de seus mais velhos, salvo raros casos de rebeldia que se esperava que o tempo se chama a razão, e todo resto era imaginação, depois eu cresci, meu sonho era sumir daquilo tudo, procissão, vela, mesa, obediência, tristeza. Todo dia o inferno me ameaçava, mas ir à missa era o único passeio, como eu suportava o frio? A juventude tem calor, tinha eleição no rádio.

Meu padrasto passeava pela casa anotando num pedaço de papel velho, pauzinho arena, pauzinho mdb, depois dormia o sono dos justos, sabendo que ao acordar iriamos assistir o que ele escolhesse na tv, Bang Bang, Silvio Santos e o Desafio ao Galo, e passar Merthiolate nos muitos cortes que eu tinha no corpo, era um sofrimento bom porque ele assoprava quando doía, às vezes mãe o sacudia no final de tarde, quando surtava, coisas de família. Ele cortava os fios da eletricidade com o sapato molhado, rosnava e ia embora. Restava para nós contar histórias no escuro, brincar com os desenhos na parede a luz de vela e dormir, três dedos elevados e dois dedos unidos dá o cachorro mais lindo. No outro dia o sol era garantido, mãe era brava, tinha fogo no zóio, e fazia um bolinho de batata maravilhoso, será que ela o escolheu no papelzinho da bacia? Acho que não havia inventado as viuves ainda ou elas não tinham mais direito, só se pode usar a sorte uma vez e ela usou com pai, o rádio era dela, mas a tv não. Dias depois ele voltava, acabrunhado, meio cambaio arrependido de ter tido razão com o rabo entre as pernas como se dizia por ali, trazendo um embrulho de papel rosa debaixo do braço com pastel de carne, era sempre carne.

Eu adorava, não conhecia outros, como era bom quando meu mundo era miúdo e cabia num pastel, eu comia e dormia sobre os farelos, eu tinha muito sono, nunca acreditei que um dia fosse acabar o estoque. São três horas da manhã, mãe alertava que a vida miúda era grande, eu queria crescer, ficar alta e mandar em mim. Ah se eu soubesse que mandar em mim dá um trabalho danado eu ficaria sempre semente ou botão aos cuidados de seja lá quem fosse. Cuidar de mim me tira o sono, a larica da madrugada, meu recreio, trouxe biscoito de lanche. Ele voltava quase sempre, até que ficou na outra margem da vida. Não quero entristecer, seu Rosa já disse que a tristeza é aboio de chamar o diabo, e quem gosta dele nem sou eu.

Coloquei no Porchat, histórias de assombração, assisti três casos e a porta bateu, que susto! A porta bateu e eu me arrepiei todinha. Disseram que o carnaval seria em junho, se fosse a gente comemorava, a gente quer ser feliz, rir na cara do maldito. A festa dos pagãos das alegrias coloridas, não precisa de par pra dançar, não preciso ser aceito. A bisa dizia que era coisa do satanás, pois tinha muito bom gosto este senhor satanás. Noite passada estava eu caçando assunto na cama gelada sozinha, pensando quem haveria de amar alguém tão esquisito, mas tão cheia de singeleza e afeto, sou das concretudes, sabe? Das correntes que nunca fecham, das portas sem chave, sempre aberta, por isso recorro ao passado que este junho tá osso.

Brava sim, má nunca, venho de base segura onde o pote nunca seca, todavia minha estrutura foi feita para suportar barranco, sustentada em madeira de demolição, dificilmente vergo, esta é a razão da insônia, querer um mundo melhor. Pedra bruta, mas ingratidão eu não aceito, me abala, corrói meu aço. Há quem diga que serei sempre bicho, mas mal eu não faço, nem sou doce nem salgada, sou o paladar necessário, nem bom, nem mau. Deve ser mesmo difícil achar quem me ame além de mim. E pra dentro de mim eu me basto e meu quintal me faz companhia, hoje o sol saiu e eu estou aqui. Eu, duas galinhas sinceras, três ou quatro pintadinho, um galo de todo imponente e vinte e cinco franguinhas, todas branquinhas no ndotolo.

Caminhos cruzados de caracóis lembram que a noite foi intensa, vai ver elas fizeram fogueira. Oitocentos e setenta e nove pulguinhas, vinte e cinco lagartinhas, todas verdes. Ao pé de mim caminham duas mil trezentos e oitenta e quatro formiguinhas, todas marronzinhas, um grilo verde, três Louva-a-deus marrons, e ele, um bicho-pau. O fisalis, troncoso em cada estilingue de pau, um casal de besouro, não sei se ele ou ela, era ex, é mais acertado falar assim, às vezes se beijavam tanto que caiam pra o outro lado. Ali mais abaixo ela, a joaninha como eu sozinha e feliz. Besouro apaixonado abria a asa e voava, quando a asa se abria era um maestro que surgia. Numa casca de laranja o tatu fez uma cidade e eu nem falo com ele, se eu falo ele enrola. Ele, a mãe, o pai, a família, tatu bola eram bem uns oito enrolados, ficava redondo. E de tudo o que escrevi até agora acabou a história, era vidro e se quebrou, eu aqueci e adormeci, não é um horror de bom?