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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eu me espiritualizo, logo, não religo

Eu me espiritualizo, logo, não religo - Victor Balde
Eu me espiritualizo, logo, não religo Imagem: Victor Balde

20/06/2021 06h00

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Mas mulé, ir à missa todo domingo enfeitada de chapéu, fita e chita era fichinha, coisa
pequena.
E outra, eu ia porque mãe insistia visse, eu ficaria muito bem colocada olhando
passarinho e falando com meu cachorro Neguinho sentadinha na calçada.
E ir ao culto, terça, quinta e sábado era café miúdo e fraco até.
Culto mesmo era cabular a maldita aula, entrar no mato e comer as bolinhas pretas, as
maria pretinhas, pegar carrapato, rolar na grama.
A gente se encontra com Deus quando obedece às leis do corpo, um corpo é são
quando nunca se engana.
Julgo eu hoje pela estiragem da fita métrica da minha própria inconsciência.
Como foi que cheguei a esta conclusão? Te digo, acompanhe meu raciocínio.
Menina, um dia assim do nada, Deus se engrandeceu e falou comigo, igual na
miragem. Sim entrou ali debaixo da minha cama e disse:
- Sai daí miséra, que se eu tivé que entrar aí pá li tirá, se vai si fudê de verdade.
O clarão era imenso, translúcido, diferente, eu vi um Deus de frente, ali, bem na minha
vista.
Eu, ali estava, aboletada por medo da ventania, já tinha usado todos os recursos que
aprendi na colonização pela Ataliba Leonel afora.
Joguei ovos a esmo pra tudo que era santo, e quando não surtia efeito, o jeito agora
era a proteção divina menina.
Nada mais me restava da sapiência que eu trouxera de berço, troquei minha
espiritualidade por hinários, sinais, símbolos, ah! E o terço.
A sombra que me acompanhava, de certo estava por perto, mas a religião me educou
com rivotril que quem fala com sombra e sonho é louco.
E para estes tipos de doidura, mil Pais Nosso é pouco.
Aí minha miga, pra gente acordar e se manter lúcido, só mesmo com um raio caindo
embaixo da cama na casa do terço, ou do berço.
Tudo isso só após uma interpretação minha mesmo sobre o Pixi Tadal! Assim que
interpreto raio e trovão, me explico.
O primeiro risca o céu silencioso igual giz na lousa, coisa que nunca me traz memória
boa, este é o Pixi.
Depois vem o estrondo (Tadal) e todo o resto é obra do meu coração acelerado, do
medo, e vontade que tudo passe logo.
Que vá embora sem demora, e sem me levar, nem telhado, nem minino, nem vizinho
nem nada que a gente que é atalibano já perdeu muito nestes corrês dos tempos.
E muitas das vezes a gente ainda teve que deixar cá os nossos pra corrê e segura pelas
perna da calça algum burguelinho que a corrente de água ia arrastando no meio de
pau e pedra.
Antes nunca tivesse vindo asfalto pra cá, parece que foi feito de tanta má vontade que
até das águas fecharam as passagens .
Água em casa de pobre é assim ou é míngua ou é cheia.
Saudade das minas, dos bicos de água em todo lugar, que a gente se banhava sem
pensar de onde vinha ou pra onde ia.

Quando a gente precisava, tava lá, e o que as muié num gastava na lida a gente lavava
a vida e todo o resto, era pra mãe terra se esbalda.
Mas eu quis crescer, correr mundo, ver os bicos de água, se perder, o progresso
chegar.
Aí veio as tempestades e o mundaréu de água sem passagem.
Tenta salvar um colchão, uma cadeira pra visita ao menos, e com muita sorte um gato,
um cachorro, a gaiola com o pobre do tiziu que nem de gaiola é, ninguém devia de ser
de gaiola.
A basta o peito que é gaiola da solidão, de dentro da gente.
