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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Egrégora (Amaélia - parte 5)

Amaélia parte 5, Dona Jacira - Victor Balde
Amaélia parte 5, Dona Jacira Imagem: Victor Balde

01/08/2021 06h00

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Parte 5

Incluir ao saberes e fazeres
As danças
Os cuidados com o corpo
As mezinhas

- De hoje em diante você vai ocupar o lugar de ser meu filho! Que andou vazio por
toda minha vida.
Dizia crisóstomo ao boneco de olho de botão sentado no sofá.
- Tenho tristeza de mim, porque fui afoita, entreguei tudo que tinha dentro de mim
por nada.
- Ele comeu tudo sozinho e riu-se de mim.
- Depois o pai dele disse a meu pai que ele foi colher outras moças porque era jovem.
- Depois pai morreu de desgosto e mãe adoidou até se acabar.
- Tocou para mim os bichos pra cuidar, os orégons, me chamo Isaura, a tristeza está a
me secar.
Antonino chamou ela pra casar, porque assim tirava da ideia da mãe, de matá-lo por
ele ser maricas e ter amor pra dar a um homem, caso ele quisesse.
Ocorre que Antonino não foi à cerimônia, Isaura nem notou.
O menino Camilo veio ao mundo pra perder, perdeu a mãe no parto, depois perdeu os
pais adotivos e fora entregue em adoção a marinha pra ir ao mar.
Foi salvo pelo olhar de um homem que queria amá-lo como seu filho, e ir com ele à
escola como todo pai faz com sua criança.
Todos se encontraram bem ali na areia da vida, ali na praia.
Foi tanto amor que sentiram que se tornaram uma família, não era uma família
sagrada como aquelas que contam nos contos de fada, ou as pessoas que não os
amava. Era uma família possível.
Crisóstomo serviu um chá pra Isaura nas xícaras velhas de beira trincada, as mesmas
que ele agora deixaria de herança ao menino que deixou de ser órfão para ser seu
filho.
Não precisavam de tralhas novas, precisavam de amor sem cacos.
Ele tirou a criança do meio dos pescadores e o devolveu a infância e a um quintal de
areia.
O boneco de olhos de botão ficou muito alegre desta família possível. E agora o
Antonino era amado, era o tio...
A nossa amizade veio desta vontade já que agora na hemodiálise temos uma nova
família.
A vida é feita de esperança também. Descobri num livro que Kiko Dinucci me
emprestou, O Filho de Mil Homens de Valter Hugo Mãe, e de dentro dele saí amando.
Beirando os quarenta e tantos dei para amar uma mulher que não era você, amá-la
teria sido inclusive muito mais fácil, quem diria?
Eu que andava com o coração peludo, amei.
Com você Exu me reservou só as coisas mais finas como o saber de experiência feita.
A princípio me assustei, o que dirão as bocas?
Que sois safada, mulher é o que dizem sempre uns aos outros e vice versa como tu
também já disseste.

