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Anielle Franco

Favela é o bunker da potência

31/08/2020 04h00

O ano é 2020, um grande canal de notícias online do país noticia a seguinte manchete: "Bunker de bandidos, complexo da Maré concentra mais de 240 foragidos da justiça". São tantos erros estruturais contidos numa frase só, que separei um momento para dissertar nas próximas linhas sobre o processo histórico que marca o jornalismo hegemônico branco e, principalmente, as escolhas editoriais que priorizam a produção de estereótipos racistas sob nossos corpos e territórios.

A criminalização da favela é uma prática comum e histórica promovida pelo Estado, e ao representar majoritariamente as favelas como espaços urbanos perigosos e violentos, e seletivamente vítimas e criminosos por uma perspectiva racial, a mídia é tacitamente cúmplice dessa criminalização. Podemos retomar a lembrança da onda dos "rolezinhos", ida de jovens majoritariamente negros e de favelas as praias do Rio no verão, para materializar uma das formas da seletividade racial do braço armado do estado, mas também demonstrando que o direito à cidade, ou o que Marielle defendia, o direito à favela, sempre foi retirado de nós.

Eu, enquanto negra e favelada, ou melhor, mareense raíz, ou seja, cria da maré, sinto-me no dever de demonstrar que se a Maré fosse lida enquanto um bunker, então seria um abrigo repleto de potência, criatividade, inventividade e resistência. Ações de reação derivadas de décadas de ausência em um território que hoje abrange 16 favelas, e tem mais de 140 mil habitantes. Costumo dizer que as periferias e favelas não são violentas, pelo contrário, são secularmente violentadas. A semântica da resistência e coletividade que circundam nossos territórios, fazem o contraponto narrativo as cotidianas tentativas da branquitude que domina os espaços de poder e meios de comunicação de nos criminalizar.

E, falar de contraponto narrativo na favela é dar foco a existência dos meios de comunicação que comunitariamente apontam que o jornalismo do cotidiano visa a garantia das vidas e não do lucro, impulsionando impacto social e mudança, com a linguagem da favela para a favela, narrando os fatos através de nossas próprias perspectivas. A narrativa jornalística favelada, desde o início, foi construída a partir do senso de coletividade.

Nossas referências organizadas em canais como o Alma Preta, o Favela Em Pauta, o Fala Akari, o coletivo Papo Reto, Voz das Comunidades, o Maré Vive, o Fala Roça, os Jovens Comunicadores da Amazônia e tantos outros comunicam de fato nossas vivências e organização coletiva em busca de garantia de direitos, acesso à cidade e políticas públicas verdadeiramente representativas.

Mc Marcinho canta "favela, orgulho e lazer, estamos à vontade, nós somos… favela", nossa identidade favelada segue sendo construída sob o imaginário positivo da potência, do orgulho, do sorriso largo diante das mais diversas adversidades. O bunker de ausências que o Estado sempre nos empurrou nunca definiu nossas formas de ser, viver e existir.