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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A importância da palavra dada

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Imagem: iStock

26/12/2021 06h00

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Há de chegar o dia em que o povo saberá de tua importância e tu, por tua vez, compreenderá o ônus deste saber. Um dia compreenderás que não foi por acaso que a escola te estranhaste e tu a ela, você veio pronta Ekede do tempo, Makota de si, e o doido é que eu sabia que alguma coisa ali era verdade, que eu sabia ler lábios e pensamentos e isto fazia com que eu vivesse isolada às vezes por pura vontade minha talvez. Eu nunca quis infantes ao meu lado, meu ego me dizia: És grande, viva tua grandeza, deixe pra lá os infantes. O espelho me jogou isso na cara quando reclamei falta de amigues.

- Foste tu que os afastastes.

Este sim foi, desde sempre, um direcionamento não muito bom, mas eu precisava dele, eu pensava demais e eu já percebia que mãe não era feliz, ela precisava de muito dinheiro como ela mesma sempre dizia, eu queria ajudar ela e ver ela feliz, era muita ingenuidade minha. Hoje eu sei como tudo isso se perdeu, e eu soube o caminho de recuperá-la eu conheci Sankofa.

Já pensou se acaso o universo tivesse tido a maldade de realizar todos os meus desejos, imagine que eu queria ter um negócio que chamava poço de petróleo, pra resolver a pobreza, uma garotinha magrela, meio verde meio amarela, cheia de lombriga, um espectro que mãe salvava com álcool, alho e reza, uma criança sorridente, negra, feia, quase morta e perseverante. Imagine se eu tivesse encontrado meu poço, talvez Ataliba nem existisse mais, delírios de uma capricorniana este ser da décima casa que segue seu caminhar. A gente está sempre procurando ouro e trabalho, sempre subindo acima de si a caverna do tempo só pra ver o que tem no mundo lá do outro lado. Depois vem o sossego e talvez a conformação tardia uma leve depressão, depois o recomeço, sempre. Não dá pra separar trabalho e fé no meu caso, a perseverança capricorniana nunca descansa, um dia tudo será verdade, queiram ou não os Green, porém hoje, ainda que seja doloroso, é preciso que se cumpra a palavra dada.

O sol se levantou cedo e uma barreira escura o ameaça, acho que vai chover, Evandro foi a Nova Iorque e ficou, alguém na família ficou doente e a gente não vai visitar, isto me faz sentir saudade de outros tempos. Em 1970, hora destas, estaríamos todos a caminho: mãe à frente com um facão, Dona Maria Preta com as folhas, a bisa com a bíblia em riste e as demais. Batendo mato, contando história, desbravando o Cachoeira e dando asas à minha imaginação. Seguindo o caminhar, nunca voltei eu mesma, não ninguém ficava pra trás, Lulu, o Neguinho, A boneca, nossos cachorros iam também. Boneca era a cachorra de Dona Zefa, quem tinha gato tinha que levar no colo, os adultos contavam histórias horríveis sobre eles, gostavam de colo e altura. Às vezes no meio do cortejo aparecia um tatu, um teiú, um preá e pronto, os cães se embrenhavam no capinzal e se esqueciam que estávamos indo visitar alguém, às vezes até as mulheres largavam seu destino e se metiam feito bicho atrás de outros bichos pra juntar ao balaio de galinhas e ovos que elas já traziam. Era Ogum ou Oxossi que entrava nelas, muitas vezes pela ventania, só para elas deixar pra lá as histórias que nunca dava certo, ao final da caçada eram sagas e mais sagas.

- Viu comadre, eu cheguei pertinho do bicho, estou cada vez mais rápido, não acha?

- Ah se a gente pega ele Maria, eu to com uma abóbora la em casa pra juntar no caldo.

Uma pausa no meio passeio, bem ali no mato, pra chupá cana, tirar os micuim e se coçar.

