Tempos de Violência: Bruno Ribeiro entre o racismo real e os filmes de ação
"PULP [polpa, pasta] n.
1. Matéria macia, úmida e sem forma.
2. Revista ou livro sensacionalista, geralmente impresso em papel bruto, sem acabamento."
American Heritage Dictionary: New College Edition
CENA 1
CHAT VIRTUAL - NOITE
Estamos em um chat normal, transcorrido em uma rede social criada por homem branco americano responsável por matar a utopia anarquista que foi a internet e transformá-la no quintal de Steve Bannon.
Dois "jovens" escritores do interior conversam sobre as violências fictícias e reais do Brasil e suas representações na literatura contemporânea. Um deles é Bruno Ribeiro, 31, escritor, roteirista e tradutor que acaba de vencer o Prêmio Todavida de Não Ficção. Morador de Campina Grande (PB), Bruno também foi finalista do Prêmio Kindle e ganhou menção honrosa no Prêmio Mix Literário por seu romance "Glitter" (Moinhos, 2018)
Bruno Ribeiro: O bom é que tu sempre usa foto da galera criança, né? Bicho, as minhas fotos de guri são muito engraçadas, auhashasaqssa.... Vai ficar show.
Fred Di Giacomo: Pô, são lindas. Eu quase tive vontade de ter outro filho depois de ver tuas fotos. Aliás, quais são suas primeiras recordações da meninice?
Bruno Ribeiro: A minha primeira recordação é o boneco Careca, que vivia debaixo do meu braço. Era tipo aqueles bonecos de bebê grandões, não lembro bem como eu o encontrei, mas não conseguia desgrudar dele. Era um boneco meio monstro do Frankenstein: sem olho, arregaçado, encardido, torto. Qualquer pessoa da minha família terá a mesma lembrança, porque nós éramos inseparáveis, e eles faziam de tudo para eu me livrar do Careca.
Outra recordação marcante é que eu vivia brincando de filme com meus amigos e primos. Eu gostava de bancar o diretor e inventava várias brincadeiras pra gente. Aventuras em mundos intergalácticos, tiroteio em barrancos, corrida em pontes invisíveis, luta em abismos de barro. Eu também sempre curti contar histórias de terror para a galera, subir em árvores, comer croquetes, fazer caretas em fotos e brincar com bombinhas e fogo.
Eu nasci em Pouso Alegre, Minas Gerais, mas me mudei ainda bebê para São José dos Campos, São Paulo. O meu pai trabalha na Alpargatas e, por conta disso, nós tivemos que nos mudar muito. Uma fábrica em tal lugar fechava e lá vai a gente morar em outro canto. Enfim, resumindo a minha infância foi dividida em São José dos Campos, Pouso Alegre, onde a família da minha mãe vive e Além Paraíba, onde boa parte da família do meu pai vive. Inclusive tenho fotos do Careca, hahahaha...
Fred Di Giacomo: Manda pra mim as fotos do Careca! Qual era o trabalho do seu pai lá? Sua mãe também trabalhava?
Bruno Ribeiro: Meu pai trabalha como gerente de desenvolvimento de produtos na Alpargatas, ele é quem cria os modelos das Havaianas, formatos, tamanhos, design. Minha mãe é artesã, trabalhou muitos anos fazendo bolsas, vestidos, tapetes, roupinhas para bonecas, mas também era dona de casa. Minha mãe sofre de uma artrite bem grave, que esteve com ela desde nova, e por conta disso, infelizmente, ela não pode seguir de forma constante com o trabalho de artesã. Atualmente, eles são separados: pai vive em João Pessoa, mãe em Campina Grande.
Fred Di Giacomo: Putz, foda o lance da artrite? E que legal o trampo do seu pai! Ele é designer de produtos, então?
Bruno Ribeiro: Não tem aquela bandeirinha do Brasil nas Havaianas? Ele foi um dos caras que esteve por trás dessa ideia. Essa artrite da minha mãe é cruel. Remédios caros pra caramba, não tem cura, ela sente muitas dores por conta disso, enfim... Sempre foi uma baita guerra. Mesmo separados, meu pai dá suporte até hoje pra ela em relação a isso. Porque realmente não é fácil.
