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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Esta viagem vai pra Uol Ecoa: Arruma a mala, aí!

Grãos - Victor Balde
Grãos Imagem: Victor Balde

16/05/2021 06h00

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-Oh de casa! Num vim brigá, vim trazer paz, vô logo dizendo, vim fazer um convite.
-Quero que conheça o mundo comigo, suas tias, seus primos, coisa que deixemos
pra trás quando viemos pra São Paulo.
-Oba! Vô também, ninguém me convidou, mas a gente é família então o convite se
estende a mulher e filha.
-Não Ge, minha fia, o convite é pra Migué, eu só levo Inês porque ela quer ver uma
irmã dela, que não vê derna tempo de minina.
Eu nunca entendi porque seu marciano me chamava de Ge.
-Vô leva Migué meu fi, porque ele ainda não está trabaiando.
-Deixa eu entendê, Seu Marciano. Pra trabalhar tinha que arranjar emprego, e pra
arranjar tinha que procurar.
E o emprego de Miguel desde que eu o conheci era dando baile, ele e meus irmãos
junto com outros rapazes ensaiavam em casa, iam pra galeria do rock e para os
salões de baile juntos todo sábado. E pra nóiz isto não era emprego, e como nunca
é tarde pra pergunta.
-Qual o ofício dele? Eu deveria ter feito esta pergunta antes de casar, mas não fiz,
mas tá sempre em tempo.
Miguel era um o que se poderia chamar de pé de valsa ou pé de rock e samba rock.
Como diziam naquela época, o Pai Nosso mesmo ele não sabia, mas era só ouvir um
talisquinho de som e saia dançando.
Miguel dançava muito bem, eu nunca soube dançar e tenho vergonha ou tinha, e se
lhe servir de consolo, eu sei o Pai Nosso, infelizmente, está no ndotolo da minha
memória, e nunca me orgulhei de sabe-lo, preferia dançar.
Naquela época eu estava trabalhando numa fábrica de bolachas que tinha acabado
de chegar aqui. Eu estava de licença maternidade.
Ai o danado disse assim:
- Sim Ge, minha nora, é com seu dinheiro que penso levar Migué.

Tinha uma coisa que ele ainda iria descobrir sobre mim, muitas.
Se tinha uma coisa que é muito difícil é tirar de minha mão um tostão meu sem
minha complacência.
Meu sogro descobriu isso, mas fingiu que não.
Ainda iria passar muita água debaixo desta ponte.
Porque sim, porque não, e muitos diz que diz, ficou acertado que se eu não fosse
Miguel também não iria.
A verdade era que dona Inês não queria ir, ela tinha lá suas razões que eu nem
imaginava, nem Migué eu acho. Ela tinha uma contenda com sua irmã, coisas do
passado.
Eu disse a ele:
- Eu vou ou Miguel também não vai.
Algumas discussões depois ficou tudo ajustado. Iria todo mundo.

Na semana seguinte estava tudo arranjado.
Mala feita, passagem comprada,
Minha mãe disse assim:

- Vou preparar uma matula de comida pra você levar na viagem, mãe fala esta
palavra eu que botei a matula na fala dela.
Mãe ainda faz isso
Quando o passeio é no cinema
Horto florestal
Franco da Rocha.
Bem na hora da fome da gente ela destampava lá uma vasilha cheia de farofa.
Fazíamos a festa.
Quando era no cinema a gente morria de vergonha, mas comia.
Tinha vez até que servia até as pessoas do lado.
Mãe foi a pioneira neste negócio de comer no cinema, só não patenteou.
E só então muito tempo depois o cinema passou a vender pipoca cheia manteiga,
que deve bem ter sido ideia dela, mas a dela é mais gostosa.
Tá no sangue das mulheres negras arranjarem tudo com comida, e tudo o que é
mulher que conheço não cozinha dia de sábado, será que mãe inventou isso
também?
Tínhamos poucos meses de casados.

Depois que eu casei, houve uma trégua entre minha mãe e eu, como você pode
observar.
Falando da viagem.
Tudo certo, nem tanto.
Minha sogra tinha um problema que era fácil de resolver.
Ela não tinha mais nenhum dente e precisava chegar em Dracena com dentes.
Senão o que o povo de lá pensaria do velho.
Que ele não era capaz de manter nem os dentes de sua mulher na boca dela.
Ele mandou fazer uma dentadura pra ela.
Mas ela nunca que foi ao protético, hoje eu ouso dizer que meu sogro usou algum
método para medir a boca dela.
E fez assim de tal forma que ficou enorme.
Ela detestava, ficou enorme e ela quase não conseguia falar com aquela
parafernália na boca.
Mãe também fez, mas a de mãe cabia na boca dela.
Era luxo e era moda até tirar os dentes todos e botar chapa.

