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Adriana Barbosa

Da escassez à abundância: Empreendedorismo na periferia

Reprodução/ Facebook
Imagem: Reprodução/ Facebook

03/11/2020 17h25

Sempre tive uma visão do mundo associada ao contexto de abundância. Embora tenha crescido em um ambiente escasso do ponto de vista de recursos financeiros, posso dizer que também foi extremamente abundante na inventividade, criatividade e afeto.

Venho de uma família liderada por mulheres negras, fui educada pela minha bisavó, avó e mãe. O matriarcado definiu o que eu sou hoje. O legado dessa herança feminina me possibilitou ter um estilo de vida bastante empreendedor.

A criatividade, associada às ações inventivas da minha bisavó, que criava oportunidades de colocar dinheiro na mesa se apropriando daquilo que ela mais sabia fazer: abrir nossa dispensa, pegar o que tinha disponível, cozinhar e colocar para vender. Éramos a única família negra da região e a casa mais simples da rua, ou seja, representávamos a periferia em um bairro de classe média.

Logo, tínhamos que usar de técnicas de sobrevivência, e uma delas era a "sevirologia" (arte de se virar) que, posteriormente, ajudou a transformar a minha realidade e da minha família, que era de escassez de dinheiro, em um dos principais negócios de impacto social do país.

Há pouco mais de 17 anos, decidi empreender em uma iniciativa que pudesse dar à comunidade negra a oportunidade de visibilizar suas inventividades. Para começar, me virei vendendo peças de roupa usadas nas ruas de São Paulo. Uma década e meia depois, em 2017, eu estava em Nova York, entre as 100 pessoas afrodescendentes (e com menos de 40 anos) mais influentes do planeta, num ranking que incluía estrelas do esporte como Serena Williams e Usain Bolt, e as divas pop Rihanna e Beyoncé, sendo premiada pela Feira Preta.

O empreendedorismo foi a ferramenta que alavancou a minha história de reinvenção. Com pouco mais de 20 anos, criei um negócio de impacto social que fortalece artistas e empreendedores negros por meio de uma plataforma sistêmica que possibilita o encontro de quem produz com quem consome.

Em sua trajetória, a Feira Preta já mobilizou mais de 200 mil visitantes ao longo de 17 edições e também durante as imersões do Afrolab, um laboratório itinerante de pré-aceleração que dá suporte em criação, produção, distribuição e consumo, que já passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Maceió Recife e São Luís. Ao longo destes anos de atividades, a circulação monetária entre empreendedores e consumidores já é superior a R$ 5 milhões.

Treze séculos após a abolição, os negros (pretos e pardos) ainda são a imensa maioria na base da pirâmide e residem em diversas regiões periféricas do pais. Ganham, em média, metade de um assalariado branco. Para melhorar de vida, muitos abraçam o empreendedorismo, assim como aconteceu comigo e as mulheres da minha família.

Por um longo período de tempo, empreendedores negros e periféricos iniciavam seus negócios majoritariamente por necessidade. Esse ponto de partida traz muitos desafios sociais e econômicos que continuam a impactar de forma específica a população negra, que é maioria no país, também entre os empreendedores.

A pesquisa "A Voz e a Vez - Diversidade no Mercado de Consumo e Empreendedorismo", estudo encomendado ao Instituto Locomotiva pelo Instituto Feira Preta, com apoio do Itaú, revelou um perfil dos empreendedores negros no país:

  • 29% dos negros que trabalham têm seu próprio negócio, totalizando 14 milhões de empreendedores que movimentam, aproximadamente, R$ 359 bilhões em renda própria por ano.
  • 82% dos empreendedores negros não têm CNPJ (frente a 60% dos empreendedores não negros)
  • 57% deles acreditam que pessoas negras sofrem preconceito quando tentam abrir seu próprio negócio no Brasil.

A maior parte dos empreendedores que atuam na informalidade são, portanto, negros. E esses indicadores evidenciam o óbvio: ainda temos um retrato bastante desigual e injusto do ponto de vista de oportunidades para todos também no empreendedorismo. Ainda assim, o cenário passou por importantes transformações nos últimos 20 anos.

Em meados dos anos 90, a pauta do empreendedorismo negro se torna relevante e começa a tomar forma, à medida que lideranças negras levantam a discussão sobre o poder de consumo dessa parte da população no Brasil e o fato de haver poucas - ou nenhuma - empresa focando em atender suas necessidades e especificidades. Com isso, começa a nascer a discussão em torno de empreendedores da base da pirâmide, com parte deles focando seus negócios e crescimento em atender a população negra e periférica. A mesma pesquisa "A Voz e a Vez" revelou também que os negros do país, sendo a grande maioria residente no que convenciona-se como "periferia" já movimentam anualmente R$ 1,7 trilhão de renda própria.

Empreender na periferia é, portanto, uma boa oportunidade para empreendedores, principalmente para aqueles que buscam o primeiro negócio. Quem não está atento a isso, desconhece a realidade de um território detentor de saberes e tecnologias empreendedoras - e de sobrevivência - desenvolvidas por terem uma compressão mais apurada de quais são as dores e amores de viver em seus territórios.

Os hábitos de consumo dos moradores das periferias são pouco conhecidos ou, se conhecidos, carregados de pré-conceitos, e sobre eles se criaram muitos mitos e paradigmas. As grandes multinacionais que atuam no país tendem a focar suas ações de consumo nas classes de maior poder aquisitivo, presumindo erroneamente que os mais pobres não têm dinheiro para gastos com bens e serviços de melhor qualidade, principalmente, daqueles que vão além das necessidades básicas de sobrevivência, tais como moradia, alimentação e saúde.

Hoje, a pergunta que se faz a qualquer empreendedor nos pitchings que se espalham e popularizam é: que problema o seu negócio vai resolver? Pois bem, vocês já pararam para pensar o que fazem os empreendedores negros e periféricos?

Eles estão cotidianamente desafiando as barreiras da exclusão para inovar e crescer. Com isso, têm promovido a cidadania ao resolverem problemas de exclusão social e racial, ao unir os resultados financeiros à geração de benefícios para as suas comunidades e territórios carentes de serviços básicos, mas abundantes de oportunidades para novos negócios criativos e inovadores. Negócios não apenas criados e liderados pela base, mas que tem como público consumidor destes produtos e serviços também a base.

A Feira Preta mesmo, que nasceu num outro contexto socioeconômico e de visibilidade para o empreendedorismo negro, hoje se reinventa a partir do olhar e escuta ativos para as soluções criadas pelo povo negro. Fico orgulhosa e feliz quando entendo esta característica de retroalimentação criativa. Percebo que muitos se veem na Feira, assim como também me vejo neles.

Somos, sem dúvida, os maiores inovadores no ecossistema empreendedor. Só não vê quem não quer. Você vai escolher ficar de olhos fechados até quando?