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Bianca Santana

Mais que denunciar o governo: cuidar das pessoas com sintomas de Covid-19

Mulher sendo atendida por agente de saúde no Jardim Miriam, zona sul de SP - Letícia dos Santos
Mulher sendo atendida por agente de saúde no Jardim Miriam, zona sul de SP Imagem: Letícia dos Santos

27/10/2020 11h13

Termômetro, antitérmico, cartilha de cuidados domésticos, chamadas por vídeo ou voz de uma a três vezes por dia — a depender da complexidade do caso —, oxímetro, atendimento médico e psicológico quando necessário. Trezentos e quarenta e sete pessoas com sintomas de Covid-19, de cinco territórios vulneráveis de São Paulo e região metropolitana, foram acompanhadas pelo projeto Agentes Populares de Saúde, da UNEafro Brasil e do Instituto de Referência Negra Peregum, entre abril e setembro de 2020. Uma entrou para a estatística de 157.397 mortes notificadas por Covid-19 no Brasil até 25 de outubro.

Jorge Luiz Neves Pereira, negro, metalúrgico aposentado, aos 67 anos de idade começou a sentir cansaço, tosse seca, febre baixa e uma paralisia na perna. Sua filha Fabíola Carvalho é uma das coordenadoras da UNEafro e acionou a agente popular de saúde de São Bernardo do Campo, onde ele vivia. Por Jorge ter sérios problemas cardíacos, renais, e fazer hemodiálise havia dez anos, Fabíola foi orientada a levar o pai para o hospital. Inicialmente, foi descartada a infecção por coronavírus e Jorge ficou na ala verde, separada para pessoas sem suspeita ou confirmação de Covid-19. Cinco dias depois da internação, foi diagnosticada uma infecção pulmonar. Quatro dias depois, ao tentar visitar o pai, Fabíola foi informada de que ele havia sido transferido para outro hospital às pressas por provável infecção por coronavírus. A família não conseguia se comunicar com Jorge, nem recebia informações precisas do hospital. Treze dias depois da internação, Jorge foi entubado por complicações de Covid-19. Com quedas de pressão, não estava mais conseguindo fazer hemodiálise. Morreu dezenove dias depois de chegar ao hospital, no dia 3 de agosto.

"Foi negligência em cima de negligência. Ele estava na fila do transplante de rim fazia 5 anos quando descobrimos que não estava realmente na fila. Fez 10 anos de hemodiálise. Mas, mesmo com tudo isso, sinto que se ele tivesse sido tratado como paciente com Covid desde o início, poderia ter sido diferente", diz Fabíola. O caso evidencia as falhas de comunicação e a falta de transparência nos diagnósticos e nas condutas das equipes médicas com familiares responsáveis, frequentemente relatadas por pessoas negras, e agravadas durante a pandemia.

A violência institucional de um idoso ser internado sem acompanhante e sem poder falar com a família é uma realidade nos hospitais públicos que dificulta perceber situações de descaso e negligência, além de aumentar o sofrimento emocional. "Ainda que nada ou muito pouco possa ser feito sobre o quadro clínico de alguém, o cuidado e o amparo deveriam ser premissas inegociáveis de qualquer serviço de saúde", afirma Bruna Silveira, médica coordenadora do projeto. "As pessoas não deveriam temer os descasos, as negligências, as inadequações na comunicação e se sentir responsabilizadas por não conseguirem prever questões graves como essas em momentos de tanta vulnerabilidade. A dor pode ser inevitável, mas o sofrimento, nós temos o dever de aliviar".

Em luto pela morte de Jorge Luiz Neves Pereira, agentes populares de saúde, sanitarista, médicas, psicólogas e educadoras da UNEafro fizeram uma primeira avaliação dos resultados do projeto. "Quando analisamos nossos dados em relação aos DATASUS, temos indicativos de que o projeto tem sido muito eficiente em suas ações de assistência", registra a versão preliminar de um relatório que será divulgado nas próximas semanas.