No dia da viagem chegamos na Estação da Luz oito horas antes de embarcar.
Eu tava no fluxo, pra mim tava de boa, adoro bagunça de viagem e ficar à toa
jogando conversa fora.
Dona Inês nem tanto.
A partida seria às nove da noite, mas às quatorze horas já estávamos lá.
Meu sogro comprou passagens de trem porque era mais barato.
Eu adorava viajar de trem, quer dizer, eu viajei quando era meninota, quase nem
lembrava, achava que iria adorar viajar de trem.
E gostei mesmo.
Já havia viajado pra Itápolis e Rio de Janeiro de ônibus, que mãe e moderna.
já havia ido com tio e padrasto de trem pra Santos e gostei.
E já tinha a música de Caetano "a franja da encosta, cor de laranja, capim…"
Como seria ficar horas dentro de um trem já já eu saberia.


Éramos os primeiros da fila, então seríamos os primeiros a entrar na maria
fumaça.

Na verdade só teve a gente na fila porque o trem encosta na estação uma hora
antes de sair, as pessoas que também compraram passagem iriam com a gente,
sabiam disso.
Ainda de tarde, ali no mesmo lugar, estávamos nós.

- Ineizi, cadê seus dentes?
Era assim que ele pronunciava o nome dela.
Os dentes haviam ficado em casa dentro do copo com água onde eles moravam.
E começa apertar a boca dela querendo ver se estava mesmo na boca dela.
Ora, se estivesse na boca dela a gente conseguiria ver de longe.
Não estava.
Quando ele largou a boca dela ela pode falar:
-Deixei em casa, não sabia que você queria levar.
Estas cenas eram horríveis, ele mandava na boca dela até.

Ele não pensou duas vezes, parou um táxi, se meteu dentro e voltou no Fontalis
Andar de táxi naquele tempo era o mesmo que andar de avião, só se fazia numa
extrema necessidade.
O corpo de meu irmão veio de avião.
Deduzi ali riqueza e importância.
Pra buscar a dentadura que ficava num copo com água em cima da pia.
Bem de tardezinha ele chegou com a dentadura, mandou ela abrir a boca e socou
os dentes lá, e disse a ela que não tirasse eles de lá por nada.
E a toda hora ela tinha que abrir a boca e mostrar pra ele que o dinheiro dele
estava sendo aproveitado.
Eu estava começando ver como era a violência dele para com ela.
Mas não entendia porque ela aceitava.
Faltava pouco pra eu entender o que era medo.
O silêncio caiu sobre as horas que restava pra viagem começar.
Os ponteiros da Estação da Luz rodavam sobre nosso silêncio, eles iam bem
devagar.

Mais algumas horas e chegaria a hora de embarque .

Hoje é 6 de maio de 2021, este texto foi escrito em algum tempo que não lembro,
mas a vida o escreveu em 1981.
Naquele tempo a família era representada por um homem, o mais velho que ali era
o meu sogro que exercia este papel com prazer e pulso firme ou quase.
Ele ali se pôs a frente da família e antes de entregar o bilhete nas mãos do
funcionário, ele fez questão de apertar a mão do rapaz e conversar.
- Estou levando minha família a viajar, pra visitar a família do outro lado do mundo
e blá blá blá.
O homem cheio de importância foi educado mas não lhe deu intimidade, pegou as
passagens, picou e abriu caminho pra que entrássemos no trem.
Ali agora cada um estava por seu próprio pensamento.

O sogro falando às paredes, Dona Inês pra dentro dela calada, eu com o
pensamento fervendo, Miguel brincando com as crianças e hora ou outra
respondendo a seu pai alguma pergunta.
O trem era lindo, todo azul, cadeiras confortáveis, tinha restaurante cheio de
mesinhas, e em cada mesinha um vaso de flor.
- Seria plástico?
Depois veio a decepção.
O vagão que era restaurante não funcionava mais, mas ainda tinha as mesinhas
com um vasinho com flores sobre elas, sim eram de plástico.

