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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ode à Liberdade

Ode a Liberdade - Victor Balde
Ode a Liberdade Imagem: Victor Balde

25/04/2021 06h00

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- Deindernadeoje, a pronúncia é esta mesma, de agora então e sempre até o dia que
divino me chamar vô mudá de custume.
Vou usar da minha liberdade, to chapada de só ser usada e viver pela metade, vou
comer de tudo de no que der.
- De hoje, por agora, e sempre, quem me entender por gente não tem o que temer.
Mas quem me fizer passar por besta vai tremer na base, vai se arrepender porque eu
num amolo ninguém.
Se eu cismá, se me dé na teia, risco, cisco, belisco, vô para na cadeia.
Se a polícia começa prendê gente que fala palavra feia.
Vô garrá sésto de falar palavrão, todo mundo fala desde o comecinho do mundo.
Já tentei ensinar meus minino pra num dizer e eles nunca pararam, pelo contrário até,
trouxeram um rosário de palavrão maió capaz de dar vorta no infinito.
- É mermo zefa?
- E quem num gostá, entrego tudo pra gota serena.
- Por esta luz que me alumeia, quem não quisé ouvi vai tê de abaixá pálpebra dos zóio
nos zovido.
Que divino esqueceu de pálpebra os dois buraco que a gente tem do lado da cachola.
A pronúncia pode não estar nos conforme, mas lendo aqui mei de viéz, qualquer um
consegue entender e buscar na anatomia.
É iguá saudade escrita com Ç, fica estranho mas quem já sentiu sabe o que é onde tá e
como se pega.
Pra mudar o costume ela falava a mesma coisa todo dia.
Era zefinha se preparando pra enfrentar o mundo.
Ela era de Propriá em Sergipe, se não me engano, desde que casou veio pra São Paulo
e desde então, se em sua terra a coisa tava feia, aqui só estendeu a solidão.
A vida perdeu família e rumo, ela amava os quatro filhos que teve como podia, do jeito
que ensinaram pra ela o que era amor, assim sem rumo.
As alegria dela era cozinha, quando tinha plantar, cuidar dos cachorro, se pentear.
Seu ouro era sua latinha de fumo, sua ilusão, sua brincadeira.
Pra se distrair, se alegrar, tome baforada e fumaça pra cima pra desanuviá.
Latinha de fumo no colo, picava pacientemente seu pedacinho, sem pestanejar depois
repicava torna picar, depois pisava, num tem segredo, nem tinha.
Quem quiser ver o cão, era só bulir na latinha.
Se alguém passava com o pão embrulhado na folha de seda ela logo dizia:
- Come o pão, beba um café, mas não jogue a foia no mato que eu priciso dela pra
enrolá meu fuminho.
De domingo ela tocaiava quem ia na missa:
- Vai reza é? Na volta passe em seu Raimundo e traga um naco de fumo pra mim, diga
a seu Raimundo que capriche que é pá véia de capela, quero um dedo de fumo bem
cortado e curado. Media lá no dedão dela mostrando, assim ó.
A gente aprendeu a obedecê-la primeiro, porque ela corria atrás de boiado com a
gente, entrava nas nossa contenda, matava as tartarugas e os preás que a gente
caçava e cozinhava e dividia.