CENA 2
INÍCIO DE "A ARTE DE MORRER OU MARTA DÍPTERO BRAQUÍCERO", CONTO DE ABERTURA DO LIVRO "COMO USAR UM PESADELO" (Caos & Letras), PREMIADO NO CONCURSO BRASIL EM PROSA, PROMOVIDO PELO JORNAL O GLOBO E A AMAZON.
"Uma mosca tomba no meu prato com bife e batata frita. Agoniza. Bactérias. Díptero braquícero da família Muscidae. Poucos milímetros de comprimento. Pego o garfo e cutuco o inseto, escuto um chiado, feito televisão fora do ar. Coloração cinza no tórax, abdômen amarelado. Duas asas, uma delas levemente rasgada. Por isso agoniza. Olhos grandes, espaçados, vermelhos. Continua chiando, morrendo. Empurro-a com a faca, corto um pedaço da carne, separo, finco o garfo em três batatas e depois na carne. Deixo cair uma gota do sangue do bife em cima da mosca. Engulo o alimento, mastigo, admiro o esforço do inseto em tentar sair da bolha marítima avermelhada.
Fred Di Giacomo: Bruno, esse lance de brincar de diretor, como isso evoluiu na sua adolescência?
Bruno Ribeiro: Na adolescência logo percebi que não nasci para jogar futebol. Isso em termos práticos significa que descobri desde cedo que sempre seria o corpo estranho nos locais. Como me mudei muito, todo canto novo que eu chegava era um mundo novo a ser desbravado. E isso sempre foi extremamente difícil pra mim. Brincar de diretor e até ter amigos imaginários (mantive esses amigos imaginários da infância até a adolescência) era uma forma de lidar com a solidão dessas mudanças, com o bullyng que sofri desde cedo no colégio por ser negro, por ter um sotaque engraçado (meu sotaque sempre era estranho aos ouvidos alheios), por usar cordinha nos óculos, por ser magrelo, falar baixo, ser tímido, enfim, por aí vai. A arte foi aparecendo aos poucos como uma forma de me salvar dos deslocamentos da vida e das surras que levava dela.
Fred Di Giacomo: Você estudava em colégio particular, né? Era um dos poucos negros da escola?
Bruno Ribeiro: O único negro! Muito louco ver como o racismo causa um curto-circuito em nossas cabeças, principalmente quando se é jovem. A galera zoava meu cabelo, minha cor, me chamava de negão e macaco, e eu negava isso dizendo que não era negro, era mulato. Até professores me zoavam, teve um cara que chegou a desenhar um macaco no quadro e falar que parecia comigo. Enfim, eu negava o que eu era, dizia que meu pai era branco. Olho pra isso hoje e fico triste em saber que essas coisas me ferraram bastante na época, principalmente minha autoestima. Com o tempo, fui melhorando e me reconhecendo, mas a minha adolescência foi toda repleta desses abusos e foi difícil conseguir me livrar dos traumas que ela me causou.
Fred Di Giacomo: Putz, que merda, hein, mano? A sensação que eu tenho (estudei em pública e fui bolsista em particular) é que o racismo é muito pior nas particulares.
Bruno Ribeiro: Muuuuito pior. Só fui ter amigos negros na vida adulta. Sempre fui rodeado de pessoas brancas e boa parte da arte que eu consumia era de pessoas brancas também. Nunca conversei com meus pais sobre isso. Eu até acho que tinha abertura pra conversar, mas eu nunca quis. Sempre fui muito fechado e guardava tudo comigo.
Fred Di Giacomo: E como surge a literatura nisso tudo?
Bruno Ribeiro: Quando eu morava em Recife, conheci um amigo chamado André. Ele foi muito decisivo na minha formação, porque nós dois éramos muitos nerds e consumíamos quadrinhos, animes, games, e foi através dele que comecei a ler meus primeiros livros. Fora ele, meus pais sempre foram muito cinéfilos, então cresci vendo muitos filmes, principalmente filmes de ação e de pancadaria. Eles amavam. A violência que eu consumia e que eu sentia na pele de alguma forma refletem na minha produção hoje. É uma fusão entre crítica social com violência pop.
