Carro autônomo

Montadoras e empresas de tecnologia disputam corrida para dispensar o motorista. Mas não será nada simples

Rafaela Borges Colaboração para o UOL Arte/UOL

Dirigir está fora de moda. Em um momento em que o uso do carro é cada vez mais questionado, aumenta a busca por soluções de mobilidade que reduzam acidentes, melhorem o trânsito e ainda possibilitem realizar outras atividades durante os deslocamentos.

Quase todas as marcas do mundo automotivo estão trabalhando em sistemas que viabilizem o veículo que dispensa motorista em diversas situações. E as montadoras têm forte concorrência nessa corrida: empresas de tecnologia como Uber e Alphabet, conglomerado do qual faz parte o Google. É a nova 'corrida do ouro'.

No terceiro episódio da série 'Transporte do Futuro', mostramos qual o estágio atual dos carros autônomos, o que será realidade nos próximos anos e quais os entraves para que o motorista possa ser totalmente dispensável - o que não deve acontecer tão cedo.

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Sem motorista, mas só na estrada

Montadoras, sistemistas e empresas de tecnologia estão trabalhando para garantir um futuro com redução nos acidentes de trânsito. A Volvo, uma das marcas mais entusiastas da ideia, vai além: o objetivo da companhia sueca é zerar as mortes nos carros que fabrica.

De acordo com estudo "Mobilidade do Futuro", da Allianz Partners, esse cenário deve se tornar realidade até 2040. Mas, para que o futuro sem acidentes e mortes no trânsito saia do mundo das ideias, o carro autônomo é fundamental, aponta o estudo - e também especialistas do setor de mobilidade.

Quando começaram a surgir os primeiros protótipos sobre o carro autônomo, a previsão era de que esses modelos ganhassem as ruas a partir de 2020, podendo dominá-las no início da década de 30. "O pessoal da indústria teve um choque de realidade", diz o mentor de tecnologia e inovação de sistemas autônomos da SAE Brasil, Jonathan Marxen.

Agora, empresas que trabalham no desenvolvimento tecnologia não estimam mais quando o carro 100% autônomo, aquele capaz de levar o usuário de um ponto ao outro sem restrições de local, sairá do papel. "Nos próximos 50 anos, esse tipo de veículo é horizonte", diz o especialista.

Na indústria, há quem aposte que o veículo capaz de dispensar o motorista em qualquer situação, ou com automação de nível 5 (veja detalhes no quadro), não saia do papel. O que é viável, e promete estar nas ruas já a partir do ano que vem, é o carro autônomo de nível 4. Volvo, BMW e Mercedes-Benz prometem colocar com esse estágio de automação no mercado já no ano que vem (confira no quadro).

A tecnologia de nível 4 é ideal para ser usada em estrada. Na prática, o carro é capaz de levar o usuário de uma cidade a outra sem precisar de interferência humana durante todo o trecho de rodovia. Por isso, ao menos até 2030, o veículo autônomo será um carro para quem quer viajar em transporte individual sem ter de dirigir.

Nesse caso, a responsabilidade por todo o trajeto, e também pelos percalços que forem encontrados na jornada, será da máquina, não do homem. Por isso, o usuário poderá utilizar o celular, ler um livro, assistir um filme ou trabalhar. Mesmo com uso 100% autônomo apenas em estrada, será uma revolução no mobilidade individual.

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Legislação é o entrave

O avanço da automação será o passo mais importante para uma mudança que já está ocorrendo. As montadoras não serão mais fabricantes de veículos, e sim empresas de mobilidade.

De acordo com o estudo da Allianz Partners, "a maioria dos habitantes das cidades não terá mais carro particular, se tornando assinante de mobilidade." O relatório prevê também que, em pequenos deslocamentos em cidades, a bicicleta elétrica será cada vez mais comum.

Antes de esse cenário se tornar realidade, será preciso efetuar mudanças nas legislações dos países. "Para a legislação permitir que o veículo assuma a responsabilidade, em vez do motorista, o carro tem de provar que sabe lidar com as situações", afirma Marxen.