Às vezes na hora da briga que era de igual pra igual, era difícil apartar e separar as
crianças, ela era uma criança também.
- Sim, esta filha de lembá quando criança caçava e comandava como igual a qualquer
ancestral minha.
Eu era uma guerreirinha, ela também, e eu só esperava crescer pra também ter minha
latinha de fumo e fumar também, às vezes escondido, ensaiava enrolando uma folha
de jornal, dava um cigarro sem fumo de um metro e tal.
Tacava fogo e o danado incendiava, eu até gostava mas tive que deixar, não dava
certo, até que era bacana.
Mas me queimava toda pestana e os pelos do nariz, eu ali era uma bela duma criança
feliz, fazendo o que bem entendia.
Minha mãe não estava ali pra mandar em Nico, este minino que mora dentro de mim.
Aí eu mesma me governava, só parava quando a coisa desse errada.
Como muitas vezes deu.
E de mais a mais, quem não obedecesse Zefa, ela enchia de praga e pra gente que já
era mei assustado não cabia mais nenhuma tentação.
Éramos aventureiros ,se pensou que eu diria pobre errou .
Eu só fiquei feia, pobre e mal amanhada quando na escola fui matriculada, que minha
rua nunca enfeiou ninguém.
Pobreza num pega em quem amanhece com vida pra conquistar.
Ela aguçava a nossa liberdade e dizia com tanta sanha que eu obedecia como se eu
fosse um guerreiro dela. E era.
Enquanto nos serviu foi assim, a vivência com nossa arqui vizinha.
Com a liberdade é assim, não tem idade pra rebolar o saber velho arcaico no mato e
rebolar outras coisas mais doce.
As veiz a vida ta amarga porque o doce tá no fundo, rebolando ele sobe e vai e volta
do cocoruto ao calcanhar.
Rebanhar então é propósito, pois se o que eu procuro não se encontra onde eu acho
que está, ,porque não pular o muro, sair a procurar.
E se até mãe que tinha dois empregos tinha receio das praga da boca, seja lá de quem
fosse, que dirá a gente que nem tamanho tinha.
Nem dinheiro pra amarrá e disamarrá mandinga.
- Melhor ouvir e acatá, ser praguejado dá azar.
Pra que procura? As veiz está num lugar donde a gente nem imagina.
Se demora muito pode até num entendê, quando encontrá.
Quando minha vizinha Zefinha descobriu que podia xingar um fí da peste sem apanhar,
ela estava bem na casa dos quarenta.
Ainda lembro como se fosse agora de quando ela ia em casa e lá do portão gritava:
- Se tiver que esconder alguma coisa de mim, tem que escondê agora, eu já arriei a
taramela já tô metro e meio pra dentro.
Ela sabia que mãe folgava toda segunda-feira, dia que as feira em São Paulo descansa
ou descansava.
Ia pedir café daquele jeito que só ela tinha.
- Dona Maria tem um cafezinho aí fresquinho pra mi dá? To querendo pitá, to até com
a boca seca. Nem quero pedir o pó que não tenho nada em casa a senhora sabe, eu
não trabaio, meu marido também não, que isto não é segredo.

- Já levantei cedinho, joguei pedra nos minino pra eles í pra escola, eles num gosta de
estudá, mas pra mim é bom que de lá eles já vem tudo comido. Eu aqui arranjo um
bucadinho aqui e ali, como um pouco do um pouco ao marido. Ele num presta como a
senhora já sabe, de tanto me ouvir falá, mas é fí de Deus, se eu não cuidá, quem vai?
O danado merecê nem merece, mas carece. Se ele num mi xinga nem me bate que pra
ser brabo ele é homi.
- Se fica quietinho eu ajudo, se ele se arreta, fica com fome.
A senhora me dê um golinho só, vô fica aqui da porta nem vô entrá, que sabe como é
se eu entrá fico pra papeá, se proseio sem receio me convido pra mode armoça.
E se fico pro armoço, e eu sei o que sinto quando o sino la no matão bate, meus fí
também vem pra cumê e ai invés de mim somente, agora serão cinco vivente pra
senhora sozinha tratá. A senhora num vai me negá um dedinho de café vai?
Pelas lagrimas divinais, como diz na oração que Deus livre a senhora e sua morada das
línguas dos invejosos, do olhar dos criminoso e dos laço do satanais.
- O gole que a senhora me dá há de lhe render muito, muito mais.
Eu achava Dona Zefa atrevida, barraqueira e poetisa.
Minha escrita foi forjada assim, nesta poesia sem fim das mulheres da nossa rua.
E a voz dentro de mim dizia, copia escreve em seu ndotolo que um dia você vai precisá
contá.
Eu tinha era muita raiva quando alguém dizia que Dona Zefinha tinha nada pra ensiná.
A mão do tempo me fez crescer, eu queria e muito ser independente.
Com esta mesma idade eu resolvi pesquisar, que enfrentar a casa de saber dos brancos
com sua filosofia tacanha, única, vulgar, isto eu já tinha enfrentado.
Eu já tinha espalhado palavrão pra todo lado, aí aos quarenta e tanto resolvi estudar a
mim mesma.
Foi quando encontrei a diáspora, o mulherio, a dança, a cantoria, quando encontrei
meu lugar no mundo.
Dona Zefa já tinha descansado, morreu dormindo.
Desde então, o mundo europeu não me engabelou mais.
Foi nesta data, e desta feita de sair ao mundo, que encontrei novos amigos e cada um
me levou a um lugar e eu me alimentei de novas histórias.
Um amigo me presenteou com conhecimento, outro com dicas, este outro com
potência, aí sim eu viajei pra dentro da vida deles, assisti suas falas, peneirei, e de tudo
o que encontrei, algumas coisas me serviram.
Henrique Schucman, meu professor tecelão, me apresentou a mim mesma a
Arostegue e a Altay Veloso.
Ele me emprestou a ópera o alabê de Jerusalém.
Confesso que pensei comigo: Sera que presta?
Sabe como é né? Aqui onde a gente vive todo dia tem gente querendo arrebanhar a
gente pra o seu celeiro, é testemunha de tudo que é santo, politico, vendedor de ovo,
limpa tudo, maridão, o tempo passa, muda as armas, mas a ferramenta é a mesma.
Se a gente não tomar cuidado, enche a cachola de patriarcado e mais exclusão.
Desde a primeira vez que assisti o alabê, nunca mais nem deixei nem esqueci, e toda
vez que o racismo me entristece eu chego o fone de ouvido e ouço este cabra da
peste.
Como se fosse meu mantra.

