Crise climática escancara desigualdade no litoral brasileiro

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Há quem diga que as mudanças climáticas vão nos mostrar que estamos todos no mesmo barco. Mas a verdade é que podemos estar na mesma tempestade — uns de iate, outros de canoa.
O relatório Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Pesqueiras no Brasil explica bem essa diferença. Lançado no início do mês pelo Conselho Pastoral dos Pescadores, o documento mapeia 450 comunidades costeiras afetadas por conflitos socioambientais em 16 estados — 97,3% delas dizem sentir também os efeitos da crise climática.
Em um planeta desigual, seremos afetados pelas mudanças no clima e nos ciclos naturais de formas também desiguais — afinal, diante de cada mudança, temos recursos diferentes para lidar com o problema. É o chamado racismo ambiental, que pode ser facilmente observado em casos de eventos extremos como enchentes ou deslizamentos: não é coincidência essas situações atingirem mais fortemente populações vulneráveis, mas sim resultado de uma série de fatores que, historicamente, os empurraram para áreas de maior risco.
Nesse sentido, as comunidades pesqueiras tradicionais, tão ligadas ao território costeiro e aos ciclos do mar, estão junto de outras populações que dependem essencialmente da natureza, como indígenas e quilombolas.
O relatório mostra que, para as comunidades pesqueiras, a ocupação de espaços naturais que podem parecer "de ninguém" à primeira vista — como a construção de usinas eólicas offshore ou a ocupação de áreas de manguezais e dunas por novos condomínios — traz consequências significativas. Os ciclos naturais são alterados e os impactos repercutem: os principais efeitos mencionados são a diminuição da quantidade de pescado e da sua diversidade, o que afeta diretamente o sustento de muitas famílias.
O setor privado parece conseguir navegar tranquilamente pelas exigências dos órgãos ambientais, em um cenário em que estudos de impacto ambiental dificilmente conseguem mensurar os efeitos dos empreendimentos ou ouvir as vozes dos locais. Do outro lado, os próprios moradores têm dificuldade de acesso às políticas públicas essenciais do setor.
O Registro Geral da Pesca (RGP), principal ferramenta de cadastro para pescadores, ficou em um limbo por diversos anos até ser retomado recentemente. Sem esse registro, centenas de milhares de pescadores ficaram sem poder acessar crédito, aposentadoria e nem mesmo políticas de segurança alimentar — uma situação ainda bastante frágil, que deve levar anos para se regularizar.
O relatório também destaca a invisibilidade das mulheres na pesca artesanal. Elas estão em todas as etapas da cadeia produtiva — pescam, limpam, beneficiam, vendem, cuidam da casa, da comunidade e, muitas vezes, são as primeiras a perceber que algo está errado com o mar. Ainda assim, seguem sendo invisibilizadas nas políticas públicas e nas estatísticas. Em terra, a desigualdade de gênero é estrutural. No mar, também.
Mas talvez o ponto mais importante do relatório seja este: apesar de tudo, há resistência. Das marisqueiras do Norte e do Nordeste aos caiçaras do Sudeste e do Sul, há organização, denúncia e mobilização. Há quem lute para manter o mar vivo — mesmo quando tudo parece querer calá-lo.
No fim das contas, a publicação é um alerta, mas também um convite: olhar para o litoral além do turismo e da especulação. Ouvir quem vive do mar — e não só quem lucra com ele. Entender que, sim, talvez estejamos na mesma tempestade — mas, definitivamente, não estamos no mesmo barco.
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