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Fred Di Giacomo

Escutemos as vozes das escritoras brasileiras esquecidas pela história

Carolina Maria de Jesus e o jornalista Audálio Dantas - Domínio público
Carolina Maria de Jesus e o jornalista Audálio Dantas Imagem: Domínio público

"O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora." As reflexões da poeta mineira, que viveu parte de sua vida em uma favela de São Paulo, ainda ressoam atuais em nossa terra em transe. Carolina não grita sozinha. Ecoam com ela a utopia feminista da pioneira da ficção científica no Brasil e a luta abolicionista da fundadora da nossa literatura afro-brasileira. Mas quem são essas mulheres? Por que ficamos tanto tempo sem escutar suas vozes? Peço licença aos três filhos de Carolina que fazem barulho no seu barraco para que possamos escutá-la mais uma vez.

É que estamos em comemoração. Dia 30 deste setembro, a clássica estreia literária de Carolina torna-se sessentona. Com mais de 80 mil exemplares vendidos (número raro na literatura nacional) Quarto de despejo: Diário de uma Favelada foi escrito em formato de longos diários pela mineira Carolina Maria de Jesus. Ela já batalhava com os versos há 20 anos quando, finalmente, viu seu primeiro livro publicado. Apesar de ter esgotado seus primeiros 10 mil exemplares em apenas uma semana e ter sido traduzido para dezesseis línguas, a obra de Carolina, uma mulher negra e favelada, foi vista por muito tempo como "menor", como algo exótico, algo válido mais como documento histórico do que como grande literatura. O sucesso de Quarto de despejo, editado pelo jornalista Audálio Dantas, não se repetiu nos três livros seguintes de Carolina. A autora acabou morrendo pobre, esquecida e isolada numa chácara em Parelheiros, no punk ano de 1977. Como declarou seu biógrafo Tom Farias ao jornal El País: "Em certo ponto, Carolina percebeu que, em suas próprias palavras, tinha virado um artigo de consumo, alguém que era vista com curiosidade e isso a deixou deprimida".

Infelizmente, a trajetória de Carolina não é uma exceção por essas bandas. Apenas a partir da segunda metade do século XX passou a ser "normal" ver mulheres escritoras se destacando no campo literário nacional. Mas quem são as outras Carolinas que escreveram livros fundamentais em todos cantos do Brasil, mas acabaram esquecidas pela história?

A ficção científica no Brasil tem mãe: Emília Freitas

Emília Freitas - Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução - Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução
Emília Freitas
Imagem: Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução

No país onde o presidente da república diz que ter uma filha mulher foi uma "fraquejada", imaginar uma sociedade comandada por mulheres e regida pela sororidade parece utopia ou realismo fantástico. No final do século XIX, quando mulheres não votavam e a democracia dava seus primeiros passos, então, só com muita imaginação.

O primeiro romance de ficção científica publicado por essas bandas foi parido por uma mulher do interior cearense. Nascida em 1855, na pequena e quente Jaguaribe, a pioneira Emília Freitas escreveu A Rainha do Ignoto, no final do século XIX, publicando-o em 1899.

O livro descreve a utopia de uma sociedade fantástica e secreta formada só por mulheres, e liderada pela Rainha do Ignoto. A bondosa rainha, e suas paladinas, dedicavam-se a resgatar mulheres que sofriam de violência, solidão ou depressão. A obra, cujo prefácio avisava "não ter padrinho, nem molde", possui o melhor das ficções científicas: uma profunda reflexão sobre questões reais através das metáforas da fantasia. No entanto, tem poucas edições. A editora Fora do Ar preparou uma versão caprichada e ilustrada do livro de Emília, que você pode apoiar no Catarse.

A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas - Reprodução  - Reprodução
A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas
Imagem: Reprodução

Freitas, que é considerada por muitos uma precursora do feminismo, foi também abolicionista. Neste ponto, ela não foi a primeira. Maria Firmina dos Reis, nascida em São Luís do Maranhão, coleciona em seu currículo literário uma imensidão de pioneirismos. Ainda reinavam a escravidão e a monarquia no Brasil, quando Maria tornou-se a primeira romancista do Brasil ao publicar, em 1859, seu romance Úrsula.

Negra e nordestina, Maria inaugurou a literatura afro-brasileira com nosso primeiro romance abolicionista. Narrado, em primeira pessoa, a obra retrata mais de 150 anos antes do fundamental "Um defeito de cor", como a personagem Mãe Suzana foi sequestrada e escravizada no continente africano, separada de sua família e de suas raízes e trazida num navio negreiro para o Brasil.

Maria Firmina dos Reis - Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução. - Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução.
Maria Firmina dos Reis
Imagem: Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução.

Não contente com todos esses marcos literários, Maria Firmina, que ganhava o pão como educadora, ainda criou a primeira escola mista no Brasil (em uma época em que meninos e meninas deviam ficar em colégios separados). O escândalo foi tanto que seu colégio não durou três anos.

Da primeira escritora até Carolina

Quando São Paulo ainda era vila esquecida - terra dos tupis, dos guaranis e dos bandeirantes, orbitando as riquezas produzidas no nordeste brasileiro, nasceu Teresa Margarida da Silva Horta, a primeiríssima escritora de ficção em língua portuguesa. Isso no distante ano de 1711.

Cinderela do Brasil colonial, Teresa viu sua vida mudar bruscamente ainda criança: seu pai, com quem se mudou menina para Portugal, era um homem pobre que ascendeu socialmente. Vivendo em Lisboa, Teresa Margarida estudou na capital portuguesa e teve 12 filhos. Publicou, no ano de 1752, o romance Aventuras de Diófanes, considerado a primeira ficção escrita em língua portuguesa por uma mulher.

Teresa Margarida da Silva Horta  - Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução. - Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução.
Teresa Margarida da Silva Horta
Imagem: Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução.

Teresa Margarida, Emília e Maria Firmina são pioneiras pouco estudadas em nossas colégios. Suas obras não caem no vestibular, nem são citadas no ENEM. Mas essas artistas foram as precursoras que sedimentaram o caminho espinhoso que, a hoje festejada, Carolina Maria de Jesus trilhou no século XX. Vinda da pequena Sacramento para a favela do Canindé, Carolina, muito mais do que Nélson Rodrigues, descreveu a vida como ela é. Suas personagens eram humanas, esféricas, reais. A própria narradora não se pintava de "fada sem defeitos"; era, na verdade, muitas vezes maldosa com os vizinhos, considerando-se melhor que eles por gostar de ler e escrever.

Sua linguagem mesclava o português oral "errado" (que lembra a estética adotada por bandas de rap, como o Trilha Sonora do Gueto), com achados poéticos e palavras garimpadas do português erudito. Quarto de despejo faz 60 anos já redescoberto e deixando, aos poucos, de ser cult para tornar-se clássico. Mas não deveria ser exceção. Carolina não existiu sozinha. É necessário ouvir as vozes das outras Carolinas esquecidas por nossa história. Essas seguem repetindo infinitamente a rotina de invisibilidade e afazeres domésticos às quais foram relegadas em seu tempo.

O que faz lembrar o final simples, impactante e dolorido de Quarto de despejo, o projeto literário de uma artista cuja principal obra foi sobreviver:

"1 de janeiro de 1960

Levantei às 5 horas e fui carregar água".

Errata: este conteúdo foi atualizado
A obra Quarto de despejo faz 60 anos, não 50. A informação foi corrigida.