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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tratado Sobre Medo, Bicho Papão e Fofoca

Arte de Dona Jacira - Dona Jacira
Arte de Dona Jacira Imagem: Dona Jacira

12/06/2022 06h00

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Ainda hoje mesmo recordo. Eu fui meu próprio milagreiro na arte de esculpir meu próprio santo, tecendo para nunca endoidecer, ali no emaranhado, nos troféus da vida bruta é onde a felicidade reside, eu me iludindo tecia, aos olhos do meu santo protetor, Nico. Eu, um menino feito de poesia, fecho os olhos e mesmo que tá olhando pra ontem e vivendo. Eu lá com muito cuidado segurando aquele papel de seda amarelado, liso, desamarrotado, era o meu maior compromisso, trazia com maior cuidado pra não amassar, eu desembrulhava o filão de pão e guardava ele na axila pra trazer ainda quente. Pra mim era meu melhor lugar pra acomodar o pão e ter sempre as mãos livres para olhar o céu e prestar atenção tanto na linguagem do tempo como de todos os cachorros, que de certa forma, falavam comigo, era tão certo que eles me falavam em pensamento, eu acolhia, entendia e ainda dava resposta. Esta foi uma das razões que fizeram minha mãe recorrer tanto à feitiçaria local, e mais tarde, desacreditada de minha sanidade, pela oralidade, entregou-me ao bicho papão, o psiquiatra.

Ele nunca me entendeu, um pequeno poeta, tratava-me como se trata a um inimigo, batia na mesa e me mandava olhar na bolinha do olho dele. Olhos horríveis, cheios de ameaças e nada mais, os olhos dos animais me eram melhores, acho que foi isto que me trouxe cisma de minha mãe. Olha aí os amigos que ela tinha, dizia eu para mim mesma.

Porque num sanatório os acusados nunca falam entre si, no mínimo trocavam olhares, na ante sala de um manicômio alguém fala pelo abilolado que perde até a habilidade de ser chamado pelo nome, é sempre ele ou ela ou aquele ou ainda esta, quem desobedece e fala pode ser castigado, pode levar choque, se entrar em choque. Até pra entrar na sala do louco chefe referem-se a gente chamando o nome do acompanhante, coisa ruim de lembrar, tempo ruim. Vish, nem me lembro quantas vezes mãe me ameaçou com o que poderia estar por detrás das portas do manicômio, por causa disso, tanto do pão axilado e por falar aos cães, gatos e galinhas e dar nomes a eles, e também pegar emprestado as ferramentas da casa. E perdi as contas de quantas vezes ela ia às vias de fato e me fustigava de alguma forma. Eu era tão inocente, tão feliz. A axila era limpinha e segura pra mim, quem algum dia entenderá uma alma apaixonada pela vida e pela escrita e pelas falas de seu tempo.

Infelizmente a educação ridiculariza tudo o que é espiritual e acaba banalizando nossos aprendizados, nosso dom primário. Na escola falavam mal de minha mãe por ela ser feirante sem licença. A vida fica precária sem as ferramentas do ndotolo. Por mera ignorância ou plano de governo nos remete ao exército de reserva, quando poderia somente nos deixar extravasar o que já trouxemos do infinito. Mas eles sabem que se nos tiram este infinito fica fácil recolher-nos da nossa própria sombra e nos tratar com migalhas, já que toda nossa riqueza fica esquecida sobre o medo de ser diferente. O capital abomina o infinito, porque ele é infinito, e ele, o capital, inventou a Barsa que dizia que era completa, que tinha tudo. Mas que o próprio capital derrubou porque faltava informação. Não incluía, dividia, naquele tempo havia uma divisão entre a família que tinha e a que não tinha para entender a linha de pobreza. Eu nem sabia o que era, mas sonhava, ou a família lutava pra ter uma casa ou uma enciclopédia que hoje ficou só na memória. Minha mãe preferiu ter uma casa, e de mais a mais a culpa de eu ter que ir comprar pão na mão do português ou daquele homem da carrocinha era dela. Se acaso ela ficasse em casa fazendo café, pão, guloseimas, tomando conta do botão do rádio, lavando roupa e fazendo comida. Eu, ou melhor,

Nico, nem desabrochado teria, ele desabrochou da angústia de Jacira de não ter mais a mãe ali todos os dias para guiar-lhe os passos, defendê-la dela mesma. Quando mãe foi ser mãe de alguém em algum lugar, Nico surgiu como o moleque do meu coração, foi meu consolo. Saiu de dentro de mim para me dar a mão, às vezes tenho medo deste meu pensamento. Pois se este meu moleque nunca tivesse existido, a quem eu estaria recorrendo neste instante para lembrar desta faceta? Talvez ao relatório do psiquiatra que nunca seria fiel a minha criação. O papel de seda se mostrava importante pra mim na época de pipa. A vida era separada em estações e ciclos de fogueira, taco, natal, promessas e juras de um dia tudo voltar ao que havia sido, porque, ali na rua, entre iguais, usávamos a política do sopapo pra impor respeito, e como último recurso, o grito de salvaguarda: manhêeeeeeeeeeeeee! E mesmo assim tínhamos medo, mas tinha-se uma esperança toda noite, o medo de voltar pra o seu lugar de onde nunca deveria ter saído. A que horas ela voltava? Voltava tarde da noite, brava, fazendo cobrança, vendo se Nico tinha lavado os pés para dormir, precisava? Quem veria os pés encardidos de mim? Ela veria.