O especialista estima que China e EUA possam sair na frente nesse aspecto, pois as empresas da Europa tendem a ser mais regradas: a indústria espera a iniciativa do governo. Nos Estados Unidos, aliás, já há estados que permitem ao veículo autônomo rodar em vias públicas para testes realizados por empresas desenvolvedoras da tecnologia. Um deles é a Califórnia.

Como funciona um carro autônomo

  • Sistema de manutenção e mudança de faixas

    A partir do nível 4 de automação, permite ao carro mudar de faixa e até movimenta a direção para fazer saídas em rodovias.

  • Controlador de velocidade adaptativo

    Promove a frenagem, a desaceleração e a aceleração automáticas do carro.

  • Sensores e radares

    São fundamentais para as tecnologias que fazem o sistema autônomo funcionar. Permitem ao carro "ler" todo o entorno (rodovia, outros carros, pessoas e objetos, entre outros).

  • GPS de alta resolução

    São mais avançados que os navegadores usados nos carros atuais, pois fazem a leitura a 2 cm do veículo. Hoje, essa leitura é entre 4 e 5 metros à frente do automóvel. São capazes de ler a faixa exata em que o carro está e o local correto de uma saída em rodovia.

  • Câmeras

    Funcionam como um complemento ao GPS, para determinar o local exato em que o carro está. Permitem o funcionamento de sistemas que exigem manobras, como o estacionamento automático do veículo.

  • Inteligência artificial

    É o lado "humano" do carro autônomo. A inteligência é o que fará o veículo ter a capacidade de reagir a diversas situações que encontrar no trânsito.

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Tecnologias precisam evoluir

Mas a viabilidade do carro autônomo vai além da legislação. As vias também precisam evoluir, com faixas bem pintadas e sinalização adequada. E, para que os veículos com automação ganhem as cidades, elas têm de passar por muitas modificações.

Por isso, diversas empresas vêm desenvolvendo conceito de cidades conectadas, em que, usando a internet das coisas, o carro pode "conversar" com o entorno, com outros carros e até com a casa de seu proprietário.

Os sistemas de GPS são uma parte fundamental para o funcionamento do carro autônomo, junto com sensores e radares (confira detalhes no quadro). "Os navegadores comerciais usados hoje são capazes de 'enxergar' o que está a partir de quatro ou cinco metros diante do carro", explica Marxen. "Eles conseguem ler a faixa em que os automóveis estão."

O carro autônomo terá de adotar navegadores de alta definição, capazes de ler o que está a partir de um raio de 2 cm do veículo. Essa tecnologia já foi desenvolvida.

No entanto, o trabalho de localizar o veículo no ambiente é complexo e vai muito além do GPS, que depende de uma rede. Para os momentos em que navegadores não forem suficientes, o carro autônomo terá de recorrer a câmeras e radares de alta precisão.

Outra tecnologia que ajudará a automação é o Lidar, um super sensor que usa feixes de laser para ajudar a mapear o ambiente.

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Inteligência artificial

Uma das tecnologias mais importantes para o funcionamento do carro autônomo é a inteligência artificial. Mesmo com todos os sistemas de conectividade e segurança que permitem ao automóvel dispensar o motorista, ele precisa aprender como lidar com diversas situações.

A inteligência artificial, que dispensa centrais de comando, é o que viabiliza essa aprendizagem. Porém, ela também pode ser o grande entrave ao carro autônomo de nível 5, aquele que, teoricamente, consegue rodar sem motorista em qualquer situação.

De acordo com artigo do site norte-americano Vox, as empresas desenvolvedoras da tecnologia autônoma estão tendo dificuldades para "ensinar" algumas situações à inteligência artificial dos automóveis. Isso porque, para que a máquina aprenda, é preciso vivenciar na prática.