Lembro a mãe gritando lá de dentro quando chovia:
- Recolhe as roupas do varau fulano, que aí vem a tormenta.
Isto não era comigo, eu sou caçula, e raspa de tacho num recolhe roupa, meu serviço
era correr na enxurrada e ver o raio de perto.
- Entra que um raio desse te corta no meio e nem Dona Maria Preta concerta!
Dona Maria Preta fazia um concerto na gente mais do que padre e pastor.
Dona Maria vinha em casa da gente com amor, como eu pude trocar Dona Maria por
passeata, vela acesa, procissão e labor.
O labor enobrece o homem, leva as almas todas para o céu, transforma os brancos em
juízes, traficantes e os negros em...
Mãe dizia que a gente ia pra escola pra virar gente, mas ser gente não é ser escritor,
ser gente é outra pegada, mas se num era pra ler, pra que inventaram a escrita?
Acho que estudei demais, voltemos ao passarinho.
Um bichinho do céu que nem merece castigo mas deve, que fez alguma coisa pra Deus
e foi aprisionado ali naquela gaiola e agora vai ali enchente abaixo sem nem saber mais
qual pecado que cometeu em que artigo incorreu.
Deus as veiz é muito sentido, acho que ele é caçula.
Pois quando eu vi que Deus falou sério comigo eu aprumei, e depois de muito pensar
pensei: fé deve ser isso, e titubeei eu acho.
E olha que eu já devia a ele, de lembrança minha, bem uns quinze ou vinte anos de
promessa de voltar ao rosário, as salve rainha, aos credos que na infância lhe dediquei.
Que a gente que deve sempre esquecer alguma coisa,na conta do cobrador sempre é
mais, valor tributário entende?
E a gente que é castrado da macumba, do Ori, do santo de frente, e foi batizado, nunca
larga a igreja de vez porque a igreja alveja a gente com pecado.
Mas ali na conta dele parece que eu estava quites, nem devia nem contribuia.
E depois que a enchente me levou todos os livros obrigatórios de liturgia, eu como sou
da leitura, você bem sabe pelo tanto que eu tenho dito .
Tive que me valer das literaturas de rapina, nos cordéis da vida, ler a caderneta de
dívidas, e do dinheiro escasso que sempre ganha algarismo novo, a barriga nunca para
de roncar.
E tome mais leitura.
Revista do Conan, o gibi da Mônica, uma ou outra playboy de patroa pra ver coisas que
eu já tinha e usava errado, segundo a igreja.
Que pra mim eu sempre usei certo, a paga é que nunca foi justa.
É bem verdade que eu ali debaixo da cama não estava só, nunca ando só, pra trás de
mim, nas minhas costas, tinha quatro viventezinhos que eu pretendia não perder.

Acho que foi neles que Deus me leu.
Aí quando eu comecei a ladainha do:
- Se o Senhor acabar com a tempestade eu rezo...
E veio o raio e a voz falou no clarão:
- Não me prometa mais nada, estou cheio de suas promessas, você promete que vai
rezar, eu fico esperando, nunca reza. Eu recolho chuva, raio, trovão e vento, assento o
sol, recolho as nuvens, semeio estrelas de todo tipo no céu e ainda reverto a lua de
toda forma pra te agradar em quatro tempos, daí você paga? Paga nada, nunca pagou.
- Se eu bem ouvisse a minha consciência também nunca lhe atenderia, pois de uma
tempestade pra outra eu iria entender que, descaradamente, igualzinho a bíblia, você
mente.
- Mas como dizem que eu sou bom benevolente, que nunca olho o que ficou lá pra
trás, e veja que um dia destes eu de coração aberto cedi aos apelos e ajudei com
desvelo ao próprio satanás.
- Porque negaria um favor a uma mãe de família?
- Mas agora vamos, se componha, tome vergonha, se recolha dai e cumpra o que me
deve.
