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Fred Di Giacomo

'Não se cala um coro'; a arte Trans e a luta antimanicomial de JoMaka

Autores da ?Coletânea Academia Trans Literária? - Cristiano Rato/Marginália
Autores da ?Coletânea Academia Trans Literária? Imagem: Cristiano Rato/Marginália

17/09/2020 04h00

"Acho que não tem nada mais importante na minha trajetória.", me responde João, quando lhe pergunto porque faz questão de se definir como poeta antimanicomial. "Eu passei por internações nos chamados 'hospitais psiquiátricos', para mim, manicômios. Sofri como nunca durante alguns anos em função das internações, do abuso dos medicamentos e intervenções que fui submetido pela psiquiatria. A poesia chegou pra mim aí, assim como a terapia ocupacional. Era a única forma que eu podia realmente entender meus processos, expressar meus sentimentos, lidar comigo mesmo, conviver. A luta antimanicomial é o meu combustível para criação, experimentação, ação."

João Maria Kaisen, 29, o JoMaka sabe do que fala. Passou "temporadas" no Instituto Raul Soares, Casa de Saúde Santa Maria e no Hospital Espírita André Luiz. Todos em Belo Horizonte. Chegou a ficar 190 dias internado direto.

A trajetória de JoMaka faz lembrar do poeta Allen Ginsberg, outra vítima do sistema manicomial, famoso pelo poema O Uivo ("Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em usca de uma dose violenta de qualquer coisa, 'hipsters' com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite"). Mas JoMaka não cita Ginsberg entre suas influências literárias. "Eu admiro muito e adoro as poetas Nívea Sabino e Júlia Elisa e o Pedro Bomba. Todes da Academia TransLiterária me encantam e inspiram com seus escritos. Jota Mombaça, Tertuliana Lustosa, Renato Negrão, Marcelino Freire e os livros do João W. Nery foram muito importantes pra mim. E eu gosto muito também da Ana Cristina César e da Conceição Evaristo".

O poeta faz questão de citar as poetas e poetes da Academia TransLiterária, coletivo mineiro com maioria de pessoas trans que completa quatro anos de vida este ano. Em 2019 passado, Jô organizou a Coletânea Academia TransLiterária (Editora Marginália) para celebrar os três anos de existência do coletivo.

"JoMaka todo é uma poesia, ou várias, e quando questiona a binaridade dos gêneros questiona, também a literatura e seus expoentes impregnados pelo machismo. Ver a luta diária dele e da Academia Transliterária me motivou, mais ainda, a colaborar com esse trabalho da Coletânea. Depois disso, vi suas performances poéticas mais de uma vez. É uma poesia que é necessária, que já nasce histórica, que briga, enfrenta a transfobia institucional, estrutural e cotidiana e, mantém o cerne poético.", diz Cristiano "Rato" Silva editor da Caos & Letras e da Marginália (que lançou a coletânea organizada por Jô)

Falemos da Academia Transliterária. A busca por novas formas de alianças afetivas é um zeitgeist. A bióloga e filósofa Donna Haraway traduz a situação com seu mantra "Crie parentescos, não bebês" ("Make kin not babies"l). Raimundo Neto, escritor e psicólogo, reflete o paradigma em seu premiado livro de contos (Todo esse amor que inventamos para nós), protagonizado por personagens trans e travestis procurando um teto todo seu, uma família que possam adotar, afetos que escapem ao sufocamento da estrutura familiar tradicional.

Coletânea Academia Trans Literária - Divulgação - Divulgação
Coletânea Academia Trans Literária - Marginália
Imagem: Divulgação

É nesse contexto que emerge a importância dos coletivos na vida e na obra do artista trans não-binário JoMaka. "Nos coletivos, eu descobri a possibilidade do afeto, do apoio, da fala e da escuta. Acredito que muitas pessoas marginalizadas e oprimidas encontram o caminho através das redes que nois por nois criamos, ocupar espaços que a gente constrói, que a gente pertence. Acredito que vivemos uma efervescência não só cultural, mas de identidade cultural. A gente se reconhece."

"Então eu me dispo e queimo até o fim, até que se degrade o pó dos meus restos, até que me chamem de louco, louca, doente, violento, agressivo, pervertido, até que queiram de novo me enclausurar em paredes brancas de um velho manicômio, repleto de energias mortas de tantas pessoas que já passaram por ali e foram abusadas pela ciência psiquiátrica e farmacológica, sob proteção daquela falsa cura de uma patologia inventada. Eu vou me despir e escancarar as experiências que sei pela pele, então eu me dispo e ressuscito cada pedaço que tiraram de mim.", JoMaka, Vermelho.

Vermelho

Ser uma pessoa trans não-binária é estar sujeito a violências extra em um país brutalmente violento. Essa violência é tipicamente intensificada nas escolas. "Percebi que me destacar pelas notas era uma forma de me proteger das violências na escola." A adolescência foi uma fase difícil, de traumas, violências e conflitos familiares. "Eu me lembro que nessa época eu não desligava o som pra nada, gostava de ouvir rádio".
O ápice das violências vividas por João parecem ser suas internações. Como antídoto para o mal do mundo a lhe carcomer a alma, fez-se a arte. "Com a terapia ocupacional eu percebi uma possibilidade, uma alternativa de me expressar, de me curar."