Fred Di Giacomo: E quais são suas influências artísticas?
Bruno Ribeiro: Quentin Tarantino, Alan Moore, Chuck Palahniuk, Anne Rice, Mary Shelley... Esses nomes ecoam muito no meu começo, nas coisas que consumia quando mais novo. Aí fui abrindo pra coisas mais cabeça como David Lynch, Edgar Allan Poe, Hilda Hilst? A música sempre me influenciou também, eu já fui emo, metaleiro, alternativo, indie... Passei por todas as fases.
Fred Di Giacomo: Cara, você tem umas fotos excelentes dessas fases, inclusive.
Bruno Ribeiro: Inclusive fiz uma banda de um homem só nesse meu período mais musical chamada 7mm no Paraíso.
CENA 3
PREFÁCIO DO LIVRO "COMO USAR UM PESADELO" (EM PRÉ-VENDA)
"Bem vindo ao "velho-oeste afrofuturista distópico" que melhor retrata o Brasil de 2020. Não se intimide, saudável leitor, amável leitora. Os contos de "Como usar um pesadelo" são bons, diretos, engraçados (para quem tem tolerância à acidez em seu humor) e extremamente violentos. Sim, se a violência é uma marca da geração 2010, Bruno Ribeiro é o mestre do estilo, o Tarantino nascido em Minas e radicado na Paraíba, que pinta suas narrativas com a vermelha tinta do sangue de seus personagens. (...) Disfarçado de chiste, o Bobo da Corte infernal confronta-nos com nossa hipocrisia tropical. E rimos com ele para não enlouquecer."
Fred Di Giacomo: Antes do "Glitter" (Moinhos, 2018) você teve um conto no Prêmio Kindle, né? Aí, já aproveita o gancho pra falar do teu livro de contos que está em pré-venda, o "Como usar um pesadelo" (Caos & Letras, 2020)
Bruno Ribeiro: Ahn, sim! Ali foi o prêmio Brasil em Prosa. É o conto "A arte de Morrer ou Marta Díptero Braquícero". Prêmio da Amazon com O Globo com apoio da Samsung
O meu livro de contos "Como usar um pesadelo" vai sair em dezembro. Ele nasceu para a editora Caos & Letras, porque é a editora do Eduardo Sabino, que esteve comigo na premiação do Brasil em Prosa. E ele publicou a Irka Barrios, que também esteve conosco no pódio. Este livro é uma celebração da nossa amizade, que perdura desde o dia que vencemos o Brasil em Prosa até hoje. É uma celebração da nossa literatura também, pois nós três compartilhamos as mesmas obsessões em nosso ofício: a estranheza, o oculto, insólito, bizarro, alucinatório.
Fora isso, é um livro que será uma boa porta de entrada para a minha produção também.
Fred Di Giacomo: A Irka Barrios é finalista do Jabuti, inclusie, né?
Bruno Ribeiro: Isso! Fiquei feliz demais por ela. A gente se deu super bem quando nos conhecemos, é daquelas amizades no meio literário que faz valer a pena toda essa loucura e sacrifícios que fazemos.
CENA 4
CRÍTICA DO LIVRO "FEBRE DE ENXOFRE", ESTREIA DE BRUNO, FEITA PELO SAUDOSO ALFREDO MONTE
"Tinha jurado para mim mesmo nunca mais ler uma narrativa sobre um escritor em conflito com o mundo ou com bloqueio criativo, mas não contava com Bruno Ribeiro, o príncipe da prosa sulfúrica, pornográfica e ultrajante."
Fred Di Giacomo: Você produz pra cacete, né? Quase um livro por ano. Tem alguma meta? Algum "plano de carreira"?
Bruno Ribeiro: Eu nunca pensei em plano de carreira. Inclusive, sempre falo que tenho uma vida literária e não carreira literária. Pois a literatura atravessa a minha vida, eu sou moldado por ela. Por conta disso, o meu negócio é escrever e a minha única preocupação é em nunca deixar a régua cair. A produção tem que manter a qualidade, minhas obsessões, linguagem, aquilo que me levou a escrever desde novo. Cada livro tem vida própria, são eles que decidem como vai rolar e se vai rolar também. Pois eu produzo muito, mas já descartei muita coisa também.