Pós clarão, eu ali como o magela, toda cagada, nem pensava em mais nada, ou melhor,
eu pensava que agora eu ia ter que sentar, pegar o rosário e pagar a promessa, rezar.
Mas minha vida já tinha dado tanta volta e caminho, que tanto roda e entorta, nem
sabe mais como rezar.
Eu lembrava as luzes na procissão de Nossa Senhora do Carmo, qual nada depois que
fizeram o prédio do motel, achei muito mais bonito, apaguei a luz da santa mesmo que
ela nunca se apague.
Era doida pra saber o que tinha lá dentro, um altar maior talvez.
Aí a idéia ditou isso e eu peguei pra mim de exemplo pra o resto da minha existência
que já é bastante:
- O senhor vai me desculpando, mas na verdade, segundo eu aprendi na liturgia, aliás
numa fala bem rasa até, quem criou tudo o mundo, as aves, as árvores, as pedras, os
tocos, as ruínas, as águas, as crianças, homem, muié foi o senhor. Na missa, dissero
que a gente é de sua semelhança que é igualzim, sem tirá nem pô. Mas eu num pareço
nem de longe com este raio em que o sinhô se transformô, mas numa coisa eu digo, se
o sinhô tem parecença comigo, há de me perdoa, porque lá longe, nas tábuas das
escrituras, quando eu nem era nem brandura nem lisura, quando eu nem era nada,
nem pedra, nem pé da estrada, foi o sinhô que quis me criá, tô errada?
- Então vá me desculpando, tolere minhas mentiras, coisas que eu tenho e nem sei se
devo me livrar, já que somos pura semelhança, e não mudo, vou ter de me conformá.
Céus! Esta conversa durou muito tempo e o tempo clariô.
A conversa foi tão franca que dali por todo diante, e até hoje, a minha vida mudou.
E não foi nem uma, nem duas, nem três vezes que uma ou várias entidades vieram ali
debaixo daquela mesma cama de beliche pra me dizer:
- Saia daí, a tempestade passou, eu quero ver você viver.
Aí eu entendia aquilo como um:
Volta pra igreja, Deus é contigo, e lá ia eu cabeça baixa seguindo um rebanho de
flagelados, esfarrapados, famintos, cheios de mazelas e história ruim.
Com tanta história triste pra recuperar, seguindo o curral dos condenados, levando os
fiim, a única coisa que tinha pra o beato, jogar sal, enche de pecado ou sangra.

E quantas das vezes Oxalá meteu o bedelho em meu beliche e disse:
- Levanta pecador, quem tem fé nunca se cansa!
- Seu Sultão então já parou a chuva pra eu passar, já ajeitou a estrada pra eu caminhar,
já mandou o pão e a carne pra me alimentar.
Mas eu, como uma sarna, era agarrada a liturgia, esta fala bonita e falsa que eu
aprendi acende pra fora, pra o mundo vê que eu ali cria.
Mas milagre que era bom mesmo eu nunca via, que pra dentro de mim mesmo, minha
fé caia.
Eu era toda deslize, entre uma reza, um pecado, um Deus vos guarde, uma bitoca aqui
ou ali, eu seguia, sabe como é, né? A gente sabe que o corpo é pecador, mas a cabeça
é quem guia e, não podendo, enjeitar eu ia.
Como religar o que nunca se desligou?
Caminhando pelas estradas que conheço, pelos ares que domino, esta pergunta me
segue.
Sempre falei com flores, árvores, bichinhos, peixes, será que sou eu este ser desligado
de Deus?
Converso com um pé de feijão desde bem menininha, tive que criar formas pra nunca
deixar morrer o meu ancestral, mesmo sem saber, ancestral o que era.
Mas o que diz a liturgia então?
Ah! Se não fosse a força ancestral que me mantém viva, minha vida nem faria sentido
aqui sem ela, eu nem existiria.