Já me deu fome de vontade de sentar ali nas mesinhas e alguém vestido engraçado
me servir.
A gente já estava aprendendo a enjeitar a comida de casa pra comer fora.
Era um outro tempo, muito importante aquilo de viajar com a família, mãe não
fazia viagem longa, era só construindo casa sempre.
Minha vida iria começar, valeu a pena sofrer pra agora até poder viajar.
Eu me acomodei, minha sogra também.
Era só esperar o trem sair, sim, apitar e sair igual na TV.
- Boa noite senhor, suas passagens, o senhor não esperou pra pegar, disse o
picador.
- Dê aí nas mãos de minha família.
Elas vieram parar na minha mão.
Eu perguntei diversas vezes o que eu fazia com aqueles papeizinhos
engraçadinhos.
Ele me olhava de lado, ele ainda não havia digerido o fato de eu ter ido com eles na
viagem, ter peitado ele.
Eu perguntava pra Miguel e ele dizia:
- Pergunta pra papai
Acho tão engraçado chamar um homem tão violento de papai.
Mas papai ia de banco em banco apertando a mão de todo mundo como se
estivesse pedindo voto pra próxima campanha eleitoral.
E pra todos que a ele desce confiança ele contava aquilo que o guarda não deu
ouvidos.
O porquê da viagem com a família.
E chamava o filho e apresentava.
Aquilo era novidade pra Miguel, que eu bem sabia que ele foi criado debaixo de
cacete.
Tivesse perna fraca e teria muito mais galos na cabeça do que os que já trazia.
A vida era dura.
Nem sempre foi aquela maria mole ali.
A apresentação não incluía as mulheres, e eu queria mesmo era me acomodar.
Tem uma coisa engraçada
Dentro da vida levada
Entre o sofrer e o não
Entre o querer e o não
Entre o poder e o não
Tinha sempre um braço forte

Um dedo em riste apontando um norte
Mostrando a vassoura o canto da casa
Esfregão
E uma menina rebelde, ingenua
Dizendo não
O braço forte dizia um dia eu te dobro
E eu dizia venha
Quem me deu tanta coragem
Com tão pouca idade
Sei lá
Mas sei que no fim das contas
Eu estou aqui com parte da minha ingenuidade
Sou cheia de vontades
E delas é o meu caminho
Sei que rumo ele levou
Nem sei se me sentiu dobrada
Só sei que quando subi
Quando lembrei de olhar pra trás
Não vi o braço forte
Só vi minha força
E mais nada.
Naquele dia
Nem nunca mais
Saio do devaneio e volto pra viagem, com uma certa pena.

Havia ficado horas de pé pra ser a primeira de uma fila que não existiu e só isto já
era um grande aborrecimento, o pouco caso de seu Marciano também me
aborrecia, não gosto de ser ignorada, ninguém gosta.
Mas é que em pouco tempo de casada já havíamos nos encrespado várias vezes, e
ele dizia que eu por ter sido educada por mulher, precisava ser reeducada pelo viés
de um varão, ele.
Olha, nosso entrevero começou mesmo já no início, quando fomos marcar a data
do casamento.
Ele não queria que casássemos em cartório, dizia que era besteira.
Mas mãe bateu o pé, raspou o pé no chão e disse que a filha dela, eu, dali de casa
sem casar não sairia, eu achava que mãe tava certa e muito.
Eu queria mesmo era saber da festa, eu tinha treze anos.
Aí mãe perguntou a ele se ele poderia ajudar com as despesas do casório pois ele
vivia arrotando riqueza em cada canto da vila.
Ele não tinha dinheiro, Miguel não tinha emprego, nem procurava, só queria
dançar e tocar em baile.
Já no cartório, quando o escrevente disse que tiraria o Roque de meu nome pra
ficar igual o nome de Miguel depois de casada porque nóiz dois já éramos Oliveira
eu disse:
- Vai tirar o Roque de meu nome não, deixa aí, e foi um sururu danado do povo
todo explicando pra mim que aquilo era lei e que se eu não consentisse não
poderia casar.

Só casava se aceitasse o nome de Miguel, mas que nome Miguel tinha se ele era
Oliveira como eu.
Tira porque tira, põe porque põe, o fato é que eu também finquei pé e dali não saá
enquanto tudo não ficou resolvido.
- Pois eu só saio daqui depois que os papéis começar a correr e com meus nomes
todos e assim se fez.
Seu Marciano ficou bagunçado com a minha teimosia em não querer o Oliveira dele
na minha família, e eu falava alto e batia o pé que não.
Depois ele se conformou, e sumiu no oco do mundo, só apareceu com a família no
dia do casamento com medo da mãe querer dinheiro.
Nem pra ajudar na cozinha eles apareceram, naquele tempo era costume de todo
mundo se juntar pra preparar a comilança.