Assim como tinha uma mania horrível de vigiar minha gaveta todo final de ano procurando não sei o que, acho que ela procurava razões para ter orgulho e achava confusão. Pedaços de caco de vidro pra fazer cerol, cola de vidro, papel de seda, burcas da sorte, peão, fieira e algumas clavículas de frango pra tirar a sorte. E lá vinham os cocorotes no cocuruto. Como explicar pra ela que eu lutava como todo mundo? E sobre tirar a sorte com ossinho do frango, foi ela que ensinou, não a mim diretamente, mas eu peguei no ar. Quem não quer ter sorte? Quais eram os objetivos de meu moleque? Ganhar campeonatos de rua, ser líder do larguinho em frente de casa, sempre fui territorialista. Que culpa eu tinha se os outros viventes da casa tinham objetivos menores? As irmãs guardavam enxoval porque ouviram em algum lugar que um príncipe viria buscá-las um dia para beijá-las e torná-las princesas. Por isso guardavam lençóis e tapetes de porta com nomes escritos que nem elas sabiam o que era. Já mãe, só gostava de dinheiro, pra trocar por tijolo, areia, pedra, roupas e perucas, ela ficava danada da vida quando a professora pedia um livro, coisa que ela achava uma perda de tempo principalmente pra meninas. Mas eu não olhava as gavetas delas, nem ria ou ficava brava com o que elas guardavam, mesmo achando esquisito, que culpa eu tinha se meu futuro era no dia seguinte enquanto o futuro delas era longe? Por ironia do destino eu casei primeiro e mãe fez meu enxoval, sabe de onde? Elas queriam ser princesas e eu já era um rei como todo menino, nossos ciclos se confundiam, e bem no meio tinha uma escola horrível que não gostava de mim. Só a Serra da Cantareira me abraçava, mas pra isso precisava cabular a escola de Nossa Senhora do Carmo.

Esta foi outra que segui em vão, mas nunca descia daquele muro. Eita andor triste que eu carreguei feliz e cheia de esperança de vestido rosa e laço de fita que eu colocava porque mãe gostava, sem querer carregar. Eita estória sem jeito, na época de burca era o marcar a rua, na época de pião, ajustar a fieira e treinar. E pra tudo isso tinha sempre que tirar a sorte com a clavícula do frango, a saboneteira dele. Não me pergunte por que chamam clavícula de saboneteira, quem falava assim eram as irmãs mais velhas que juntavam tralha para casar-se e ser feliz. Eu sempre quis ser vencedora, dona da brincadeira Líder.

Ali naquele pequeno vale de formação que esta situado a frente da casa onde minha mãe mora está plantado um pedaço de meu coração junto a poeira, e minha possível formação. Eu poderia ser cozinheira, tecelã, artista ou inventora. Naquele tempo tinha esta profissão, só escritora eu nunca pensava, nunca ninguém falava. Para mim escrever era como comer, um peso necessário, uma mania, um defeito. Quando eu percebia, já tinha feito e ficava feliz comigo, o que não cabia no papel, por medo, guardei no ndotolo, eu convivia bem comigo mesmo, com meus iguais, só titubeava quando alguém grande perguntava: "O que você vai ser quando crescer? Já está namorando?" Eu já fazia as duas coisas. Um dia descobri que na papelaria vendia folhas de seda de toda cor e jogo de canetinha de desenhar, naquele dia comecei a namorar, e se eu tivesse sabido conservar este encanto, guardado numa caixinha, com certeza teria sido minha profissão o meu ganha pão. Mas quis Exu que eu perdesse a rota desta minha trajetória de herói pra saber mais, ter mais apreço à vida. Primeiro vá conhecer o mundo, vá perder a brutalidade imposta para não estragar as canetinhas. E me deu medo, daí pra fofoca foi um pulo, eu me perdi. E desde então, toda vez que passo em frente a uma papelaria eu fico feliz e triste. Sei que se eu entrar não saio de mãos vazias, tenho medo de não preencher as minhas expectativas e pintar o mundo com o colorido que tenho na cabeça... Todavia, estou em tratamento, e peço que não me vigiem, soltem-me no ar como pipa me desbiquem, deixem cruzar. Deixem que eu viva e vão viver também, porque um dia pra ser alguém guardei tudo no porão pra parecer normal. Passado o tempo, o que guardei, nem morreu, nem deixou de existir, o Nico, eu soltei ele. Olha o menino, olha o moleque, morando sempre no meu coração.