Não era todo mundo que gostava, nem de dentro nem de fora.
Mais eu educada aqui mesmo na vila, me vali dos mesmos direitos que eu e todo
mundo tinha.
Se eu posso ouvir culto de seu fulano, as músicas de seu sicrano, briga de casal,
desengano de namoro, chuva de desaforo, vendedor, filhos de jeová, se eu posso eles
também podem ouvir as minhas descobertas.
E assim sempre aos domingos de manhã ou de tarde ou de noite, não tinha hora certa.
E olha que antigamente não tinha no Youtube, agora eu posso levar pra onde eu
quiser.
Isto foi a bem muito tempo atrás, nem lembro, acho que mais de 10 anos, é mais velho
que a Lab.
Que importância tem quanto tempo faz.
Nesta época conheci Darcy Ribeiro, li o povo brasileiro dentro dos quais sou família.
Um dia depois que Miguel morreu, eu fiz igual Zefinha, joguei umas mania besta que
eu tinha no mato e criei corage, enfrentei a escola.
Agora eu queria vê elas me dizê que caneta e papel era ruim pra mim.
Mas a escola agora era outra, tinha gente de toda idade, mas a mais velha era eu, eu
era a vovó da sala.
E não deixei por menos entrei na escola Marechal Rondon que eu sempre quis estudar.
Dali eu só saí formada.
Eu quis levar alguns amigos pra estudar comigo, mas eles se riram de mim.
- Neguinha, deixa disso, papagaio velho nem aprende a falar, mulher nova em escola
só vai pra namorar e se aprende algo fica chata pra caralho. Lugar de mulher é na
cozinha, você mesma não vai conseguir, vai desistir num vai ficá.
- Agora eu cismei que tinha que dar certo.
Eu me formei no oitavo ano, tinha 28 aninhos, perdi uns amigos no caminho.
- Numa sexta-feira teve uma chacina na saída da escola, ali ficaram bem um tanto dos
alunos da minha sala.
Um professor chorou um dia porque a gente não conseguia entender nada da tal
guerra fria, porque a nossa guerra era vermelha e preta e era todo dia.
Nesta época todos os velhos amigos ficaram pra trás.
Mas chegaram outros amigos, Zambi me mandou mais.
Eu me formei no oitavo ano com 28 aninhos ,ganhei o diploma e perdi mais uns
amigos pelo caminho.
Me formei enfermeira, e achei engraçado porque eu pensei que nunca mais iria limpar
nada, eu estava enganada, cuidar de doente tem a ver com organização e ordem.
Em cada degrau que eu subia eu agradecia.
Quando o fantasma da ignorância não assusta mais a gente, a fome também vai
embora.
A gente pode ter uma mala de dinheiro pra gastá com o que quisé mas é preciso que
alguém acenda o sol da gente pra entender de bom livro.
Se alimenta de boa estória alguém tem que ter a honra de ensinar, e eu fiz bons
amigos.
Os livros foram chegando, ser professor é uma coisa, ser potencializador é outra
pegada. E da vida eu ia ficando alimentada, orientada e vacinada.