Porque comigo? Porque não?
Arrependimento de nunca estar a contento do mundo fizeram com que eu sentisse
ódio de amar. Me odiasse por ser uma coisa a cada quarteirão de mim.
Mas afinal de contas o que queria a vida de mim? Coragem respondeu a vida.
Não quis viver esta tempestade sozinha, me enchi de coragem e escrevi tudo num
bilhete do jeito que o ib ditava e entreguei a ela. Ela sorriu.
Desde então estive arrastando coisas pra encher as vontades dela por nada. Os
hormônios a flor da pele por cinco anos talvez, não contei, matemática é coisa de
gente solitária.
Mas aquele amor não era pra mim, como eu queria, era pra acordar-me. Era um
combinado dos Orixás que eu não entendia. Quando eu quero, quero e pronto, não
sou de esperar, se não vier eu busco.
Mas os amores não são assim, o coração dela não batia por mim. Foi você que disse:
Sai fora viado, sai fora!
Eu não me reconhecia mais, subia um degrau e descia quatro. Entrava no banheiro de
guarda chuva aberto, dormia tomando banho. E poetizava desenfreadamente, estava
triste e feliz.
Naquela noite a voz de dentro de mim se materializou, sentou-se ao pé de mim na
cama e falou comigo. Conheça seu tempo, lugar e corpo. Pegou a minha mão e levou
ela a um abismo que eu até conhecia mas nunca tocava.
- O amor que sente é bom, escreva, entre com ele pra dentro de um livro pra entender
que amar é bom.
- Voltou a sorrir, que voltou a admirar a natureza, tens agora o seu próprio pé de
feijão. Voltou a marejar as janelas da alma, descortinou-lhe brilho. Veja que tem a
você mesma e se toque se ame primeiro, mais.
Ali descobri a mim mesma, foi a minha primeira masturbação. EU EXISTO! E dentro de
mim tem um ib que sente.
- Eu te amo, dou minha vida por um beijo seu!
Primeira frase que escrevi.
- Farei uma tatuagem com o teu nome, jurei. NUNCA FIZ.
Só quem ama sabe como é maravilhoso ser ridículo. Sete anos depois rimos muito,
nóiz três, quando dividi com ela um pão com manteiga, com dó, dei a ela o pedaço
menor. Esta sim era eu de volta pra mim. Foi o mais longe que este amor pôde ir. E me
rendeu um livro imenso cheio de poesia e imagens.
- O amor que sinto por você faz com que eu exale poesia e morra todo dia e torne a
renascer, estou viva. E só posso te amar se eu me amar também.
Ele me libertou, entrei pra dentro das gavetas da minha vida e fiz o que chamam
curadoria, e estar só não me aborrecia. Fiz uma lista de afetos e desafetos. Libertei
tudo o que eu havia achado dali pra trás e ousava chamar de amor. Ali estava entre as
calcinhas que não uso há anos, convite de casamento, cartões que vieram com
presentes, combucas dos batizados das crianças, umbigos de cada um dos filhos.
Noutra gaveta cinzas de Eduardo, o segundo marido, e a tigela de porcelana da mãe
racista dele que eu uso porque a porcelana não tem nada a ver com isso. Noutra
gaveta, peças de roupas que eu guardava pra quando emagrecesse ou quando fosse
feliz. Ah! Faça-me o favor, rebolei tudo no lixo e pensei: tomara que eu me arrependa.
Não me arrependi. Dei o que estava bom, antes que me recrimine.

Dei de visitar Dona Xica novamente, por amor de querer entendê-la.
Se posso amar alguém que nunca me fez nem uma visita porque não entender a
pessoa que me deu a vida, que até já morei dentro.
Deu-me muitos cascudos, até esqueci que eu havia prometido nunca cascudar
ninguém, eu esqueci, cascudei ta cascudado.
Não se trata de ninguém mudar, só colocar o amor possível só isso.
Depois fui às caixas de brinquedos que nunca havia brincado e abri ao vento. Tornei
curar, abri um caderno de desenho que tinha minha idade, cheirando a guardado,
cansado de tanto esperar. Permiti que as netas brincassem do jeito que elas bem
entendessem. Um sonho pós curadoria.
Caminhava pela avenida deserta com uma criança semimorta nos braços. Pra entrar na
sala do médico o único que estava atendendo em toda cidade, tive que atravessar a
mesma cerca de arame farpado por várias vezes. O que aquela cerca de arame farpado
fazia ali bem no meio do hospital das clínicas? Quando ele chamou para a consulta, ele
chamou pelo meu nome: Jacira, Jacira! Quando olhei para os meus braços a criança
tinha sumido. ERA EU. E desde então deixei de levar minha criança para outras pessoas
cuidar.
Chegamos aos finalmentes na demanda de misturar amores, flores e medos, as nossas
egrégoras. E quis-me assim o destino teimosa, arteira, curiosa multi.
Uma avalanche racista intransponível, pré histórica, empurrava-me para longe dos
meus ideais. Fui vivendo de tempestade atemporais.
MÃE DIZIA E DIZ: Cuidado com o que come, com quem come. O que boas marias faiz é
fica em sua casa em paz.
Velho ditado?
O menino Nico e aquela voz ancestral, sempre surgiam ali nas tempestades a dizer:
Vamos brincar no vento, o vento pode te alegrar, te levar onde tua inocência possa
reinar.
A ventania também é minha mãe. Escuta seu Erê de dentro, não ligue pra sua pessoa
grande, ela tá doente. Foi aí que você surgiu, do nada pra pegar pela minha mão e
dizer : Pra fora viado a vida é linda, tem que gostar de você primeiro.
Estes últimos anos foram os melhores. Se não fosse o incêndio no HC a gente nunca
teria se conhecido, eu acho. Pra Exu nada é impossível. E depois nos separamos e o
destino nos uniu novamente.
Mãe diz umas coisas sobre isso. Tinha acabado de reencontrar as esperança e olha
quem veio no meio, você. Enroscava linhas e pensamentos tentando deixar registrado
no meu silêncio a minha vingança para aqueles que não me quiseram ouvir.
- Quando eu morrer vou deixar baús e baús de coisas intermináveis e vou ficar
assistindo as pessoas abrirem todos eles tentando emendar o que eu pensava, ou o
que deixei por pensar.
Desde que você se foi, as borboletas e beija flores tem me visitado, como sempre,
penso que é você e fico olhando pra ver se elas tem corpo de sereia. Lembra você,
sereia, borboleta, eu uma tigresa com asas um alebrige mexicano. Chamo pelo seu
nome. Porque agora você pode ser inclusive muitas coisas. Valeu viado, você é foda, vá
em frente, tamo junto, tudo tão anímico, fico feliz. Os espíritos nunca se equivocam.
Estou guardando você aqui no meu verso como o Nico.
Lembra quando trocamos o nome de nossas mães só pra falarmos mal delas. Pra elas
ficarem menos bravas e mais próximas da nossa fantasia.