A segunda contenda foi quando Kátia minha filha nasceu.
Miguel chegou bem pertinho de mim e disse que caso eu concordasse ele queria
fazer uma homenagem ao seu pai, no que eu concordei dizendo que por mim tudo
bem.
Mas ele não me disse qual era a homenagem e assim que soube eu disse não.
Seu Marciano queria que o nome da menina fosse Marciana, eu nem mandei
recado, respondo na lata, não, não, não.
Entre estas quizilas e a viagem teve muita birra entre nós dois.
Então a viagem já estava cheia de remordimento nosso, e ele não perdoava.
Aí ele, quando queria, falava comigo, quando não queria, me ignorava.
E queria saber o que fazer com os papeizinhos picados, ou seja, as passagens.
De repente o trem apitou, andou e eu feliz, muito feliz, abri a janela e joguei tudo
pro alto.
Foi lindo a chuva de papelzinho com tudo aquilo ficando pra trás.
Tudo o que?
As passagens picadas.
Achei que poderia fazer isso, o moço já tinha visto.
Meti a cara na janela e segui viagem olhando o iluminado das casas.
As crianças a brincar na rua.
Vilas de casas lotadas.
Cidades vazias.
E o trem cantava nos trilhos, corria em linha reta, a lua imensa acompanhava a
viagem, era o contraste do céu azul marinho com o clarão dos postes iluminados.
O trem seguia abrindo caminho cantando.
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Passa lagoa
Corre riacho
Que saudade que eu sinto
Olha o galho de história, debruçado no riacho, que um dia eu vou contar
Que vontade de chorar
Sobe montanha
Solta fumaça

Café com pão
Manteiga não
Café com pão
Manteiga não
Era a música da TV, agora eu poderia usá-la na viagem naquele pensamento meu
tão a vontade, eu ainda tinha treze anos e uma vida pela frente.
De tempos em tempos entramos em trechos que não tinha casas, depois parava em
uma estação.
Descia gente, subia gente com mala, sem bagagem, com criança, gente de todo jeito
entrava no trem.
Aí novamente eu esperava ele apitar e seguir, piquiri, piquiri, piquiri, piquiri até
pegar embalo, aí vinha a baforada de fumaça piuiiiiiiiiiiiii, o resto era viagem e
devaneios, que vontade de descer e estar ali naqueles meios, coisa que eu nunca
quis.
Parece que de longe tudo é mais bonito, o trem tocando apito faz todo mundo feliz.

Meu sogro e minha sogra eram filhos de santos de Dona Maria Preta, nossa
sacerdotisa, que naquela época já estava doente, e ele vinha ver ela todo dia antes
de seguir para o Fontalis, o que gerava calúnias sobre ele, o povo dizia coisas.

Já minha sogra quase nunca saia de casa pra longe, porque ela era parteira,
benzedeira de mão cheia, até me iniciou a benzer de sol e sereno e algumas vezes
eu acompanhava ela no atendimento de parturientes, ou melhor, paridas que ela
atendia.
Na frente da casa tinha uma árvore de sabugueiro que ela usava flores e folhas pra
tudo e ia me ensinando, porque minha cunhadas riam dela zombando dos saberes
que ela tinha e ela ficava muito triste por isso.
Muitas vezes ela vinha escondido a casa de minha mãe pra falar sobre mim, coitada
ela achava que eu era desobediente e louca porque no saber dela eu deveria ser
uma mulher que aceitasse receber ordens de Miguel e Seu Marciano que era o
chefe do quintal.
Minha mãe dava risada quando ela perguntava como eu fui educada.
O trem seguia.

- A passagem senhora, daqui pra frente preciso picar novamente.
O moço que picava passagem deixou entrar no trem mais um tanto de gente.
Era justo pois se ainda tinha assento, que entrassem logo pra viagem prosseguir.
Aí o homem ia de cadeira em cadeira pedindo alguma coisa.
Eu achei que ele queria conversar
Foi só depois que eu soube
- A passagem senhora, onde está?
Ali tivemos um problema
Meu sogro disse apontando pra mim:
- Ge, dê as passagens pra o moço picar.
- Qual?
- Aquela que tá com você.
- Vish, joguei pela janela, ficou no caminho lá pra trás.

Precisava ver as duas caras, a do chefe de estação picador de passagem que não
quis saber. E a de Seu Marciano.

Aí foi que a gata torceu o rabo.

E não valeu aperto de mão e nem dar a palavra, nem jura, nem lenga lenga, se quer
viajar passa o meu pra cá.
Teve que pagar tudinho de novo pra viagem prosseguir.
Mas Deus era testemunha de que eu havia perguntado.
Sabe se lá quantas vezes e ninguém me deu atenção.
Queriam que eu ficasse com os papéis na mão até quando.
Rebolei eles todos no mato.
Ou nos trilhos.
Ele olhou pra mim com raiva grande
Fosse mãe teria me enchido de cocorotes.
Acho que ele teve vontade, não teve coragem, depois tudo voltou a ficar em paz.

Meu sogro, certa feita, levantou falso de mãe.