Fiquei doente sim, mas nem aí, a preguiça me parou, meus filhos ainda pequenos,
Evandro tinha seis, Leandro nove, Tiana quatorze e Kaki quinze.
Agora eu tive que me aposentar, e até nisso a minha voz de dentro veio me ajudar.
Eu agora me tratava de manhã, voltava pra casa, fazia almoço, todo mundo chegava da
escola, a gente almoçava, descansava, assistia Chaves, Will Smith, Sessão da Tarde,
tomava café da tarde e via o sol se esconder por detrás da mata.
E ainda eu lia, mas escrever não, nisso eu não me permitia.
Quanta água ainda passaria por debaixo da minha ponte?
Quem me fez escrever foi a depressão, e um chifre que tomei, comecei escrever de
desgosto.
Aí aceitei, me deixei analisar, me analisando descobri que sabia bordar e contar
história.
Mas ainda não aceitava a hemodiálise, pra mim aquele era um castigo de Deus.
Ai estudando descobri que castigo não era.
Era politica ruim, um genocídio pós a tal liberdade que nunca aconteceu, e tudo foi
feito em nome de Deus.
Foi neste tempo que Altay veio morar na minha estante.
E chamou pra estante centenas de autores que acenderiam ou reacenderiam o sol em
mim.
Aí veio esta desgraça coletiva que se apelida de isolamento social.
O desajuste mundial que assola tudo quanto é vivente e condena a morte tudo e
qualquer ser que esteja vivo.
Se Zefinha fosse viva, ela diria um palavrão imenso pra esta crise, pra este golpe, aliás
hoje Zefinha vive em mim pela boca dela, ela me dá coragem .
Quando eu botava pra tocar o alabê de Jerusalem em alto e bom som, e achava que
ninguém ligava eu estava enganada.
Altay Veloso foi uma flecha que eu estiquei no arco do futuro e lancei aqui em casa
sem intenção de quase nada igual a Ismália.
Eu ouvia o som alto e recitava miudinho com medo da escrita se zangar comigo.
Só pra agradar as batidas do meu próprio coração enquanto eu cuidava da lida.
Eu lido melhor com a vida quando feliz.
Agora no isolamento encontrei mais amigos e amigas que me elevaram a uma
pensante filósofa.
Se você acha que filosofia é só a grega saiba que você está muito enganado.
Nas aulas de Aza Njeri e Katiuscia Ribeiro retomei os estudos.
É outra pegada.
Levantei cedinho, semeei repolho, couve flor, beterraba, adubei a terra, colhi açafrão
que plantei em setembro, colhi as pimentas, fiz a salmoura de mãe.
Parei pra falar com minha irmã que não está muito bem e não tive medo de dizer com
todo respeito, porque ela mais velha que eu:
- Você está com axé enfraquecido, se quiser venha cá que eu benzo você de sol e
sereno, mas ela não acredita por causa da religião dela, tá bom sigo nos meus
canteiros eles creem em mim.
Como eu dizia eis meu novo caminho, sendo eu filósofa aprendo todo dia, eu não
invento nada a ancestralidade sopra em mim.

Eu, você, temos uma sombra frequente que nunca nos abandona e nunca se engana.
Quem diria que eu andaria com tanta gente bacana ascendendo meu sol.
Até deixei pra lá a era de cristo (A.C) que agora pra mim passa a ser (ERA COMUM).
PORQUE CADA POVO PODE SIM PENSAR DO SEU MODO SEMPRE.
Estou plantando, cantando e repensando a minha própria ontologia a estória de mim.
Estou aqui pensando que eu sinto, então eu existo dentro deste meu sentimento,
muito embora um pensamento ocidental diga que não, mas isso é problema dele.
Desde que eu me entendo, este povo branco só tem roubado, matado, segregado,
destruído e colocado a sua realidade religiosa no lugar, roubando a realidade dos
outros povos.
Fazendo este epistemicídio, matando o nosso conhecimento.
Eu mesma fui educada nesta lógica que só tem valor o que está neste eixo do
ocidente.
Estou suleando, seguindo o caminho aberto por minhas ancestrais, quero mirar minha
vida para o jeito e a filosofia dos meus que é pluriversal e aprender é divino.
Nunca um saber pode ser usado para destruir nossa gente.
A filosofia que planta ódio, fome e doença é vulgar, indecente.
Um dia eu resolvi romper com a ignorância, e desde lá só tenho aprendido.
No mês passado meu filho encontrou com Altay Veloso e falou pra ele:
- Eu decorei o alabê de Jerusalém de tanto minha mãe tocar na tv e hoje te encontro.
Um amigo me alimentou, eu alimentei ascendi o sol dos meus e agora Altay me deu de
presente pelas mãos de meu filho mais um lindo trabalho seu, o livro Lábios de Cuba
Libre, uma história de compromisso, comprometimento, potência sobre potência, sim
tem corrupção, miséria, desgraça, pois aí está a mão de maafa ocidental tentando
acabar conosco.
A história se passa no Rio de Janeiro.
Altay, muito obrigado por ensolarar meu legado, achei que você no livro é o próprio
Tião.
Receba daqui meu abraço.
Pronto, terminei meus canteiros hoje, é domingo, encerro aqui este texto dizendo que
estou muito feliz porque quarta-feira que passou Aza Njeri, a mestra, entrou na minha
live, aquela que faço com Huiris Brasil e Roberta Rirolle Fulani, minha conterrânea bubi
fulani.
Agora estudo em família, quem diria que eu chegaria a tanto?
Enquanto isso meu ancestral que é minha sombra me segue de perto sempre me
acompanhado.
Axé pra todo mundo, se cuidem que o universo pra cada um tem um café.
E a gente toma do jeito que bem quis