A minha passou a se chamar Xica Mixirica e a sua Lola. Dona Lola tem sentido muito
sua falta, sua doida, além do próprio Alex.
Errei quando afirmei que amor de Tinder não é amor. Botaram fogo no borba, Lola e
Xica tomaram a segunda dose. Achei bacana Lola cremar você, era sua vontade né.
Deve ser interessante, fogo lambendo a gente e a gente nem sentindo dor, mas posso
esperar pela minha vez.
Lembra quando o curso de diáspora me sacudiu? Eu parecia uma criança toda boba
cheia de novidade e você me emprestava os ouvidos. A lei 10.639, a diáspora africana,
a África, o Jongo. Eu me tornando negra em 2003, foi um divisor de águas, com
certeza. Deixei de alisar o cabelo, voltei a dançar. Meu cabelo era um problema? Eu
sabia.
Quando me formei em enfermagem, colegas meus diziam que eu não tinha perfil pra
enfermagem, escreveram no azulejo do banheiro: Tem que limpar a unidade tirando
os pretos. Eu chorei, tive medo de ser demitida, justo quando estava conseguindo
pagar as contas, arcar com minhas despesas. As crianças na nova escola, como eu faria
pra mantê-las lá, eu chorei.
Nem faltava quando ficava doente, me enchia de analgésicos, para suportar as dores
que sentia, com receio de perder o emprego. Não tinha perfil para estar no mundo.
Mas a instituição nos estimulava a estudar, dando bolsa de estudos. Ali mesmo tinha
muita gente que viera da limpeza e já estava cursando medicina, eu me orgulhava
deles. Segui estudando sem deixar o racismo me abalar, mesmo triste eu seguia.
Queria ser aceita ainda, nas rodas do poço, nas mesas, nas conversas de calçada, nas
rodas de samba da vila que eu havia abandonado pra estudar. Ser exército de reserva.
Eu aluguei o corpo sem entender o valor que este corpo tinha, passei a viver de pouco
pão e muito suor, noites mal dormidas.
Muitas vezes tive que jogar comida no lixo fechadinha na marmita sem ninguém ter
tocado. Sentir o perfume, sentir o estômago, arder de vazio e desejar ser aquele lixo
pra receber alimento. Mas é ordem, não se reaproveita alimento mesmo estando
limpo. Achei que o saber me receberia de braços abertos. Imagine a dor de quem
nunca é aceito, vista minha pele, e se eu não tivesse rompido com minha comunidade
teria uma chance. Poderia ir até a casa e receber um benzimento, um cuidado, um chá,
uma anedota sadia, um abraço, mas aquele lugar estava distante de mim agora. Só o
álcool consolava, a estrutura faz com que a gente beba pra suportar.
Tenho uma coisa pra te contar, ainda é segredo, sabe aquela música que eu escrevi
que a gente cantava junto? Dia 22, quinta passada, fui gravar ela no estúdio, senti toda
minha ancestralidade ali comigo e com os meus. "Exu matou um pássaro ontem com a
pedra que atirou hoje". Ah! Se não fosse a ventania que me carrega.
Lembra o que a gente conversava sobre as princesas? Era uma vez, uma princesa que
morava num lugar bem longe, numa torre bem alta, com um dragão. Até que foi salva
por um...
O quanto a gente sonhou com esse trouxa, não vamos chegar a lugar nenhum
enchendo o ndotolo de nossas crianças com esta falsa filosofia de incompetência de
cuidar de si mesma, sobretudo com as crianças herdeiras de nossos legados. Chega até
ser cruel ensinar alguém que ela é tão fraca que precisa esperar que alguém venha
salvá-la. E que por isso ela devera a sua própria vida a esta pessoa.
E graças a Exu já tem vozes de avós como eu assim como tanta gente ascendedores de
sóis.

