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Fred Di Giacomo

10 frases que explicam o Brasil e porque 2020 foi um ano tão maluco

29/12/2020 04h00

"Morar nos Estados Unidos é bom, mas é uma merda. Morar no Brasil é uma merda, mas é bom". Quem teria dito a filosófica frase seria Tom Jobim, o pai da Bossa Nova, que além de ser um dos maiores músicos do século XX, também tinha o dom das palavras, haja visto o lindo poema que esculpiu para a melodia de "Águas de Março".

A frase de Tom é uma sacada que explica bem o amor e ódio que os brasileiros sentem por seu país e poderia ser facilmente complementada pelo "Eu andei o mundo inteiro, não há lugar melhor para se fazer um país do que esse [o Brasil], mas [aqui] tem uma classe dominante ruim, ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa que não deixa o país ir para frente." cravada pelo antropólogo Darcy Ribeiro, no programa Roda Viva.

Destaques 2020 - Montagem/Reprodução - Montagem/Reprodução
Itamar Vieira Junior, Amaro Freitas e Julie Dorrico se destacaram em 2020
Imagem: Montagem/Reprodução

Frases que explicam o Brasil, eu colecionei aos montes este ano. Em 2020, tive um grande privilégio: conversei quase toda semana com um grande escritor, um artista talentoso, um pensador ou um ativista que inspiram. Ouvi em longos papos, ou em frases curtas de WhatsApp, dezenas das melhores mentes de brasileiros vivos. "The best minds of my generation", cantaria Allen Ginsberg.

Nessas entrevistas, que eu fiz para esta coluna Arte fora dos centros, foi possível pescar com esses artistas, a antena da raça, frases que explicam a crise do nosso país e a loucura que foi 2020. Achei que essa seria uma boa forma de fazer uma retrospectiva da coluna. Listar aqui 10 frases que explicam o Brasil e porque 2020 foi um ano tão maluco.

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"Eu me sinto uma pessoa que passa o tempo inteiro em busca da minha identidade e da identidade nacional. Eu não acredito em felicidade porque felicidade é um projeto coletivo. Você não pode ser feliz enquanto o coletivo urra. Então você tem instantes de felicidade. O Brasil é tão absurdamente belo, tão absurdamente rico, este país é pra você se desesperar do quanto ele tem de incrível do ponto de vista de sua cultura e seus saberes. Mas nossos governantes insistem o tempo inteiro em dar as costas para isso. Isso é projetado, é o desmonte da nossa cultura",

Cida Pedrosa, vereadora pelo PC do B e escritora vencedora do Prêmio Jabuti de Livro do Ano 2020.

"No Brasil nunca teve socialismo, nunca teve comunismo, nunca teve uma experiência de fato disso para você dizer 'vou caçar comunistas'. Os únicos comunistas no Brasil chamam-se povos indígenas. São esses que não mantém propriedade privada, que são pelo coletivo, que têm um modo de vida simples, que dividem tudo entre si. Aí eu entendi quais eram os socialistas que estavam sendo perseguidos [pelo governo Bolsonaro]. São aqueles que ainda seguram a fronteira do capitalismo, que se chocam frontalmente com isso. É a última fronteira a ser conquistada. É aquilo que os militares tentaram fazer, nos anos 70, e não conseguiram. Nesse sentido os últimos socialistas somos nós."

Daniel Munduruku, ativista indígena, educador e escritor

"A gente vive em uma país onde a reparação histórica nem começou. E a gente tem que pensar em como esses milicianos entraram em Palmares e continuam entrando em Paraisópolis. Todos privilégios que eu tenho vem por conta disso. Mas me envergonho e acho que precisamos fazer uma reparação histórica. (...) É um país terrível. Lindo, mas terrível."

Micheliny Verunschk, escritora, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2015


"Aqui perto de casa, na divisa com a aldeia, tem uma fazenda que o pessoal [indígenas] retomou. Lá está tendo muita disputa de terra. Todo dia é ataque, é queimada de casa de nossos irmãos, muita ação desses fazendeiros que estão tocando o terror mesmo. Atirando, passando com trator em cima dos barracos, queimando. (?)Bolsonaro está propagando o ódio e a discriminação em relação a nós, indígenas. Não só indígenas, mas os negros e os LGBT. O resultado disso, a gente vê com a situação da nossa Amazônia, as pessoas invadindo a terra dos nossos irmãos. A violência dos fazendeiros piorou muito.",

Kelvin Peixoto, vocalista do grupo de rap indígena Brô Mc's

"O movimento negro tem que reconhecer que essa contagem [de pardos como se fossem todos negros] acaba sendo etnocida com a população indígena. Eu sou classificada como parda; e a minha amiga que é pataxó, a minha amiga que é guarani, minha amiga que é kariri-xocó, elas também têm isso na certidão, carregam essa marca do pardo, mas são indígenas",

Julie Dorrico, acadêmica e escritora

"Para muita gente vivendo nas zonas rurais no Brasil a 'vida cultural' se concentra em consumir quase que exclusivamente narrativas proporcionadas pelos canais de TV e rádio. Ou ir à igreja. (...) A gente sabe que esse problema não é exclusividade das zonas rurais, mas ali, a possibilidade de acessar outras fontes, outras referências, outras narrativas tem obstáculos diferentes, né? A possibilidade de imaginar outros mundos e de lidar com o desconhecido, de desafiar o comportamento de manada, também",

Suélen Silva, pesquisadora especializada em gestão e políticas culturais e mestre em ciências sociais pela UFPA

"O Brasil são várias realidades. Temos um estilo de vida que vai do europeu ao estilo de vida da África. Dentro da mesma cidade, podemos observar diferentes realidades durante a pandemia. (...) Fui criado em Nova Descoberta, que é uma periferia da zona norte de Recife, e o que eu vejo é uma realidade muito cruel.",

Amaro Freitas, pianista

"Tenho umas lembranças muito vivas das crianças me xingando na escola, na rua. Cheguei a deixar de sair de casa muitos anos porque, quando eu saía, me xingavam. E lembro da minha mãe ameaçando 'É verdade que estão te xingando de viado, na rua? [Se for] você vai apanhar!'",

Raimundo Neto, psicólogo e escritor

"Ano passado tivemos a tragédia [do rompimento da barragem] de Brumadinho que foi uma coisa chocante, né? Foram 300 vítimas levadas de uma só vez. E, agora, [com as mortes da covid-19] é como se tivessem rompido mais de cem barragens ao mesmo tempo",

Itamar Vieira Junior geógrafo e autor do livro "Torto Arado" vencedor do Prêmio Leya, Prêmio Jabuti e Prêmio Oceanos.

"Existe um projeto consciente de aniquilação dessas vozes [negras]. Mas de alguma forma essas vozes não serão caladas, porque essas pessoas vão arrumar outras formas de fazer filmes.",

Gabriel Martins, cineasta, fundador da produtora "Filmes de Plástico"