Topo

Anielle Franco

Vidas negras na mesa de negociação

30/11/2020 04h00

Na noite de quinta-feira (19), véspera do Dia da Consciência Negra no Brasil, João Alberto Silveira Freitas, ou "Beto", para seus amigos e familiares, morria sufocado por dois seguranças brancos do mercado Carrefour, em Porto Alegre. Desde lá, levantes antirracistas organizados por movimentos negros do país e do mundo ganharam as manchetes, a dor e a revolta pela perda cruel de um dos nossos é algo que conheço profundamente e sei os efeitos que ela tem sob a vida de quem ficou aqui para lutar pela justiça por Beto.

Nos atos organizados em frente aos hipermercados da empresa Grupo Carrefour, multinacional francesa com presença em mais de 30 países e orgulhosa de ser uma das maiores empresas de capital aberto da bolsa de valores de São Paulo, ativistas negros multiplicaram em seus cartazes, vozes e organizaram a mensagem de que a morte de Beto não é um caso isolado. Afinal, a carne mais barata do mercado, até hoje, é a carne negra, como canta nossa referência Elza Soares.

Entre o nosso "eu não consigo respirar" e imagens de intervenções diretas contra lojas do grupo Carrefour, nossas redes foram inundadas por pessoas que investiram seu tempo no julgamento sobre as ações lidas como mais "radicais", questionando se elas eram de fato a melhor resposta para o racismo estrutural que empresas como o Carrefour fomentam com sua atuação. Foi Audre lorde, em junho de 1981, perguntada sobre como as mulheres respondem ao racismo, que disse: "Minha resposta ao racismo é raiva. Eu vivi boa parte da minha vida com essa raiva, ignorando-a, me alimentando dela, aprendendo a usar antes que jogasse minhas visões no lixo. Uma vez fiz isso em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva não me ensinou nada. O seu medo dessa raiva também não vai te ensinar nada."

Se a raiva pode ser lida como fomento da mudança, da ruptura das correntes e máscaras que sufocam os corpos negros no Brasil, a criminalização desta ação também é uma estratégia disso que chamamos de "capital". O sistema que articula e impulsiona as opressões de raça, classe e gênero é aquele que se reinventa cotidianamente precificando nossas vidas, permitindo que nossas trajetórias funcionem como um mercado de investimento, controlando aqueles que descem, sobem e são eliminados do jogo de valores da nossa sociedade.

Entender o limbo estrutural dos limites do consenso e diálogo com representantes da estrutura que nos mata é o primeiro passo para a reflexão. Veja bem, sou uma daquelas que acredita que ações individuais nunca darão conta de sanar a nossa real necessidade de ruptura com os sistemas que nos liquidam, porém, vale ressaltar que geralmente são os indivíduos que tomam as iniciativas para reduzir os danos, criando assim ciclos e ciclos de políticas que tratam o problema como isolado, precificando seu resultado e tornando nossa luta histórica um produto.

Superar a lógica da negociação parece ser o nosso maior desafio, os levantes antirracistas não podem ser a "promoção do dia", enquanto nossas vidas continuarem sendo tratadas como bandeja de troca e premiação, estaremos mais longe de ser lidos enquanto seres que merecem o direito a ter humanidade. São séculos sem respirar, a liberdade não virá do ar artificial vendido pelo mercado, mas sim pelo combate à poluição do racismo manifestada em todas as estruturas presentes em nosso cotidiano.