Solidariedade na pandemia

"Urgência nas ruas é maior que meu medo", diz pastora de igreja inclusiva

Por Julia Flores

Quem vive nas ruas o presente da crise do novo coronavírus não tem tempo de imaginar o futuro pós-pandemia. Na quarentena, uma série de voluntários têm feito ações cujo objetivo é simples: garantir o dia após o outro de quem está mais vulnerável diante do novo coronavírus. Em São Paulo, acompanhamos um domingo na vida de duas pessoas que têm se dedicado a distribuir marmitas para quem não tem nem para onde correr, e nem o que comer.
Criadora da Séforas, ONG que ajuda transexuais como ela a se reaproximarem da doutrina cristã, a pastora Jacqueline Chanel vem percorrendo as ruas da cidade doando comida, roupa e material de higiene pessoal.
Gabriela Cais Burdmann/UOL
Gabriela Cais Burdmann/UOL
De luva e máscara, ela distribui quentinhas para uma fila que a espera há quase duas horas na avenida Cruzeiro do Sul, que liga o centro à zona norte. "Meu pastor me proibiu de fazer isso", diz Jacqueline, reforçando que a desobediência é por motivo nobre.
Gabriela Cais Burdmann/UOL
Jacque vai às ruas distribuir comida às terças, sextas, sábados e domingos. O ponto inicial fica perto da estação Tietê do metrô, mas caso sobrem marmitas (o que não aconteceu no dia em que Ecoa a acompanhou), ela as leva até a região central, onde há maior concentração de moradores de rua.
Gabriela Cais Burdmann/UOL
No cardápio, arroz, feijão e um cozido de salsicha. "Isso aqui ajuda muito. Pra quem não tem uma renda fixa... As pessoas que vinham com frequência não estão mais vindo." Naila, 25, trabalha como prostituta e diz que a atividade foi impactada pelo vírus. Ela hoje depende de doações.
Gabriela Cais Burdmann/UOL
"Você espera uma doação, não vem. Quando aparece tem de agradecer." Sandro, 53, estava há vinte dias sem um teto quando conversou com Ecoa. Ele trabalhava com churrasco em festas e perdeu o emprego. Cerca de 24 mil pessoas vivem nas ruas de São Paulo.
Reprodução
Economistas apontam que garantir uma renda é fundamental para os milhões de brasileiros na informalidade, como Naila e Sandro, enquanto o isolamento é necessário. Em 1 de abril, uma renda de R$ 600 foi sancionada pelo governo. Especialistas alertam para o desafio de fazer o dinheiro chegar nas mãos de quem mais precisa.
Foi pensando na dificuldade de quem está sem renda nem casa na pandemia que o artista Pepy Bulhasi, 40, criou um kit com sanduíche, água e maçã. Ele banca a comida com seus trabalhos e entrega as refeições à noite, de bicicleta, em Santa Cecília, incluindo nas doações ração para os cachorros que vivem com os moradores.
Cortesia Pepy Bulhasi
Reprodução
A situação nas ruas de São Paulo está ainda mais difícil com a pandemia. Em 8 de abril, a Prefeitura fechou o Atende 2, equipamento para usuários abusivos de drogas nos Campos Elíseos, e levou 213 pessoas para um novo serviço, no bairro do Glicério, em um ônibus lotado. Durante a ação, um homem foi encontrado morto.
Apesar do medo de contrair a Covid-19, é a fome de quem está nas ruas hoje, encarando o perigo da pandemia junto a outras tantas dificuldades da rotina, o que motiva Jacque a se voluntariar. "Não tem nada pior na vida do que você escutar alguém dizer que está há três dias com fome, tonto, com dor de cabeça", diz ela.
Gabriela Cais Burdmann/UOL

"Medo eu tenho, mas há uma necessidade maior por parte de pessoas que não têm ninguém para fazer nada por elas. E quem poderia estar fazendo, que é o Governo, tem feito muito pouco"

Jacqueline Chanel,
Criadora da ONG Séforas, que trabalha a inclusão trans na igreja evangélica
Questionada, a Prefeitura disse que conta com uma equipe de 600 orientadores sociais nas ruas durante a pandemia. Uma ação chamada Cozinhando Pela Vida está selecionando, até 17 de abril, organizações com planos de trabalho para a produção de 180 mil refeições, durante dois meses, para quem vive nas ruas.
Para quem quiser ajudar com doações, Ecoa tem uma lista com ações em diversas cidades brasileiras. É possível colaborar com dinheiro ou levando alimentos e outros itens a centros de distribuição.
Getty Images
Publicado em 16 de abril de 2020.

Reportagem
Julia Flores

Edição
Adriana Terra

Continue navegando por ECOA