Topo

Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Voz de Vó

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

21/11/2021 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Licença Dorinda Hafner, agradecida por me alimentar através de seu pensamento, por ter feito meu espírito uma fonte saudável para beber neste mundo cheio de informação, pela generosidade de compartilhar tamanha grandeza. Iniciamos esta estória já no topo da montanha, por amor, como diz minha ancestral Sobonfu Somé, quem inicia uma estória de amor no topo da montanha só pode descê-la. Assim eu, como Elza Soares, deposito aqui meu riso, meu choro, minha casa, minha opinião, minha pele preta nesta chuva de confete. Ser de terra, dizem que na areia o mar bravo só respeita a rainha. Por isso invoco Bethânia pra nunca estar só, alegria e folia em nome da rainha e do rei, somos anima e animus. Diziam os antigos que: No mercado onde se matam as fomes imperava ali um reinado que é passado de geração a geração desde sempre.

Cada mulher ali, com seu generoso espaço de comércio, não estava ali por acaso, alguém liderava o grupo para não haver exageros. A rapina sempre existiu no mundo e ali era proibido artimanhas que prejudicasse as outras companheiras, baixar demais o preço ou aumentá-lo de forma a tornar a disputa de vendas desleal, por exemplo. Assim sendo, quem rompesse as regras postas era punida e ficava a cargo desta rainha determinar que se cumprisse o combinado, para que depois deste ritual aquela pessoa fosse novamente inserida na comunidade. Cantada as canções e dito os ditos e ritos da época, tentava se dizer aquela pessoa jovem que é preciso respeitar as leis do mundo, do universo e do mercado. Para que tudo isso funcionasse era importante que toda comunidade desse aval à força e palavra da mulher ali mais velha, a rainha maior. O combinado não sai caro, mas por que dar poder a mulher? Porque a mulher nasceu com o dom de dividir numa sociedade polígama onde os homens têm muitas esposas. São elas que dividem o alimento, fazem a libação, sacralizam a união, trazem as crianças ao mundo, cuidam da semente do plantar ao colher, ensinam o caminho da casa do pai e abrem e fecham-lhe os olhos. Mulheres e fungos dominam a terra desde sempre, porque sabem dividir e continuar, a única coisa que não conseguem fazer, infelizmente, é acalmar a mão o espírito do homem quando estes se vestem para a guerra.

Muito mais a partir de quando sujaram as mãos de pólvora do homem branco, por esta razão guerreamos também em defesa de todos. Dizia eu que Dorinda… Não me permitam desviar, voltemos ao mercado.

Desde criança observando sempre se perguntava porque os homens tratavam as mulheres jovens de um jeito, para depois voltar a tratá-las como mulheres sábias quando ascendiam a posição de mulher mais velha viva? E o que era pior, como podia as mulheres permitir que isso acontecesse? Numa sociedade matriarcal, hoje, comparando história e mitologia, consigo entender que mulheres da terra do sol sempre tiveram pleno poder de seu sustento, segundo informações colhidas (sic), enquanto mulheres de terra fria, como a Grécia por exemplo, nem tanto. Tanto que está lá nas escrituras que Hera vivia tomando emprestado o corpete de Afrodite para se tornar mais jovem e assim chamar atenção de seu irmão-marido Zeus, para não tomar outro chifre e vir a passar necessidade na velhice. Jeito duro de viver onde a pessoa era obrigada a estar sempre jovem ou… E já sabemos que não funcionava.

Esta atitude aumentava nos dois lugares a competitividade entre mulheres mesmo estando no mesmo barco. A poligamia oferece apenas uma oportunidade limitada para relacionamentos emocionais profundos, e em qualquer lugar, ontem e hoje, a maioria das mulheres concordam que não é fácil, nunca foi, nem nunca será. Partilhar o seu companheiro com nada menos de três a vinte mulheres ou mais, mas estava eu falando de mulheres que fazem as ondas do mar recuar na areia, elas encontraram uma solução, canalizar sua maciça capacidade de amar para cada filho com devoção. Mulheres africanas e com conhecimento de causa, mulheres brasileiras amam seus filhos com tal devoção e ferocidade que pode ser assustadora, o que ela não pode ter para si ela se empenhara em dar aos filhos. Pra constatar, era só passar uma tarde na porta do mercado e ver como ali as mulheres banhavam suas crianças, com uma vasilha, ali ao pé do poço, a vista de todos lavavam sua criançada, enfileirados esfregavam um a um com esponja de casca de árvore, sabão caseiro e óleo de amêndoa, desesperadamente pobres, mas com filhos inteiramente limpos. Alma limpa, espírito limpo, e com uma noção de orgulho, com uma única toalha pra secar todos eles, ali está o espírito de compartilhar. Isso feito, lustram cada um com óleo fino de manteiga embebido em alecrim e outras ervas aromáticas, depois sentam pra chupar bagos de cana e apreciar seus rebentos brilhando ao sol. Ver assim, as mulheres a lavar e lustrar cada miúdo como se estivesse polindo um cálice precioso, chego a uma conclusão, ali está seu verdadeiro tesouro, estas mulheres lustram suas jóias, seus filhos. Quem aqui lendo não volta ao seu próprio quintal e se recorda de sua própria mãe, avó, tia, vizinha. Assim eram os mercados antigamente, cheiravam a comida simples, sabugo de milho assado, bananas grelhadas, suco de melancia, peixe ou bolinho de massa cozido servido com carne que tivesse. Assim neste ambiente surgem as rainhas que fazem com que esta arte fosse passada de igual pra igual a todas as outras, este é o verdadeiro saber multidisciplinar de acender sóis para potencializar. E nenhuma delas classificou esta forma útil de viver, para elas esta atitude, este ato de beleza, tinha que ser feito para embelezar a vida todos os dias, então se banhar, pintar a pele, tecer seus panos, cestos e cordões era apenas uma forma de beleza de fácil acesso, ali no mercado, disponível a quem tivesse olhos de ver e viver.

