Caipira não é fantasia para festa junina
"O sertanejo é um forte", mas o "caipira é um bandeirante atrofiado". As definições são do escritor Euclides da Cunha e do acadêmico Antonio Candido. O caipira é cômico, quando não é tosco: Chico Bento, Mazzaropi, Filó, Nerson da Capitinga e Jeca Tatu são as representações mais populares do caboclo do sudeste. A definição que Monteiro Lobato faz do Jeca, como preguiçoso, repete a injustiça e o preconceito que marcaram os antepassados indígenas do capiau. O caipira trabalha no ritmo da terra, não do capital. Mesmo filmes mais artísticos, quando representam o caipira apelam para veia cômica e o pitoresco - caso de "Marvada Carne", de André Klotzel, e "Tapete Vermelho", de Luiz Alberto Pereira. São raros os casos como o dos escritores Guimarães Rosa e Manoel de Barros que elevam o homem do interior à dignidade e poesia de sua cultura centenária riquíssima.
Essa caricatura do caipira - e uma certa condescendência ao imaginá-lo abobado, preguiçoso e limitado - difere do retrato que vemos do gaúcho, no sul, ou do sertanejo no nordeste - ainda que ambas também carreguem preconceitos. Seja no cinema, na televisão ou nos quadrinhos; a riqueza da cultura caipira, e suas raízes multiculturais, são pouco destacadas e o lado violento dessa história, verdadeiro velho oeste paulista, é transformado em anedota a la Zorra Total. Só que as balas não são de festim na saga dos matutos do interior. É preciso reconhecer a brutal violência do genocídio que se deu no século 20 contra os povos kaingangs, guaranis e oti-xavantes, nas ações da Captura policial liderada pelo infame Tenente Galinha, ou nos conflitos entre grileiros e posseiros, só para citar exemplos do interior paulista.
Isso sem falar do sotaque. Quanto tempo eu (que nasci e me criei em Penápolis, esquina com o Mato Grosso do Sul) passei me policiando para disfarçar meus "erres", treinando uma fala mais "paulistana", tentando corrigir os "s" que devorava no final de cada plural. No seu livro "Verdade Tropical", o músico Caetano Veloso escreve que o "erre (R) retroflexo" do caipira (aquele do "póRRRta", como o dos americanos) "era um aleijão linguístico usado por parte ínfima da população nacional e que causava estranheza nos ouvintes do resto do Brasil". Depois Caetano, talvez mais acostumado com os sotaques do nordeste e do Rio, se deu conta de que essa parte ínfima englobava toda a velha "Paulistânia", região aterrorizada (e colonizada) pelos bandeirantes (as geraes de Minas, São Paulo, o oeste do Paraná, os Mato Grossos, Goiás e partes do interior do Rio de Janeiro e do Espírito Santo) e aparente ter nascido da influência indígena (seja dos kaingangs, que já tinham o "erre" retroflexo em sua língua, seja da tentativa dos tupis em pronunciar o som do "L" dos portugueses).
O próprio termo caipira era usado com o mesmo significado de mameluco, caboclo, capiau ou caiçara que designavam os mestiços de indígenas com europeus. Sua origem mais provável refere-se a "quem vem do mato". A cultura caipira (com o uso do fumo, a alimentação baseada no milho e na mandioca, a espiritualidade "que virou folclore") surge dessa fusão e vai ganhar influência da cultura africana quando chega a São Paulo um fluxo maior de escravos da África, a partir do boom do café no século 19.
Amadeu Amaral, em seu belo livro "Dialeto Caipira", desmistifica a lenda de que o caipira fala errado, que ele fala gíria - "gíria, não, dialeto", ensina Mano Brown. Sim, o que se desenvolveu na "Paulistânia" foi um dialeto local, influenciado por línguas ameríndias e africanas, e com muitas expressões do português arcaico que foram preservadas na região. Diversas formas de pronúncia, vistas como erro ou ignorância hoje, são, na verdade, heranças do português falado em 1500. Entram nessa categoria: "pregunta", "agardecer", "eigreja", "escuitár", "premeiro", "brabo" e "estâmego" (no lugar de estômago). Sem esquecer que o que se chama, hoje, de "folclore" e se associa a um povo supersticioso é, na verdade, a espiritualidade indígena e seus encantados: caipora, curupira, iara, saci, boitatá, boiuna. Transformar deuses em monstros é uma forma, também, de transformar as matas e a cultura nativa em um ermo a ser urbanizado, conquistado e derrubado pelos homens brancos.
Repense: caipira não é fantasia para usar em festa junina e esquecer no resto do ano. É uma cultura cabocla rica, de raízes indígenas profundas, que inventou a caipirinha - nossa bebida nacional - mas também a catira, a moda de viola, os festejos de São João do sudeste. Uma cultura que tem sido celebrada por artistas contemporâneos - como a excelente e experiente banda de Bauru (SP), Mercado de Peixe ou o artista visual goiano ROSA (Áureo Rosa), que busca, por meio de suas releituras e intervenções urbanas, criar um arte regionalista ressignificando ícones da sociedade de consumo interiorana como as "lojas de 1,99", o copo americano de boteco e a música sertaneja da dupla Zezé Di Camargo e Luciano. São de ROSA, inclusive, as artes paridas no "cerrado moderno" que iluminam esta prosa que escrevo procurando relembrar ao leitor, e ao povo que habita estes lados tristes dos trópicos, sua grandeza e inventividade.
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