E toda vez que eu senti que poderia sim morrer, toda vez que a religião me negou a
vida, ali eu digo, ela a linhagem a sombra, me pôs a caminhar pra entender o que ela
significa, minha preservação ndotolo em formação.
Aqui conversando com minha sombra, ela que está comigo desde que fui gerada, hoje
nem peço desculpas, porque ela sabe de mim e me puxa as orelhas sempre que eu
preciso.
Um dia pra não sucumbir, eu quis ficar parecida com o mundo e fui ao mundo, e o
mundo me engoliu, sem me aceitar.
Eu me dei cabelo liso, roupa da moda, novas palavras, músicas, comida, eu fiquei
moderna, deixei de ser odara.
Moderna sim, pacificada por dentro nunca.
Eu acreditei na falácia do trabalho enobrece o homem, que existia a necessidade de
buscar um lugar entre os homens de boa vontade.
Mas e eu lá sou um homem por acaso?
Eu sou um corpo que sente e se posiciona de acordo com o que sente, não sou apenas
razão e sou puro sentimento, eu sou humana.
Até debaixo do beliche, debaixo da cama, embaixo ou em cima de...
Tenho um corpo que sente o mundo e tem uma resposta de arte pra valorizar a minha
forma de ver e passar pelo mundo.
Não espere que eu hoje valorize o pensamento ocidental ou a era cristã porque eu
venho da era comum.
Eu sou herdeira de nações solares.

Eu descobri toda história sobre minha linhagem as vezes até me arrependo de hoje
saber tanto, eu sei demais.
O bastante pra entender que eu reproduzo o patriarcado porque fui educada por ele.
Foi por isso que me julguei melhor que flores, tatus e animais.
Mas minha ancestralidade não se perdeu, eu quero sulear, nunca pra o sul dos lugares
que não pertenço, nem pra zona sul, o sul que eu me remeto é o sul que vive em mim.
Sulear, daqui mesmo do Ataliba, nortear é caminhar para o norte e o norte não gosta
de mim ou de gente como eu.
Um dia um ancestral meu cansou de bater na porta do meu ib sem resposta e entrou a
conversar comigo em sonho, e entrou na minha casa corpo, ela habitou o meu corpo.
E me disse assim:
- Abra seu pensamento e me diga, qual foi o dia que eu deixei de existir pra você? Qual
dia você não sentiu minha presença aí dentro de seu ib? Quantas vezes eu insisti pra
que você voltasse atrás, lembra?
- Desde os tempos mais remotos eu andei com você, alias desde que você nasceu,
como sua sombra, eu sou a sua sombra, esta que nunca te abandona, estou presente
em você, e mesmo quando precisei me afastar eu estive ao seu lado. Mas você tinha
medo de me ouvir e eu entendi, tive que deixar você seguir o curso da sua escolha, a
sua liberdade de escolha.
Quem está perdido precisa achar um caminho.
- Todo mundo volta um dia, eu tinha certeza que este dia chegaria, quando você me
deixaria estar ao seu lado novamente.
- Lembra do medo que você tinha, da noite, da chuva com vento dos raios? Eu lembro
de todas as vezes, que desesperada, fez promessas pra tempestade passar por medo
que a casa caísse sobre sua cabeça e de seus filhos. Uma vez você jogou um ovo pra
Santa Bárbara e a chuva se foi.
- E tantos ovos depois, achei besteira, mas era nisto que você acreditava, quem era eu
pra mudar o seu pensar, você tinha medo da chuva e eu só pedia pra chuva parar. Foi
aí que vieram as promessas de voltar a igreja de retomar as orações como era antes,
na ponta da língua a qualquer momento você vomitava o palavrório ocidental. Uma
roda de terço inteira, até perceber que aquelas palavras eram um decoreba que nada
mudaria na sua vida.
- Achei que Santa Bárbara talvez fosse uma mama sua que atravessou no negreiro e
estava ali do seu lado simplesmente porque nunca abandonou como eu, por fazer
parte de você. Quanto arrependimento em saber que os anos que passei indo às
missas nunca lhe serviram de nada, ou melhor pensando, enfraqueceram.
