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Anielle Franco

O Novembro Negro de todo o dia

20.nov.2015 - Jovem pede fim do racismo durante marcha de celebração do Dia da Consciência Negra, na avenida Paulista, região central de São Paulo - Renato S. Cerqueira/Futura Press/Estadão Conteúdo
20.nov.2015 - Jovem pede fim do racismo durante marcha de celebração do Dia da Consciência Negra, na avenida Paulista, região central de São Paulo Imagem: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Estadão Conteúdo

02/11/2020 04h00

A mobilização massiva sobre a pauta da consciência negra quando o mês de novembro chega não nos surpreende. São posts, tuítes, textos e declarações diversas que apontam para a necessidade de se refletir sobre a "causa negra", o que na verdade se traduz na nossa vida, existência e trajetória de resistência. Conhecido por ser um feriado em muitas cidades do Brasil, o 20 de novembro para as populações negras tem outro tipo de significado — abro um parênteses aqui para explicar que esta data está entrelaçada à morte de um dos nossos maiores líderes, Zumbi dos Palmares, aquele que lutou pela libertação do nosso povo contra o sistema escravista e colonial que ainda habita em resquícios na nossa sociedade.

Vale ressaltar que o abismo racial a que o povo negro foi submetido após a dita abolição inconclusa é a maior prova que a dívida histórica que este país tem conosco ainda está muito longe de ser paga. Novembro pode ser o mês que mais gente se interesse por esse tema, mas vamos lembrar que se "conscientizar pelo negro" é tomar ciência de cada indicador social que é produzido no país. Porque é pelo retrato da educação, saúde, moradia, trabalho e renda, assistência social, entre outros, que enxergamos de forma nítida as extremidades onde nossa população negra foi submetida, privada de tomar para si a possibilidade de assumir a direção de nossas próprias vidas.

E, sim, o racismo se corporifica em práticas cotidianas, mês a mês, dia a dia, e ele não exime as instituições, públicas e/ou privadas, os partidos, as organizações sociais, nem os movimentos, ou às vezes nosso próprio território. Para vocês terem uma ideia, na cidade onde nasci, o Rio de Janeiro, de acordo com os dados do mapa da desigualdade de 2020, produzido pela Casa Fluminense, um trabalhador formal e informal branco recebe 75% a mais do que pretos e pardos, a taxa de homicídios de pessoas negras na cidade é de 81%, e uma pessoa negra morre em média 10 anos antes do que uma pessoa branca.

O retrato nacional da nossa realidade não é muito diferente disso, e sabendo que esse racismo está presente em tudo, às vezes fica difícil a gente não falar de outra coisa né? Mas o esforço aqui consiste em avançarmos numa reflexão qualitativa sobre este mês de novembro. Um mês que se inicia polarizado nas redes, das bandeiras de "consciência negra é todo dia", mas também daquelas emocionadas com "o novembro das homenagens e da potência". Independente de que lado você esteja, este assunto precisa assumir a centralidade na sua vida.

Seja negro, ou não negro, você já deve ter ouvido a frase do "por que não chamamos o feriado de consciência humana?", bem, caro/a leitor/a pressuponho que você saiba o porquê, imagine que até o estado brasileiro historicamente - com a ajuda e luta de dezenas de movimentos negros pelo país - fez esforços para produzir ações que coloquem a resposta da necessidade de falarmos sobre raça e, principalmente, os princípios de igualdade racial no Brasil, em destaque em suas políticas.

É importante saber da existência de um dos marcos normativos mais importantes para a nossa população, o Estatuto da Igualdade Racial. Construído por mãos de mulheres e homens negros que historicamente transformam seu mês em mês em luta coletiva, o Estatuto, criado pela Lei 12.288 de 20 de julho de 2010, é destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica presentes no nosso país, definindo o dever dos entes da federação na promoção de ações afirmativas, compensatórias, e reparatórias para garantir os direitos constitucionais a população negra e indígena.

Espero que o mês que se inicia abra mais uma oportunidade de entendermos que a urgência da "consciência racial" não se cristaliza em 30 dias, mas em 30, 40, 50 anos a fim. A luta é extensa, histórica e estrutural, novembro é o mesmo que a igualdade racial de pensamento floresce, mas é no dia a dia que isso se materializa em prática, sendo um dever de todos abrir as portas não só para esse mês, mas talvez para um novo ano baseado num futuro onde nós não precisaremos marcar nossa consciência racial em nenhum calendário.