Ninguém sabia que a gente estava a caminho, talvez o encantado avisasse, era esperado que alguém faria este papel na vida ou… Dai era seguir contente, cheio de espírito de aventura, castigando um gain de capim gordura entre os dentes. Cada qual com sua realidade e sonhos a parte, a gente seguia assim conduzindo e conduzido. Quem diria que um dia trocaríamos tudo por esfiha e hambúrguer, quem diria, a mata sumiu. Deve ser depois disto que deixamos de visitar nossos doentes, o medo entrou em nós, vivemos doentes também. Às vezes me arrependo de querer saber tanto, a mesa da mãe da gente tinha o que comíamos durante o ano todo ou o que se guardava nas lata, depois, seja lá em qual casa fosse, tinha que ter um pão doce em cima da geladeira cheio de fruta, um peru, e o de sempre, o panetone era algo tão sagrado que era mais fácil a gente pecar do que abrir a caixa antes da hora, passado, passado. A bisa dizia: "Dias piores virão" e mãe se benzia, mas hoje a realidade bate à porta, hoje estou vivendo de desculpas.

- Me desculpe, perdi a hora.

É o montador do sofá que perde a hora já pela quinta vez, mas ele deu a palavra que iria concluir o serviço, ele deu a palavra, quanto vale a palavra? Como a palavra de quem não tem palavra reverbera neste espetáculo de prestação de serviço, serei eu agora mesquinha? Se for, não mereço os títulos de nobreza citados acima e posso jogar fora o diploma de conhecedora da mata que Ossain me consentiu. Fomos batendo o facão na clareira e o capital sem palavras surgiu na clareira aberta, quando descobrimos o mal que nos faziam, tentamos fechar o portal, mas já estávamos fisgados pelo wi-fi, não tem volta, nem jogando sal grosso.

Antigamente, indo mata adentro, o assunto já era sobre algumas pessoas que não cumpriam o que diziam, por isso íamos de casa em casa levar ajuda e companhia, ali a gente ouvia, elas falavam, riam, choravam, cozinhavam, enchiam a dispensa de provisão, rodavam no calcanhar e voltavam pra lida. Eu cresci assim, vendo como se faz e conta história, licença que eu vou rodar no carrossel do destino. Cresci ouvindo e vendo que nossa arte são coisas da vida pela boca das nossas mães, são as glórias do Ataliba.

- Mãe, eu quero ser uma filha realizada diante do seu poder.

Como um rio que corre para o mar derradeiro, andei por vários minutos no corredor do hipermercado com trezentos gramas de carne moída no carrinho, eu só poderia adotar aquela bandeja caso tivesse quarenta e oito reais. Onde estão as mulheres que baterão mato pra romper com a fome? Não há desculpas para não ajudar, a hora é esta, o tempo é de deixar a excursão em volta do próprio umbigo e fazer algo, sentir na pele a dor do outro e ajudar.

Eu vim pela Duque de Caxias, deparei com um campo de concentração ali, uma cidade de barracas dentro da cidade de São Paulo, no pé da estátua do assassino que deu nome a avenida, ele sempre imponente, esta lá no alto montado em seu encardido cavalo com a espada que matou negros e indígenas, em riste. Já deu senhor do ocidente, já pode descer e ajudar a acabar com maafa, esta desgraça coletiva que vem de vocês. As pessoas ali nas barracas vieram de várias picadas expulsas de algum lugar, esta situação precisa mudar pra gente ter um feliz, sei lá o que for, é errado querer ter na vida apenas um dia feliz. E sinceramente, dane-se quem não cumpre o que diz, o dia que a dor dos meus não fizer nenhum efeito em mim, por favor, me socorram eu estarei muito doente. E se a felicidade é algo que se compra, que todos possamos ter como comprar, sem esperar que alguém traga, e que bom que tenha quem traga. Há dias do meu aniversário me sinto muito triste com tudo isto, a dor do outro dói em mim. Não estou feliz, mas estou esperançosa, é só o que eu tenho e o que me faz forte, espero que se cumpra a palavra dada em algum lugar, se isto acontecer, e vai acontecer em algum lugar, clareiras de esperança se abrirão e gente e natureza viverão, este é o ônus do meu saber. A quem foi dado o poder de perceber, também foi dado o poder de reagir.

Assim eu termino desejando a todos nós dias melhores, sem medo, sem miséria, e quero ver até Papai Noel lembrando que enquanto tanta gente estiver sendo expulsa de suas terras, enquanto forem destinadas para lugar nenhum, para o meio da rua. Sem política pública não há solução, ninguém estará feliz.