Fred Di Giacomo: E como foi ganhar o Prêmio Todavia de Não Ficção? Você tem esse lance com os prêmios, né? Se inscreve em geral?
Bruno Ribeiro: Foi demais! Como eu escrevo bastante, sempre tenho um ou outro livro na gaveta. Aí quando rola um prêmio que não seja muito burocrático para enviar a obra, eu envio. Aí esqueço dela também. Não gosto de ficar ansioso aguardando o resultado, eu jogo lá e adiós. E foi assim com esse da Todavia. Então, quando eles falaram que eu ganhei, foi uma baita surpresa, de verdade. Fiquei muito feliz, pois já acompanhava o trabalho da editora e acredito que será uma baita parceria.
Fred Di Giacomo: Rapaz, falando na Paraíba, eu sempre bato na tecla do "fora do centro" do rompimento da bolha literária que é formada pela playboyzada branca das capitais de SP e RJ. Você acha que tem rolado uma mudança nesse sentido? Vendo os finalistas do Jabuti, eu senti isso. Tô viajando?
Bruno Ribeiro: Bater nessa tecla é fundamental. Pessoas em posição de destaque do mercado do livro que ainda não abriram o olho para a produção fora do centro que tá rolando, principalmente nas editoras independentes, não merecem estar na posição em que se encontram. É ultrajante ouvirmos pessoas do meio literário falarem que só lêem livros de editora grande. Editora grande é como editora pequena: tem coisa boa, ruim, genial, medíocre, e é isso. Temos que abrir nossos olhares e sairmos da zona de conforto. O que escolhemos para ler também é um ato político. Fiquei feliz vendo os finalistas do Jabuti, acho que é um começo, mas quantos nordestinos estão na final desse prêmio? Pouquíssimos. Ou seja... É uma guerra sem trégua.
Fred Di Giacomo: Cara, já falamos pra cacente, mas ainda tenho uma pergunta: a sua influência do fantástico vem fundamentalmente da cultura mais pop? Ou também curte algo de realismo mágico? Você tem alguma ligação espiritual com o tema?
Bruno Ribeiro: O meu interesse pelo gênero fantástico surgiu através dos quadrinhos e do cinema, mas foi expandindo até chegar na literatura. Nunca fui tão consumidor do realismo mágico, mas durante o meu mestrado em Buenos Aires, eu consumi César Aira, Roberto Bolaño, Jorge Luis Borges, Juan Rulfo, Mario Bellatin e Mario Levrero, por exemplo, que são autores que brincam com as formas e os gêneros, algo que me identifico. Atualmente, Samanta Schweblin e Mariana Enriquez, escritoras argentinas, estão me arrancando do chão. Sou fã do trabalho delas e ambas me inspiram. Elas fazem uma mistura de gêneros, tem ali o insólito, o fantástico com o horror, o drama social com algo indefinido, mas que podemos chamar de literatura. Gosto demais.
Eu tenho uma família muito religiosa, tanto por parte de pai como de mãe. Eu fugi dessa tradição, mas de alguma forma essa aura sacra ainda permanece comigo. Basta ver que eu sou um ateu que gosta de acreditar em signo e já fez a brincadeira do compasso, então é difícil me definir religiosamente. Posso dizer que tenho um lado místico que boto pra fora na literatura. A literatura pra mim é como uma religião, ela já me salvou de fazer merda, ela já me fez fazer merda, ela já me colocou em situações amáveis e terríveis, ela me alimenta e me suga, ou seja: opera como uma religião. Tira e dá. E eu não conseguiria viver sem ela. Então, minha ligação espiritual tá totalmente ligada com o ofício literário.
Fred Di Giacomo: Acho que está na hora de irmos embora
Bruno Ribeiro: Acho que é boa ideia.
Os dois "jovens" autores saem do chat sem dizer uma palavra.