Quem seria na verdade o Deus temeroso que se escondia atrás das escrituras e que
enchia de pecado alguém como eu, que tinha uma ligação tão grande com a natureza.
E que quando o último fio de esperança se foi teve que se encontrar como
desconhecido, cair muitas vezes até aprender que ancestralidade não é religião é
linhagem.
Eu descendo de seres espiritualizados, sou parte da natureza eu não preciso religar
pois nunca me desliguei.

Mas cada avatar, cada Deus traz em si a história geográfica de seu povo, assim é que
existe o deus das montanhas, as deusas do mar, do gelo, do fogo, do ar, da terra, o
espírito das árvores, dos passarinhos.
O Deus do meu bairro Ataliba Leonel.
A arte que botamos pra fora é um Deus soprando de dentro de nós, um ensinamento
pra ascender o sol da gente.
Tem os artistas que cantam, que tecem, que plantam, que cozinham, que bordam,
transformar a matéria é viver é estar perto de Deus.
Mas todo e qualquer artista pode e deve sonhar, o sonho é a viagem que a alma da
gente faz sempre que o corpo descansa.
Ela sai por aí conhecendo outros lugares e volta cheia de novas idéias, a gente nunca
deve comprar livro sonhado, devemos escrever e contar os sonhos todo dia.
Como uma pipa que vai lá no céu e dança, e volta sempre com uma ideia de um dia
diferente.
Ah! Já pensou se eu pudesse ser uma pipa? Ou então ser uma ostra e viver pra além da
loca de pedra da casa de Olokun, pra além do fundo onde moram as mais lindas
sereias, e lá, bem quietinha, produzir o milagre de pérolar?
Eu seria um corpo nas águas do mar.
A religião surgiu para mostrar algumas belas criações humanas também.
Lembrar é pra além de uma única existência, primeiro imaginar, depois criar, e o belo
está posto.
Lembro quando eu deixei tudo e entrei pra o budismo, foi o timbre da sineta tibetana
que me chamou, o timbre falou comigo ele dizia:
- Vem, vem, eu gosto de você também, vem.
Tempos atrás era o timbre do sino da igreja que seduzia.
Que bom seria se nunca tivesse a liturgia, se o culto fosse só contemplação.
Lembro cada vez que entrei numa nova igreja fugindo da perseguição da anterior que
não via a menor importância em tudo o que eu via.
Elas só viam valor no timbre que as moedas faziam.
Eu nunca errei por querer, mas eu cansei de sofrer e acreditar naquela realidade que
nenhum bem me trazia.
Toda vez que eu ia pra um templo novo era uma renovação, até que os fiéis ali viam
que eu não levava comigo nenhum tostão, eu só tinha fé.
Aí a gente avacalha, mistura as coisas todas, quer passar a perna na canalha, deixar de
ser trouxa.
Ninguém quer viver ou consegue viver neste mundo capitalista sem nenhum vintém.
A gente quer subir na vida, tem uma hora que as palavras que nunca se realizam não
botam medo em mais ninguém.
De repente eu me vi com uma liturgia em mandarim ou chinês nas mãos, e tentava
seguir o coro, eu me perdia e olhava a irmã do lado.
Quando ela virava a página eu fazia igual, era na valência dela que eu me valia.
O som da sineta do timbre tibetano se perdeu.
Até um orixá me dizer:
- Mulé como você vai ler este monte de embaraço, você é chinesa?
Tem hora que, querendo ou não, as cartas amanhecem postas na mesa.

E o dízimo, o kofu, a esmola que a gente precisa levar sem demora a casa de Deus
gasta demais, é passeio de padre, festa de pastor, este povo gasta sem pensar a toda
hora.
Aproveitei que já estava excomungada pra fazer minhas próprias escolhas.