- Ah! Ela é louca por mim, finge que vem aqui visitar a fia malcriada dela mas vem
mesmo é me ver.
Miguel me contou que a mulher em questão ali era a minha mãe.
Eu não titubeei, gostava duma contenda como ninguém, esperei o dia amanhecer,
desci o morro, contei pra mãe.
Mãe ficou brava, tirou dos cachorro, pois nele, e no final ainda foi pra cima dele,
empurrou ele, derrubou ele no chão e tudo mais, e eu assistindo.
- Vocês viram como ela me bateu, aquilo foi pancada de amor!
Olha como o danado era atrevido, mentiroso.
Mãe não estava mais lá e eu não contei mais porque conheço a brabeza dela, e
também por respeito por ela, o véio era a toa, era viagem sem volta o infeliz.
Segue a viagem.

Tudo resolvido, o trem voltou a caminhar.
Ele não falou mais comigo durante as dez horas de viagem.
Caso precisasse de algo como café, um lanche.
Ele se referia a Migué.
Que com Dona Inês ele pouco falava mesmo.
Eu tinha comida, minha mãe me ensinou cuidar da própria comida, não aceitar
que estranhos me alimentassem.
Lembrei de um fato agora que fez com que meu rosto corasse e queimasse de
vergonha enquanto escrevo este texto.
Se eu tinha esta informação, porque me perdi tão fácil e vulgarmente me
entregando a esfihas, e lasanhas recheadas de molho e queijo que nem dava pra
carregar em viagem, nem me matava a fome da imensa solitária minha amiga que
sempre andou e anda comigo.

Mas se coro de vergonha também me absolvo pois eu era jovem, e era velha e
jovem ao mesmo tempo.
Tinha em mim o espírito aventureiro de experimentar que hoje, tendo já vivido
meio século, e tendo já preferência por sabores comuns menos molhados, hoje não
é qualquer prato que me compre, mas naquele tempo eu era como um infeliz
bandeirante de mim mesma traficando e colonizando minhas vontades,
maltratando partes de mim.
Senão eu nunca estaria nem nesta viagem que narro agora, nem teria casado com
alguém sem expectativas, notem que a viagem está pra lá do meio e Miguel esta
como as crianças, no seu mundo particular, e desde que meu sogro chegou em casa
falando da viagem ele não havia dado ainda nem uma palavra.
O velho e eu decidimos a vida toda dele, acho que ele tinha medo do pai, mas eu
também tinha respeito pela palavra de minha mãe, porém eu tinha minhas
vontades.
Agora eu aqui paro e pergunto a mim mesma:
- Jacira, que merda tinha na sua cabeça?
Ao que eu mesma respondo:
- Liberdade e burrice, falta de informação, eu era banhada lavada e enxaguada de
ignorância, senão jamais teria entrado numa fria tão grande.
Mas eu, dali sairia uma macumbeira honorária cheia de mandinga trabalhada nos
encantos, e com o topete aparado, eu era topetuda, eu peitei o mundo, abri os
braços e pulei no barranco no desconhecido com a cara e a coragem.
Também filha de quem sou não poderia ter sido de outra forma, e se eu por acaso
não tivesse tomado iniciativas na vida, Miguel mesmo é que nunca as teria tomado,
aliás nunca tomou.
E na minha família, que também nunca foi totalmente pacificada, ter pelo menos
três refeições por dia era sagrado e era direito.
Eu achava que minha mãe tinha a violência nas mãos, então eu descobri que ali na
casa de meu sogro a violência sim era generalizada sem direito a alimentação, isto
era desumano.
Só mais uma coisa sobre mãe.
Quando alguém levava um pratinho de comida lá em casa pra ela experimentar, ela
agradecia e deixava por ali.
Eu, muitas das vezes, vi ela rezar e jogar o bocado pra trás, e naquela hora eu
sentia raiva e vontade de comer aquela comida.
Muitos anos depois aprendi, numa roda de jongo, que não se come comida que a
gente desconfia e que precisava jogar fora e pedir proteção.
Porque nossos ancestrais tinham por hábito ser anfitriões e receber gente branca
estranha no seio da família, trazer a mesa, dar guarida e cama limpa.
Foi assim que fomos perdendo território, sendo bom com quem era ruim.
Minha mãe é sábia, eu é que sou besta, ou era, a danada é mandingueira e as
mulheres daqui eram muito sábias, trunqueiras e protetoras.
E casa de mandingueira é como quilombo, comida não falta.
Já meu sogro adorava uma subserviência, uma subalternidade, mas a fome tirava o
orgulho dele.

Levar a própria comida, seja lá onde quer que fosse, era hábito meu.
Então a fome fazia ele falar comigo, mesmo que indiretamente
Ele tinha dinheiro.

