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Graça botou aviso: Natal tá chegando, quem for passar com pizza ou salgado favor pedir até 20 horas ou pedir congelado dia 24, encerro as 21h. Quando a gente pensa de toda maneira dele se guardar sentimento ilhado volta incomodar. Arrepare não, mas enquanto rego a horta eu vou te contar uma estória bem curtinha fácil de contar. Porque contar parece com não morrer, é como nunca esquecer que a vida sempre tem razão. Caso você tenha me visto na última semana abraçada a uma bandeja de carne passeando pelo mercado aqui perto de casa não me julgue, ainda. Eu pensava sim, pensava em como as coisas chegaram a este absurdo. Eu andava de lá para cá pensando em por que não sou vegana? Por quê? Por qual carga d'água impliquei em pensar que serviria uma carne assada para meus convivas. Se nem televisão assisto há muito tempo, porque o agronegócio me apavora me tira sono e fome.
Niver de Tiana, fim de aula das crianças, todo mundo vacinado, motivos pra comemorar não faltava. A vaca nos dá o leite, mas e a tinta que ela nos leva? Pensei, pensei, depois despensei, me despedi dela e sai. Quem nos alimentará? Aquilombei, a cozinha 7 mulheres pra fazer um macarrão, molho de tomate com nossas próprias mãos, é necessário contar estórias de comida na cozinha para que os espectadores saibam que comida não é mágica, é labuta. Ficamos eu na massa com Maria, no rolete Aila a mãe Kátia e Maria no transporte, minha mãe no molho de tomate e Tiana nos arranjamentos e confusões. Ao fim de tudo fizemos uma romaria a horta e trouxemos manjericão, tomilho, orégano e bolinhas de coentro, o perfume tomou conta do ar e a poesia se fez, feliz é quem tem a cozinha colada ao canteiro, as panelas disto e daquilo, isso sim se chama macumba, nosso lugar de preservação. Acredita que Kaki, Tiana e Michele separaram o grão de bico da comida, só acredito porque eu vi com estes olhos, uma saladinha pra acompanhar, nunca junte três capricornianos à mesma mesa. Gabriel, como bom capricorniano, implicando com a comida mesmo antes de comer e assim emendamos a manhã à tarde, muitas foram as perguntas:
- Vovó, você não tem pai? Cadê seu pai vovó?
Gabriel, de três anos, me provoca a memória querendo saber do meu pai. E eu senti, senti mesmo o quanto ele estava preocupado comigo por eu não ter alguém que me carregasse as costas ou me mandasse escovar os dentes enquanto eu embalava meu caminhãozinho no tapete da sala, caso eu o tivesse, até a mamãe gritar lá do quarto e os dois correrem pra não irritá- la. Um jogando no celular, o outro enrolando pra não escovar os dentes, eu bem que queria ter uma história legal de pai pra contar. Numa outra vinda talvez pra quem acredita em retornos temporais, e assim caminha a natureza da cabecinha dele e da minha também.
- Vovó eu vou falar com Papai Noel pra ele ser seu pai, você quer? Vou escrever aqui pedindo um celular aí já peço pra ele ser seu pai.
- Acho que não.
- Você não gosta de Papai Noel?
- Nem sei dizer.
Juju tem verdadeira adoração pelo velhinho de barba branca que chega num momento em que a cidade fica muito linda e colorida. A cidade é cinza, mas somos coloridos por dentro e no Natal refletimos a alegria de sempre e desejamos que fosse assim o ano todo, acreditar é um tempo mágico, eu acho. E até enquanto durar é um tempo imemoriável, ndotolo que voltaremos sempre que nos sentirmos sem chão.
- Não devemos deixar que as crianças acreditem nessas baboseiras, porque é mentira. Devemos criá-los para realidade desde o primeiro momento - diz minha mãe, Dona Maria (Xica Mixirica).
Mãe tem esta coisa chata com a realidade, não é verdade, ela fala pra agradar a criança dela pra justificar o que acha que perdeu, querendo limpar o futuro de si mesmo. Dê a ela um bichinho de pelúcia, um bibelô e verás como ela ainda é uma criança de oitenta e dois anos. Mas no domingo trouxemos ela pra tirá-la da solidão e para picar os tomates, ela cortava um, comia metade e dizia:
- Hum, que tomate docinho, que delícia, Alex traz uma cerveja.
Todos se olham porque ela pediu cerveja, mas todos estão bebendo o que querem. Eu fui criada por Dona Maria e mesmo sendo uma pessoa que adora festas, enfeites e badaladas noites, ela ainda mente pra si mesma que o colorido não existe, nunca existiu, deve ser porque foi criada colhendo laranja em terra de meeiros após ter sido dada em adoção por sua mãe branca. Ela perdeu de vista as histórias de sua passagem onde gostou e foi bem tratada e as outras, eu também.
- Vovó, que tal pintar o rosto da menininha negra que está no colo do Papai Noel de cor de carne?
- Acho ótimo Ju, pegue pra vovó a cor de carne, quero conhecer.
- Aqui está.
- De qual carne é esta cor?
- Eu não sei vovó a Prô que disse que é cor de carne.