Do total de pessoas atendidas, 90% são da classe E; 49,72% são negras (26,86% pretas e 22,86% pardas), 0,29% indígenas, 31,14% brancas e 18,86% não declarou sua raça/cor de pele. "A taxa elevada de incidência do projeto pode ser explicada pelo trabalho das agentes populares de saúde na busca ativa de casos sintomáticos — modelo que se assemelha aos dos países que mais testam pessoas com sintomas", continua o relatório. "Trata-se, portanto, de uma população de maior vulnerabilidade social e racial que, no cenário nacional costuma apresentar as maiores taxas de internação, agravo, mortalidade e letalidade, mas que, no projeto, apresenta taxas bem mais baixas. Os dados demonstram a eficiência da assistência personalizada e individualizada que promovemos nos territórios".

Nos casos de agravamento, quando a pessoa precisa ir ao hospital, o tempo médio de internação das pessoas acompanhadas pelo projeto também é mais baixo que a média nacional. Enquanto no DATASUS a taxa de internação entre abril e setembro variou entre 10% a 12%, com um pico de 30% no mês de julho, e o tempo médio de internação por Covid-19 é de 21 dias, a taxa de internação das pessoas acompanhadas pelo projeto é de 9,83% e o tempo médio de internação de 10,01 dias. "A minha hipótese é que com o acompanhamento das agentes populares de saúde, a equipe médica, o uso dos oxímetros, há menos necessidade de internação de urgência. E com menos tempo de hospital, as chances de outras infecções causadas pela internação diminuem. Infelizmente, icção hospitalar é uma realidade do Brasil", explica o sanitarista do projeto José Murakami.

O trabalho está cuidadosamente apresentado em cinco episódios de uma websérie e dos textos publicados no blog do projeto. Todo o material para a formação de agentes populares de saúde está disponível em vídeo e em três cartilhas ilustradas e escritas em linguagem popular no site do projeto, com o objetivo de apoiar coletivos, organizações e movimentos que queriam replicá-lo ou adaptá-lo em suas comunidades.

O dado assombroso de 157 mil mortes por Covid-19 no Brasil é ainda maior se for considerada a subnotificação. Há especialistas que calculam serem mais de 200 mil as pessoas mortas. O governo brasileiro tem responsabilidade direta por este número de mortes. Já no mês de março, a #BolsonaroGenocida estava nos trending topics do Twitter. Em abril, relatores da ONU denunciaram o governo Bolsonaro por promover ações irresponsáveis, que colocam vidas em riscos. Em agosto, a Coalizão Negra por Direitos protocolou um pedido de impeachment recheado de dados e evidências que mostram a negligência do presidente com a pandemia.

É muito importante que, além de denúncias, movimentos sociais e organizações do terceiro setor estejam promovendo ações de solidariedade à população mais vulnerável. O Instituto Marielle Franco e a Universidade Federal do ABC produziram mapas das práticas colaborativas de enfrentamento ao Covid-19. A maior parte delas, de arrecadação e distribuição de cesta básica, material de limpeza e higiene. Mas há também os agentes populares de saúde, compartilhando informação, prevenção e cuidado nas periferias brasileiras. A campanha Mãos Solidárias, de movimentos de Pernambuco, tem promovido a ação O Povo Cuidando do Povo, formando agentes populares de saúde dentre moradores da periferia de Recife em um primeiro momento, e agora em diferentes regiões de todo o país, para distribuírem informação sobre cuidados básicos de saúde, combate à Covid e saúde popular.

O Agentes Populares de Saúde da UNEafro, em parceria com rádios comunitárias, distribui informação em emissoras como Rádio Cantareira, Rádio Paraisópolis, Rádio Heliópolis e Rádio Comunitária Itaquera. Os mesmos áudios são divulgados nas ruas, em 14 carros de som que circulam por 21 territórios em São Paulo, Guarulhos, Mogi das Cruzes e São Bernardo do Campo. Nas próximas semanas, os carros serão substituídos por bicicletas de som. No Instagram, no Facebook e no Twitter, são divulgadas postagens com dicas de cuidados domésticos e naturais com quem tem sintomas de Covid.