Já deu né gente? A quem interessa este discurso mentiroso? Principalmente quando
contado pra crianças negras. Nzinga deve dar uma volta inteira em torno da calunga
toda vez que vê uma criança ser educada para virar uma princesinha, fadinha. Nossa
humanidade é inegociável.
Tenho me preparado, quero ser um bom ancestral, uma avó razoavelmente doida pra
legal. Minha bisa via coisas ruins em tudo, coitada, era solidão. Mulheres mais velhas
não gostam de ficar num canto abandonadas, gostam de usar sua experiência,
cozinhar, fofocar, benzer, ser útil.
Quando me deixam sentada num canto sozinha fico muito triste, pensando que as
pessoas não gostam que eu esteja ali. Adoro que minhas netas sempre me perguntam
vários assuntos, fico orgulhosa delas. Minha neta Maria me perguntou: Se o jongo é
importante porque eu nunca ouvi? Paramos a gravação ali e fizemos ali uma interação
importante, servir na bandeja a real história sobre aquela música. Minha neta também
diz que um professor de artes dela diz que só o que vai pra academia é arte. Precisei
dizer a ela que ou ele é ignorante ou omisso. Estamos substituindo a fila pelo círculo,
inserindo a terra dentro da academia, entendendo que tudo o que cura é medicina, e
que uma avó, pode sim, ascender o sol de sua herdeira.
A voz de dentro é uma avó da gente, me orientou a registrar a carteira, a nunca
esquecer as estórias, as falas bestas das mulheres, as coisas alegres e tristes, ela o fez
em minha proteção. E ela sempre estava nos lugares onde eu estava, como minha
sombra. Eu briguei tanto com ela, ela silenciava enquanto eu estava doente ou muito
triste. A tristeza também é um tipo de doença, quando internei por seis meses, quase
enlouqueci. E a voz me dizia pra fazer o que eu gostava de fazer, isso me salvou.
Consegui me aposentar porque segui o que a voz me orientou, mesmo sem acreditar.
Isso me deu segurança econômica, e eu pude cuidar de mim e acompanhar o
crescimento das crianças. Fazia almoço, a gente comia todos juntos quando chegavam
da escola, depois assistia o chaves e cochilava. A gente aprendeu a rir de nóiz mesmas.
Lembra que quando eu internei as crianças gastaram todo dinheiro com material
escolar? E não sobrou nem pra comprar comida, tive que fazer um empréstimo por
telefone, correndo o risco deles gastarem tudo novamente. A pressão ficou tão alta
que fui pra UTI, depois rimos de quando aproveitamos a ausência de nossas mães,
rimos rasgando e refazendo as camisolas do hospital, e fomos advertidas. Depois
liberaram pra gente trazer nossas roupas de casa. Lembra do salão de cabelo que
criamos no sétimo andar? Lembra do tráfico de sal de uma grama? Eduardo só ia na
visita levar o recado.
Tive vontade de ir em casa, acertar contas com eles, mas a pressão subiu demais, não
pude ir, depois rimos muito. Quando eu tive alta, Eduardo foi me buscar de funerária e
eu falei pra ele que que só usaria funerária só uma vez. E ele me chamou de enjoada,
queria que eu tivesse paciência, quem deu nome de paciente a quem está doente?
Depois tive tuberculose, quase morri, depois minha filha teve tuberculose e eu quase
morri de novo.
A voz da minha avó nunca me deixava, ainda muitas e muitas vezes ela veio a mim
como espelho, me lembrando coisas que eu havia esquecido. Cada uma de nóiz tinha
uma história de infância e um prontuário enorme. O ano era 1997, a senhora perdeu a
função renal, e a partir de agora terá que fazer hemodiálise. Você nasceu e já foi pra
máquina.

