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Bianca Santana

Escrever para desafogar

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

06/11/2020 14h24

O que você faz quando a dor sufoca? Quando a raiva arde? Quando vê servidores públicos — que deveriam trabalhar pela justiça — humilhando uma mulher que foi estuprada? Quando atualiza os números das mortes notificadas por Covid-19 no Brasil e se depara com 161.779 pessoas? Quando acompanha as notícias de que o Ministério Público apresenta provas e mais provas das rachadinhas de Flávio Bolsonaro mas sabe que o pai dele, além das ligações com as milícias, é presidente da república e fará o impensável para proteger o filho? Quando, dois anos e oito meses depois ainda não temos o resultado das investigações de quem mandou matar Marielle? Quando enterra uma amiga que cuidava sozinha do filho de 12 anos de idade?

Eu escrevo.

Mas não com distanciamento, interpretação ou análise. Transbordo palavras no papel ou na tela, como se ninguém fosse ler. E depois, na revisão, vou ajustando as repetições, aumentando os exageros e percebendo, na primeira pessoa, a "escrita de si" de que tratei em minha tese de doutorado como a "formulação estética da própria existência e trabalho de memória, que possibilita a constituição de subjetividades e sujeitos coletivos que permitem escapar aos processos de subjugação do dispositivo de racialidade e do biopoder".

Cada palavra dessas é praticamente um capítulo da tese "A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo", que defendi no programa de pós-graduação em ciência da informação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo sob orientação de Marco Antonio de Almeida e, não sei por que motivo, ainda não está disponível no banco de teses da USP. Mas tomo a liberdade de destacar neste texto aspectos do "trabalho de memória". Porque lembrar é também cuidar da dor que sinto nestes dias. Dor que não é só minha.

Com Tiganá Santana aprendi que "a memória viceja no tempo presente - eis onde vige o ancestral, como 'ntima', mesmo termo kikongo para coração". Assim como na origem do latim (em que saber de memória é saber de cor, de coração). A memória é encarnada pelo que pulsa. "E tudo, como estamos a ver, vibra a anterioridade, o presente, o devir. Tudo vibra memória - linha de força que reúne as temporalidades possíveis". E essa explicação apresentada na tese de doutorado de Tiganá, "A cosmologia africana dos Bantu-Kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil", de 2019, está preservada em casas de candomblé.

Taata Mutá Imê, sacerdote do candomblé bakongo, nação angola, do Nzó Mutà Lombô ye Kaiongo e a Casa dos Olhos de Tempo, em Salvador, Bahia, me disse: "Memória só pode ser vivida com o mutuê (cabeça), falada e sentida com a muxima (coração)". Assim, ainda que o trabalho de lembrar seja racional, a partilha da memória, pela linguagem, passa pelo que se sente em relação ao lembrar. "Cabeça não fala minha filha, ela foi feita para pensar, vê a direção com tempo, no tempo, para Tempo. Velocidade, ação determinação. Nós, bantus, falamos com o coração, que nos guia, dirigindo o caminho para a estrada. Só assim podemos voltar da estrada para o caminho e vice-versa. Cabeça foi feita pra trazer as memórias que se registra através do coração".

Memória é definida como um trabalho sobre o tempo vivido - convocado no tempo presente tanto pelo indivíduo como pela cultura -, por Ecléa Bosi, autora de "Memória e sociedade: lembranças de velhos" e professora no Instituto de Psicologia da USP até sua morte, em 2017. Segundo Ecléa, memória não diz respeito a um repositório de lembranças a que recorremos, mas da atividade de lembrar: organizar fragmentos de um cabedal infinito de possibilidades. Pela memória, o passado se mistura às percepções imediatas e também as desloca, com força subjetiva, profunda e ativa.

Na psicologia, o trabalho de memória é também uma tentativa de elaboração simbólica de traumas. Em "Lembrar, escrever, esquecer", Jeanne Marie Gagnebin articula escritos de diversos autores ao afirmar como o exercício da memória está a serviço do presente. "(...) Nietzsche, Freud, Adorno e Ricoeur, cada um no seu contexto específico, defendem um lembrar ativo: um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de iluminação [do alemão Aufklärung] — do passado e, também, do presente. Um trabalho que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor e atenção aos vivos". Grada Kilomba, ao conceituar a experiência do racismo como traumática, afirma que escrever é uma maneira de ressuscitar experiências coletivas traumáticas para lidar com elas de forma adequada.

Dentre tantas possibilidades, escrever memórias, portanto, pode ajudar a desafogar o peito, direcionar a raiva, denunciar abusos, honrar nossos mortos. Você já tentou? O momento convida.