Quem relegou nossos fazeres ao folclórico foram os forasteiros que botaram inveja e custo, aí chegaram lá em suas terras frias e criaram a discórdia chamada museu e academia, e classificou nosso modo de viver como arte menor, folclore. Mando eles agora ou mandamos todos em coro. Assim sendo, agradecida a quem me dá voz, imensamente lisonjeada, desobrigo que me creiam. Me ouçam e me desenfantilizem diante de mim mesma e daqueles que eu vim para instruir, não porque saiba de tudo, ninguém sabe tudo, mas porque eis que estou entre um círculo de pessoas que devo conduzir por amor, para amealhar tais colheitas devo olhar pra trás, colher o que meus ancestrais plantaram, escolher o que julgo melhor e ofertar neste grande banquete que eu chamo vida. Quero ser também um bom ancestral, não uma imagem meramente ilustrativa santificada que nunca existiu, por isso me respeito e espero o mesmo, se querem entre seus iguais defender o tema e o peso da palavra ancestrais. Em dias como hoje, me preocupo muito comigo e com o furo de meu umbigo. Com as partes pensantes em mim, eu sinto e não é pouco, e diariamente insisto com um certo furor até, não acorde meu orgulho com teu barulho infernal, nem me afetara hoje o racismo distante, mas sim este de quintal, teu pouco caso não me faz caso, nem a infantilidade a qual me condenas, não sintam pena de mim, de mim não sinta pena. Nem é hora de hermeneutizar, que nem Hermes nem Atenas sentem meu penar.

São deuses, comem ambrosia que recebem de graça, nem tem o que pensar, eu nem tenho rede e roupa pra tanto. Se vivo, se choro, se canto, nem é tão profundo, é breve até. A quem importa se chora ou se ri uma mulher? Há pessoas nesta sala que nem deveriam estar, não são da casta ou da linhagem, como achar melhor. Chegaram agora, pegaram o bonde em movimento e eu só lamento mesmo é que querem ocupar o meu lugar, conversa besta, porque não vieram antes. Ora, vasculhe São Paulo, o Brasil, o mundo, terra de traficantes e coronéis, queres mesmo se sentar em lugares como o meu? Como se fossem meus iguais? Sentir o gosto amargo, o comer, o pão que meu filho nem comeu? Da uma voltinha na cracolândia então, em qualquer ocupação, na mais paulista das avenidas, na Praça Duque de Caxias, e verás que um filho teu pode sim pode perder a luta, e pare de lamber cria que já cresceu, tem muitas mães parecidas comigo, esperando o olhar teu. Quer mesmo colaborar com a vida? Pare de perguntar que néctar meu filho bebeu, tem segredos neste néctar que não cabe no mundo teu, dá licença, hoje nem almejo tua presença. A sala da minha vida está cheia, meu olho tem areia, mas ainda enxergo, e enxergo bem, nem vem que não tem. Podes enganar este congresso de marmanjo incauto, mas vá tirando seu trem do meu asfalto, da minha rua de terra, me mira e me erra, e pare de fazer perguntas.

- Se sente feliz?

- Não!

- Mas como se vencestes.

Já me dão por vencida e vencedora sem perguntar até, sem avaliar meu coração, e torna a perguntar:

- Estás feliz?

- Não!

Eu rodo a bola do olho e digo, ou melhor, nem digo, dificilmente quem perguntou quer saber. Já virou, já me deu as costas, já tem sua resposta, já sabe que raciocino, vai me ouvir pra quê? já tem seu parecer. Sou uma eterna aluna, aquela que de nada sabe sempre posta a aprender, circulo ambientes onde quem fala muito nem é também o que sabe, aliás cê sabe o que fazes aqui? Tem hora que a inteligência mesmo é levantar e sair da sala, estou aqui debaixo dos anais de minhas próprias teorias, um vento passou uma lufada e me debruço em respeito a parte que respeito da grega mitologia quando tenho plena certeza da louca que me atravessa todo dia. Eu não viveria sem ela, minha alma tem o desassossego da incompreensão tardia, todo dia eu fujo, todo dia me vigia. Os ventos com tantas deusas me atravessam, dá mais nunca amada a mais de todas certeira. Não é de hoje que tomo rasteira e caio de pé para servir a humanidade alheia, eu que me vire com os ventos de mim, afinal de contas foi um Jesus caucasiano que me quis assim para o seu bel prazer. Que ature as tempestades que vierem de mim de cada silenciamento infantil, de cada cala boca injustificável, de cada esquecimento previsível, eu me tornei invencivelmente invisível e sigo acendendo fogueiras aos pé de minhas rivais, de minhas companheiras, de minhas amadas amigas inimigas trans, santas putas e muito mais. Até para nos incluir o verbo foi preciso meter o pé na porta, a comida na mesa é o que querem, de onde saiu importa-te? Pergunte e eu lhe direi, mas não acorde meu orgulho, se queres ter um natal de paz deixe a voz desta vó dormir nela.