Desde a infância, sentia muita fraqueza, dor de barriga, tinha manchas escuras pelo
corpo, diziam que era preguiça. Passava no médico ele nem questionava, médicos
daquele tempo nunca falavam com o paciente, ele só falava com os seus iguais. Se
quer nos olhava no rosto, falava para o acaso mas não se dirigia ao paciente. Tirava
foto do corpo da gente como se a gente não fosse ninguém, muito raro quando um
deles faziam uma pergunta sem esperar resposta.
- Mancha de gravidez.
- Não, doutor, eu sempre tive estas manchas.
Continuava ali na invisibilidade, mesmo depois da primeira eclâmpsia, com 14 anos,
ninguém disse que poderia ter morrido e ter uma questão renal. Você nasceu e
morreu com um aneurisma rompido. Naquela época a gente nem sabia que tinha
outros órgãos além de braços, pernas, pescoço e cabeça,,só se estudava mesmo as
partes que usávamos para servir. DEVANEIOS.
Lembra das festas do divino no Cachoeira? A gente era convidada de honra. Ali a gente
aprendeu a dançar jongo, umbigada, descascamos muitos legumes para sopa,
cantamos com Dona Enecide. E ficamos ciente que somos formadas em
desenvolvimento humano nas cozinhas de nossas mães. Tem coisa que a gente vive e
esquece.
A mesa da gente ajeita e rejeita e não tem receita pra quem não quer ver. Aquele
bocado daquela cozinha, o café coado, a gema molinha. As galinhas no mato, o porco
no pasto, eram coisas que o capital ia abominar. O aprendizado sagrado que estava ao
nosso lado era só observar. Encher uma laje, torcer um cobertor, fazer uma unha,
cuidar de um doente. A todo momento e em qualquer lugar se podia aprender e
auxiliar. E todos estes momentos tinha comida, e o pobre coitado desprezado da
história, levou seu canto de glória para outro lugar. Deixou de tecer, de bordar, de
plantar, e de tal forma esqueceu a escrita, que até seu nome se fez esquecer. Deixou o
bocado daquela cozinha, o café coado, a gema molinha, passado, passado.
Então pague pra ver, agora era hot dog, batata, miojo, cerveja no café da manhã. E
para arrebatar a ressaca, tome cachaça, e pra compensar refrigerante. Açúcar,
gordura, farinha e sal. E foi uma beleza até passar mal. Mas existe um Deus que é de
justiça e nunca as costas lhe dá de total.
Não é Deus de igreja, nem de cerveja, está no mundo que é seu quintal. E quando a
doença lhe cortou as asas, a memória lhe fez justiça dizendo: Menina, volta pra casa.
O bocado daquela cozinha, o café coado, a gema molinha, vai lhe curar.
Passado é história, o mundo é imenso, mas o Ataliba é um bom lugar. To aqui agora
escrevendo e é o mesmo que tá ouvindo você dizer: Mas viado, porque você deu esta
volta toda na sua vida pra falar de amor? Se o amor está aqui, tem sido assim desde
então.
Depois disto, quantas foram nossas vitórias e nossas andanças, fizemos história nestes
oito anos de convivência. Como eu cresci andando com você e vice e versa, de Santana
ao HC, do HC a Santana, na Aparelha Luzia, no Sesc, nas fábricas de cultura, no
Cachoeirinha, nas livrarias. Quantas memórias cabem nas nossas andanças, quantas
vezes a gente riu uma da outra na UTI, no pronto socorro, nos shows de Leandro ou
Evandro, rindo das nossas sinas. SAUDADE!
A menina da tapioca me ligou de manhã, logo que recebeu a notícia, choramos juntas.
Lembrei muito de você dizendo: Do jeito que você é exibida tem que ter despedida.

NÃO HÁ UM lugar na cidade, no HC, na minha casa, no Sesc que não tenha mensagem
sua.
Lembra da fonte de saber que buscamos juntas pra aprender mitologia, lembra da
poesia?
Ó fonte que naqueles dias matou nossa sede com uma frase que diz: Quem beber
desta água um dia voltará.
Eu voltei.

Amaélia

- Leia a parte 1

- Leia a parte 2

- Leia a parte 3

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