Eu a comida.
De resto a viagem foi linda, o trem correu trilho a noite toda.
E quando amanheceu, o astro rei firmou lá por detrás da mata sobre todas as
coisas.
O que era a carranca dele diante deste sol de infinita grandeza?
Na minha cabeça uma música.
Toca lenha na fornalha seu maquinista que eu preciso.
Muita força
Muita força
Muita força
Muita força
Corre estrada
Corre vento
Corre cotia
Lá fora, na rua, amanheceu.
O dia das pessoas se levantava e eles saiam pra se expor à luz do sol.
Uns iam pro trabalho.
Os miúdos pra escola.
E a gente passear.
De repente o trem pára.
Parou por quê?
Porque era uma travessia e as pessoas precisavam fazer a travessia.
A gente só queria seguir.
Pronto a cancela levantada, novamente e, piuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.
E a fumaça do trem resfolegava.
E ele partia.
Dentro do trem as pessoas iam acordando.
E alguém dizia:
- Migué, vê com Ge se ainda tem café.
Ao todo viajamos em cinco pessoas
O chefe, meu sogro.
Dona Inês, minha sogra que seria a primeira dama.
Miguel, Kaki, e Cristiano, filho de Alzira, minha cunhada.

De tardezinha o trem apitou na estação.
Tocamos pra Ouro Verde, casa da irmã de Dona Inês.
Quando chegamos já era quase noite.
A casa era linda, de madeira, sabe, uma casa feita com carinho.
Tinha um telhado de quatro águas, as madeirinhas todas pregadas certinhas sem
deixar brecha pra entrar vento.
Era um encanto.
Tinha tudo dentro e era plana, a tia morava ali com uma filha apenas, que as outras
estavam em São Paulo.
Nosso quarto estava preparado, então, peguei as crianças pra cuidar e chamei
Miguel.
Ele veio, por que não viria?
Naquele tempo ele ainda me ouvia, foi depois que ensurdeceu.

Acho que Seu Marciano deve ter enviado aviso dizendo que chegaria.

Depois da emoção, da surpresa, teve outra surpresa, a vida é cheia de surpresas.

Meu sogro falou:
- Enquanto as muié põe o papo em dia e ajuda as muié da casa prepara a janta a
gente vai conhecê a cidade né Migué?
Eu já disse logo:
- Eu também vou, também não conheço a cidade e não vim aqui pra fazer janta.
Nem amizade, pra o tanto que a gente se conhecia boa noite dizia tudo.
Foi um sururu na casa.
As mulheres me acharam atrevida
Os homem olharam pra Miguel com a mesma rabissaca que mãe me olhava na sala
de quando eu fazia algo que não era regra.
Alguém falou:
- E a criança?
- Eu levo.
Antes que a confusão aumentasse mais, saímos todos pra rua.
Ficaram lá as mulheres que concordaram em ficar.
E o menino, que era nosso, mas estava com a avó.

Fomos pra todos os botecos e lugares onde poderia ter um conhecido.
Comemos sardinha assada na brasa.
Caldo de mocotó com farinha.
Ovo cozido colorido.
Salsicha
Ai eu me perguntava, quem ali iria jantar se comendo a gente já estava.

Aí deu a hora de voltar.
Alguém fez um convite pra eles voltarem no dia seguinte pra ir pescar e depois ir
na zona conhece muié.
Aquilo era uma provocação, eu senti.
Eu ouvi e calei, guardei pra mais tarde.
Meu sogro novamente olhou pra mim, depois esticou o olhar de soslaio pra cada
um da roda.
Este passeio de olhar eu aprendi em casa, fizemos carreira só observando minha
mãe.
Com ar de deboche.
O olho dele rodou o salão todo e voltou pro olho de Migué e disse:
- Nós vai né migué?
- Ai amanhã Ge fica.
Eu só dei um sorrisinho de canto de boca.
Daqueles que querem dizer "conversamos lá em casa".

As noites no interior são lindas e intensas, os costumes são rígidos e arcaicos,
homem manda mulher obedece, é muito estranho pra mim tudo isso.
Céu repleto de estrelas.
Mas eu não me deixei abater até ali.
Lua maravilhosa.