E quando falamos de arte, no caso do João, não falamos apenas da literatura. Avesso a qualquer binaridade, JoMaka é pesquisador, tradutor, revisor, palestrante e Delegado Nacional de Direitos Humanos. Também está cursando Letras e faz música. Participou por dois anos do coletivo TIPO banda Mascucetas. "Sou artista da cena, performer. Então, com a tipo banda Mascucetas, além de poder cantar, tive a oportunidade de estudar um pouco do baixo para minhas experimentações com a música."

"(...)
Nunca soube o que era mesmo e comecei então a me confundir com o que não era,
mas que insistia em me devolver com tapas.
Até perceber que o tapa que mais me doía era exatamente o meu.Visto-me
de mim para despertar o discurso que repete e replica CIStematicamente colonizado, estereotipado, normativo e opressor.
Eu sou protagonista do meu corpo trans transviado intersex e esquizofrênico.(...)",

JoMaka, Para Quebrar o Corpo.

Chá de Revelação

As 3 x 4 de JoMaka - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
As 3 x 4 de JoMaka
Imagem: Acervo Pessoal

Do passado, tempos bons requentam as memórias de uma infância caipira. "Me lembro das coisas bonitas. Principalmente da roça, com minha mãe, meu avô. Naquela época a família estava unida, a gente sempre estava ao redor de mesas fartas de comida feita no fogão a lenha. Tirava leite de vaca e bebia quente, comia queijo que minha tia Tê fazia, bolos, broas, feijão com louro... Se eu apertar a cabeça ainda sinto o cheiro daquela época. Eu gostava de ler debaixo dos pés de fruta, andava a cavalo, sempre gostei dos cachorros, gatos, de nadar no rio, de pescar e eu me lembro também que minha mãe sofria com a minha teimosia pra tirar os muitos carrapatos. Acho que das outras coisas eu me esqueci, a memória doeu a ponto de esquecer."

JoMaka psicografa suas memórias respondendo minhas perguntas por escrito. Suas respostas longas aproximam-se de seus poemas curtos. Nascido na capital mineira, Jô foi criado em Sete Lagoas, polo industrial ondem vivem 236 228 pessoas. "Tanto tempo que não vou lá, na minha cidade. Mas toda vez que eu vou reparo que tem um bar ou outro a mais, está mais violento, as lagoas estão mais poluídas... O cinema do centro fechou."

Infância  - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
Infância
Imagem: Acervo Pessoal

Do presente JoMaka tem planos, está vivo, contrariando as expectativas como diria Mano Brown. Seu primeiro livro Generalidades ou passarinho loque esse, hoje esgotado, ganhará terceira edição em outubro pela Impressões de Minas. João planeja terminar a faculdade de Letras em 2022. "Eu fiz até o 6° período na UFMG, mas não consegui concluir porque, na época a transfobia na instituição me adoeceu ... Não tinha nem nome social, né?

Os vídeos da Mascucetas, as fotos da antologia Coletivo Academia TransLiterária, os links em que se fragmentam as produções de João, me lembram de uma fala do escritor (e dançarino de pole dance) Raimundo Neto sobre como a cultura LGBTQI+ muitas vezes é resumida a algo engraçado, pop, superficial.

O quão revolucionário é um seriado como o de RuPaul ter se tornado um sucesso de audiência? Será que o único tipo de transgressor possível veste boina de Che Guevara? Ou a próxima revolução será não só televisionada, mas também purpurinada?

Na introdução da Coletânea Academia Trans Literária, organizada por João, está escrito: "Lamentavelmente rotulada como simplesmente 'entretenimento', a cultura trans tem sido alvo de ridicularização, senão de escárnio, porém, concomitantemente, foi por muito tempo apropriada por outros e invisibilizada de sua dimensão especialmente integrada à consolidação de um grupo constituído pela identidade de gênero daqueles que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando nasceram. Foi por meio de sua cultura que as pessoas trans conseguiram formar laços e sobreviver ante a toda forma de matança que vêm sofrendo."

Peço para que Jô comente:

"Visibilidade não é e nem nunca foi o bastante. O movimento de lutar por representatividade é essencial porque para além de sermos vistos, lutamos para que nossas vivências e experiências sejam contadas por nós, não mais por pessoas que não sabem e nem nunca vão saber o que é estar na pele de uma pessoa trans ou travesti. A marginalização imposta vai aos poucos perdendo lugar porque nós ocupamos o centro da batalha, as teorias e os estereótipos a nosso respeito vão caindo porque a gente está de bonde, muitas vieram e lutaram antes de nós, vamos honrar cada gota de sangue derramado. A gente grita e não vão mais nos calar, não se cala um coro. Por mais que tentem, por mais que nos violem, por mais que nos matem, nós existimos e temos voz.

Assim é, sempre será. Somos."

11 vozes que fazem a cabeça de JoMaka

1)Bixarte
2)Ventura Profana
3)Titi Rivotril
4) Liniker
5) Luedji Luna
6) As Bahías e a Cozinha Mineira
7) Mateus Aleluia
8) Sérgio Pererê
9) Maria Bethânia
10) Zeca Pagodinho
11) Mc Tha