Quando meu irmão morreu eu acabei de romper com a igreja católica, era o cúmulo de
eu matar meu irmão e ainda querer que eu continuasse amiga dele.
Na verdade eu ainda voltei algumas vezes sim, pois miséria, pecado e pobreza sempre
são assuntos mal resolvidos.
Foi ali no salão paroquial que eu tive contato com pessoas de uma coisa chamada
política e nunca mais eu quis saber de ir ao andar de cima.
Eles falavam de direitos e deveres, de um governo ruim, ainda não falavam de racismo
mas já falavam de violência doméstica.
Foi assim que eu entrei para o movimento de esquerda porque agora eu havia achado
um inimigo a altura de carne e osso que era prefeito ou governador.
No caminho pra igreja tinha jogo do bicho.
Ah! A bisa sempre jogava no bicho no caminho pra igreja.
Nos anos que transcorreram eu iria conhecer tanta religião que considero uma
faculdade de tanta informação que acumulei de lá pra cá.
A cada medo a cada rompante eu usava algo da liturgia, mas não guardava apego
nenhum a crença, me faltava algo.
Anos depois mandei tudo, merda, com muito respeito.
Eu tentava deixar de religar, mas sentia falta das companhias de caminho e intervalo, e
dos encontros nos firmamentos pra cuidar das festas marcadas e das marcas contadas
nas festas.
Pois é, neste momento eu nem sabia que a gente ali se humaniza, que se encontrava
pra firmar, trocar e marcar os nossos ciclos.
Eu desenvolvi várias teses relacionadas a religião, e volta e meia, eu recorria a
qualquer uma delas nas minhas horas de infortúnios ou alegria ou desaforo, e sendo
assim, Confúcio, Jeová, Cristo, Jesus, Gandhi, Dândi e até César, todos já estiveram
ladeira acima ou abaixo comigo n'algum momento.
Mas quem me chamou a realidade de volta pra mim mesma foram os deuses da minha
lei.
Foi assim quando o telhado de casa voou.
Quando me descobri morando em casa de telha em dia de ventania.
Aliás, o telhado foi o que mais me levou a nunca sair da igreja, ele segurava meu Ori.
Meu sonho era voltar a morar numa casa segura de ventania.
Entre muitas idas e vindas eu fui também da Seicho-no-ie.
Quando budista, ralei os cotovelos em cinco horas de oração sem cessar, vou contar
como foi.
Depois veio o kardecismo, que me ensinou: Quando tudo o que você aprender aqui
fica parecendo pouco pra você, não hesite em se levantar e seguir.

Também me recordo da última dita por um homem besta, num domingo:
- A razão da degradação do mundo e da desorganização da família acontece porque as
mulheres trabalham fora e não conseguem cumprir seu papel em casa.
Chegou a minha hora de levantar e sair, e eu nem olhei pra trás.
Foi assim que entrei no teatro e ali eu dei de cara com Deus.
O senhor Sultão da Mata sentou comigo e me fez ver a quanto tempo ele também me
guardava e protegia.
As sombras, as mensagens, sonhos, nunca foi acaso, nunca foi sorte, sempre foi
cuidado, sempre foi a minha falange a me proteger.
Sabe aquela pessoa que eu nunca tinha visto, e que aparecia e me dava um conselho e
seguia sem nem eu ver a sua face? Era o acaso, era um orixá, era Deus me guiando a
subida me dizendo:
- Levanta mulher maravilhosa que quem te guarda não dorme.
Buscando retalho por retalho de minha jornada eu me deparei com o filme da minha
vida e encontrei ali com retalhos meus mesmo, era de longe que eu era assistida e
fiquei feliz pela minha própria vida.
Depois que veio a música: Mãe conta pra mim como foi aquela história do dia que o
pai morreu e o Orixá avisou a senhora na festa de cosme? Então veio a letra vivida: Era
sábado, chovia lá fora...