Nem tudo são flores.
É um convite pra ser feliz.
Como tem gente que não se alivia.
Encontramos a casa da tia num clima tenso.
Quando chegamos em casa, algo medonho havia acontecido.
O cheiro de pólvora seca pairava no ar.
O ambiente lembrava faroeste caboclo.
Nunca vi nem sei como é, mas achei parecido
Os cachorro latindo sem parar
Fogão revirado
Torneira quebrada
Cortina rasgada
E a mesa virada no meio da cozinha
Uma trincheira
Alguém havia brigado ali, e eu nem desconfiava quem.
Nem desconfiava, nem queria.
O que será que movera tal briga?
Ninguém disse palavra
Era como naqueles dias, que mãe botava todo mundo pra dormir sem ver televisão.
Cada qual achou um canto pra se esconder e pronto, a casa ficou vazia, silenciosa.
Será que as irmãs brigaram?
E quem teria coragem de fazer a pergunta necessária?
A casa dormiu eu acho.
Isto mudou o rumo do passeio

Aquele jantar tenso veio acompanhado de um desconvite pra ficar, de certo que
ainda a gente nem tinha desarrumado as malas.
Era só pegar e sair, teve nem café da manhã.
No dia seguinte ainda de madrugada a gente estava na estação de trem indo pro
outro lado da cidade.
Meu sogro resmungava umas palavras sem sentido com minha sogra.
Deu-me a entender que ele defendia ela, mas também defendia a irmã ao mesmo
tempo, ele ficava em cima do muro.
Eu tinha que viver pra ver isso.
De repente chegamos numa encosta.
Uma pedrona grande igual a nossa serra, a Cantareira.
Num lugar margeando o rio Panorama.
E muito verde em volta.
Verde de plantação.
Chegamos cedo e a dona da casa lavava roupa batendo em uma madeira.
E a roupa dela por sinal era muito alva e cheirosa.
Mas era difícil usar a tábua, eu tentei.

A moça nos recebeu com um sorriso no rosto.
Cara de quem estava gostando das caras da gente.
Apiamos a tralha e fomos pra mesa tomar café.
Na mesa mais prosa.

Ela me convidou, a mim e a Dona Inês, pra prosear na cozinha e deixar os homem
ali.
Entregue a eles mesmo.
Mais tarde fomos à pequena cidade, pertinho dali, e compramos tralhas.
O casal, que não me recordo o nome, tinha vários filhos.
A casa era hospitaleira por demais.
No dia seguinte fomos à roça deles, era bem perto do rio.
Ali plantavam de tudo e criavam porco e galinha.

Ali ouvi histórias de outros tempos e de como as coisas estavam indo de mau a
pior, o governo tomando as terras, muita gente perdendo tudo, indo embora pra
viver noutro lugar.
Meu sogro disse que ali, apontando o dedo indicador na direção da mata já bem
rala. Antigamente ele e outros rapazes atravessavam o rio Panorama pra pegar
muié.
Ainda hoje sinto arrepios quando lembro.
Me faz lembrar a história da minha sogra com ele mesmo.
Pra dentro da mata havia ainda alguns descendentes de povos indígenas que
viveram por ali aos montes no passado.
Ele ainda disse que Pedrina, sua nora, morava ali.
Não a conheci, porque ela já havia fugido quando eu os conheci.
Devido às violências de Antônio, seu filho mais velho.
As histórias dessa mulher eu ouvi da boca de Miguel mesmo.
Foram 6 abortos de tanto levar chute na barriga.
Antônio era cruel demais.
Fez escola com o pai.

A história de violência na família de Miguel se perpetuava de pai pra filho.
Fez o mesmo com Alexandre, depois que Dona Inês foi morta por meu sogro.
Sim, minha sogra foi morta por meu sogro meses depois.
Que família era aquela que eu fui entrar?

Voltando a viagem.
Ali em Ouro Verde as pessoas achavam que Seu Marciano era rico e que morava
muito bem.
Ele trouxe um rapazote pra criar e dar estudo, o Cidinho.
Era parente de Pedrina.
Este eu conheci, Cidinho tinha problemas mentais.
Ou talvez conviver ali o deixou com problemas mentais.
Ele nunca pisou uma sala de aula, nem ele nem os demais.
Era comum naquele tempo as pessoas irem pra o Nordeste ou para o interior e
trazer de lá o filho de alguém pra criar.
Esta era a promessa, mas era pra escravizar mesmo, ali na minha rua tinha muita
gente criada ou mal criada assim, que nunca tinha hora pra levantar ou dormir.
Mas Cidinho teve um final feliz, ele recebeu ajuda de um senhor que cuidou dele e o
matriculou num haras e ele aprendeu a cuidar de cavalos.
Deixou a casa de meu sogro, pra um lugar melhor.

Enfim, eu saí dali com nojo das histórias que ouvi.
Era só atravessar e pegar muié.
Miserável.
Eu ganhei presentes.

Eu ganhei dois leitõezinhos e um casal de galos garnizé.
Pareciam enfeites.
E os trouxe no trem, dentro da mala, escondido da segurança.
Nem me lembro que fim levaram.