- Bem, vamos lá refazer este exercício caseiro, se esta menininha negra for pintada com este lápis que sua Prô te mostrou e agora você chama cor de carne. Ela ficará com a cor desta carne e não negra, concorda? A meu ver existem muitas cores de carne, vamos brincar de pintar as carnes. Qual cor você pintaria a carne da sua Prô? E da sua bisa, da sua vó e da minha? Do tio Fióti, da tia Katia, da sua prima Aila, do Papai Noel aí no papel? E agora já temos uma aquarela de cores de carne e se for de bicho, que cor teria a carne deles? O piu aqui do quintal da vovó, o Geraldo?
- Geraldo é um gato vovó, ele tem pelo e eu tenho cabelo - diz Gabriel.
- Por baixo do pelo do Geraldo tem pele, você concorda que agora temos muitas opções de cores de carne e que esta cor não tem nada a ver com a cor de carne propriamente dita? Então, agora acho que já dá pra lembrar quem orienta que o pantone de cor de carne virou e multiplicou, né? Mas nunca faça isto sozinha, tem uma cor que chama intolerância que precisamos tomar cuidado porque ela inviabiliza e torna invisível algumas cores de pele.
- Como assim vovó?
- Ainda é cedo pra falarmos sobre tristeza e é Natal, e Gabriel pintou tudo de roxo enquanto a gente se distrai, é o novo tom cor de pele. E isso tem muito a ver com a carne que não chegará a muitas mesas. Eu sou inventiva e minto, mentiras que a vovó conta:
- Vovó, você reparou como a planta fica triste quando chove? Ela chora.
- Vamos perguntar pra ela?
- Vamos.
Eu vou até o quintal e Juju me segue bem de pertinho, chego lá e faço um teatro e eu adoro teatro.
- Dona Taioba, o que a senhora acha da chuva?
Fazendo voz de Taioba:
- Eu fico muito feliz com a chuva, porque ela molha minhas folhas, molha a terra que molha minha raiz, eu cresço, fico verdinha e fico feliz.
- Viu Ju? A plantinha gosta.
Silêncio e pra mim caso resolvido, descemos a escada e o desfecho foi o seguinte: Ao passar pela mesma folha, eu na frente e ela atrás, Juju cochichou no ouvido da taioba:
- Num chora Dona Ioba a vovó tá mentindo.
Hoje é dia pertinho do dia de Natal, o dia em que o mundo para, as pessoas colocam suas farturas na mesa quem tem e confraternizam, uma semana depois é outro ano, tempo de promessa de mudança. Realidade a flor da pele, os últimos anos me fizeram saber que o que é ruim pode voltar. Eu vivi pra ver prosperidade e conhecimento, aquilo que eu busquei a vida toda estava dando certo, e de repente eu vi meu mundo cair por conta de desmontes todos. Preservei a esperança é ela que me move, no tempo que eu achava minha vida chata, vivia com minha tristeza, eu chorava, eu não queria existir. Minhas manhãs eram cinzas, e aí chegaram as crianças pra me remeter aos tempos de minha própria criança, que estava perdida feito um beija flor tristonho no meu próprio jardim, eu ganhei afeto e distribui afeto.
Não, eu não vou contar estórias impossíveis, eu acredito no tempo de fantasia, eu louvo a fantasia, mas também admiro a chamada à responsabilidade ainda que dura feita por estranhos. Semana passada eu cheguei da hemodiálise e Juju estava na ponta da escada, abriu a mãozinha e na palma de sua mão tinha um dentinho dela que havia caído:
- Vovó, olha meu dentinho, mamãe falou pra eu mostrar pra fada pra ela me dar um dinheiro. Você é uma fada não é? Quanto você me dá?
Ela me convenceu, agora eu sou uma fada, não resisti e dei a ela uma nota, mas ela veio com o Gabriel, que vendo a nota, tentou arrancar um dente dele pra me vender.
- Ainda não é tempo, dei a ele uma notinha e ele saiu sorrindo.
Esqueceu a nota de dois reais no quintal e o Mali picou ela todinha feliz da vida. Felicidade são momentos de tempo em tempo no tempo da gente, ali mesmo naquele degrau tem estórias de filhos e netos:
- Como chama este cachorro? - Perguntou Leandro.
O cachorro respondeu Estela ao pai, faz já uns dez anos, mas a história está lá naquele degrau. Contemos estórias possíveis, as nossas, toda vez que precisamos atravessar o universo pra contar histórias que nem sabemos se existiu ou não matamos um pouco na cor do lápis, cor de pele, a nossa própria cor. Vou entrar Natal e Ano Novo da mesma forma com a minha cara, minha solidão e opinião, trazendo sempre boas notícias, sempre. Eu quero ser um bom ancestral e quero estar nas memórias da melhor forma. Vamos doar algo em lugares onde a situação está pior que a nossa.
Estamos vivos sem norte, sem sorte, mas estamos vivos entre os nove pecados capitais, poluição, cheiro de gás. Parece que foi ontem que ouvi Chico contar: O urubu tá querendo comer, mas o boi num quer morrer e num tem alimentação, era premonição? Não, era um jeito de dizer da realidade que vivemos agora. O urubu não pode devorar o boi e todo dia chora, todo dia chora. Antigamente eu pensava que era só música mesmo, nem imaginava que era o atalho que fazia Papai Noel desviar da casa da viúva. Passado, passado.
Hoje a gente conta outras estórias aqui da nossa saudosa maloca, onde o galo pode cantar. Arrepare não, mas enquanto eu rego a horta eu vou te contar, estórias bem curtinhas fáceis de contar. Porque contar parece com não morrer, pra nunca esquecer que a vida sempre tem razão.
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