Ficamos ali em Ouro Verde uma semana.
Ali não tinha lugar pra sair pra beber nem procurar, nem isso nem aquilo.
Era uma família religiosa, respeitosa.
Então, toda noite a gente ficava conversando ali nos arredores da casa mesmo, até
enjoar de falar e ir pra cama.
Até minha sogra falou um pouco, e um dia até sorriu.
Daí chegou o dia de voltar.

É bom viajar, e é bom voltar também, viajar areja por dentro os pensamentos da
gente.
Voltamos.
Minha bagagem voltou bem maior do que foi.
Eu trouxe balde, panela, penico, bacia.
Parecia que tinha dado um bordejo pela 25 de Março, engraçado isso, né da gente,
correr o mundo e encontrar lá tudo o que tem em todo lugar onde a gente mora.
Hoje sei que nada tem de engraçado, são os tentáculos do capitalismo destruindo
as possibilidades da vida dos nossos ancestrais e as nossas, naquele tempo quase
não tinha plástico como hoje, era só o início.
Ainda se criava galinha, porco, gado, de pouca quantidade, tudo se fazia em casa de
manicure a festas.
Construíram as casas, bater lajes era um evento onde toda comunidade se reunia,
trabalhava, depois era feijoada que se servia.
E a gente chupava muita cana, tomava água fresquinha do poço sentados na
sombra do abacateiro, mas tudo aquilo estava indo embora.

Agora eu era uma senhora casada emancipada com treze anos.
Tirando as histórias de terror, foi um bom passeio, e a foi primeira e última viagem,
porque depois desta viagem nossa relação nunca mais foi a mesma, só piorou.
Minha sogra não via a hora que o velho desse sossego pra ela, guardar a dentadura
no copo, tirar o sapato apertado, pitar seu cigarrinho de palha.
E amargar seus dias do seu jeito.
Ela faleceu como já disse.
A gente esperava outra viagem
A gente nem sabia que ela teria um final tão trágico, quer dizer, a gente esperava
que ele parasse de bater nela.
Quantas soluções a gente tentou dar pra tirar ela das garras do seu feitor.
Minha mãe, quando eu contei, foi em casa e brigou com ele, que ficou quietinho, ele
só era valente com ela.

- Vem morá comigo, lá em casa Inês, que eu te protejo, lá ele não entra.
Dona Inês nos contou sua história.
Ela era do sertão da Bahia, a família dela era pobre, eram muitos.
Quando a mãe morreu, o pai vendeu ela e uma irmã pra dois irmãos caixeiros
viajantes que estavam de passagem por lá.
Pela vida afora, viveram em muitos lugares, sempre enterrando os filhos que
morriam, aí foram dar em Ouro Verde e finalmente Jardim Fontalis, São Paulo.
Que história triste, terrível de se ouvir, que dirá de viver.
E nunca mais Dona Inês saiu da região.

A não ser pro cemitério, no dia 7 de setembro de 1982.
Cumpriu-se o mandato sofrido dela, encontrou-se com o fato sem solução.
A outra irmã era aquela que fomos visitar do restante da família, ela não sabia mais
nada.
Era já outro tempo, e quase todos os antigos já haviam feito a passagem, até
mesmo Miguel.
Mas a vida não sabe parar e já haviam chegado a nova galerinha.

Depois do ano 2000, ano que a gente esperava pelo fim do mundo, mas como era
mentira o mundo seguiu.

Eu já havia me casado novamente, até porque burrice é assim, não basta cair na
armadilha uma única vez.
Uma cunhada me visitou,
- Jacira, lembra a tia do interior que você conheceu quando foi lá?
- Lembro
- Então, ela quer conhecer os seus filhos, que são sobrinhos-neto dela.
Nós fomos num final de semana.

Na primeira visita, eu ouvi ela contando pros meninos que ela tinha ciúmes da irmã
porque sabia que o marido dela gostava da irmã.
Mas o pai vendeu ela pra o irmão dele, meu sogro.
Acho que na verdade era pra mim que ela queria contar.
Era verdade, eu lembrei da viagem, da briga, e tive pena das duas irmãs, sabe.
Acho que ouvir estas histórias foi me fazendo perceber que por mais difícil que
seja o sofrer da gente, se a gente procurar, encontraremos quem sofre mais.
Vou parando por aqui porque preciso encurtar a viagem, pode contar aqui neste
trajeto uns vinte anos, é viagem que não acaba assim fácil.
- QUE VIAGEM HEIN!
As viagens podem nos levar a muitos lugares ou a lugar nenhum, ou para dentro de
dores maiores, de alegrias, amores, a gente pode até viajar e encontrar a própria
história da gente em outras gentes, e seguimos adiante esperando...
Sigo na esperança de um dia nossas histórias recordarem apenas o apito do trem
na franja da encosta.