Situações que envolvem segurança, como acidentes de carro, são as difíceis de ocorrerem na prática durante os testes, e também de serem simuladas em vias públicas. "Há mais entraves, como por exemplo as condições climáticas", afirma Marxen. "Imagine uma situação de chuva ou forte neblina. Isso pode gerar ao carro dificuldades em identificar, por exemplo, se o farol está verde ou vermelho."

Segundo o especialista, é complicado programar todas as situações do trânsito em um automóvel. E caro. Por isso, a meta idealizada pela Uber, de ter veículos que vão buscar o cliente em casa sem motorista, parece cada vez mais distante, se não impossível de ocorrer. Pelo menos fora de vias controladas.

Por ora, a perspectiva é de que, mesmo assumindo a responsabilidade, o carro precise contar com a interferência do motorista em algumas situações. Isso não deverá mudar nas próximas décadas.

Tesla/Handout via Reuters

Tesla: pioneirismo e polêmica

A Tesla sempre esteve na vanguarda quando o assunto é carro autônomo. A marca, oficialmente, classifica como seus veículos no nível 2 de automação, como as demais montadoras. No entanto, sua experiência deixa claro que, entre os estágios 2, 3 e 4, a questão é muito mais sobre legislação do que sobre tecnologia embarcada.

Os modelos da Tesla, diferentemente dos oferecidos por outras marcas, são capazes de mudar de faixa sem interferência do motorista. Além disso, a montadora já teve carros preparados para rodar em rodovias sem pedir participação humana, o que os classificava, em automação, como estágio 3 ou 4.

Por causa da legislação, que atribui sempre a responsabilidade ao motorista, a Tesla acabou introduzindo uma limitação de tempo para o funcionamento de seu sistema autônomo. No entanto, é comum ver, em vídeos no YouTube, usuários encontrando maneiras de "enganar o sistema", para que ele funcione de maneira ilimitada.

Recentemente, o polêmico CEO da Tesla, Elon Musk, afirmou que a marca terá autônomos de nível 5 ainda este ano. Contrariando outros executivos do setor de mobilidade, e sem especificar em que consiste esse estágio de automação, Musk disse que a marca em breve lançará modelos totalmente autônomos.

Porém, mesmo antes de cumprir sua promessa, a Tesla já vinha sendo alvo de algumas polêmicas por causa do sistema que já oferece, chamado de Auto Pilot. Uma família da Califórnia, nos Estados Unidos, acusa o funcionamento irregular do Auto Pilot como causa da morte de um engenheiro de 38 anos, em 2018.

Embora esse processo esteja relacionado a um carro produzido em série, há outras ocorrências de acidentes com sistemas autônomos. O mais famoso ocorreu em 2018, no Arizona, estado norte-americano que permite testes de fábrica com a tecnologia em vias públicas.

Elaine Herzog, de 49 anos, foi atropelada por um modelo autônomo em testes pela Uber. Ela morreu em decorrência dos ferimentos. A inteligência artificial do sistema não conseguiu identificá-la como uma pessoa, pois ela atravessava a rua fora da faixa de pedestres. O acidente levou a empresa de tecnologia a uma completa reformulação de todo o seu processo de desenvolvimento de veículos autônomos.

Próximos carros com automação

Automação deve ir do nível 2 diretamente para o estágio 4. E a corrida para lançar a tecnologia já começou

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Volvo XC90

O primeiro carro da marca a ser capaz de circular em rodovias sem nenhuma intervenção humana é esperado para 2021. A tecnologia virá na nova geração do XC90. A Volvo já fez parceria com a Uber para o desenvolvimento de um modelo 100% autônomo. Porém, recentemente foi divulgado que sua nova parceira nessa missão é a Waymo.

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BMW iNext

A montadora anunciou que seu primeiro veículo com sistema autônomo de nível 4 será lançado também em 2021. Trata-se da versão final do iNext, que será feita em Dingolfing, na Alemanha. A BMW firmou uma parceria inusitada para o desenvolvimento de seus veículos autônomos com a arquirrival Mercedes-Benz.

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Mercedes-Benz Classe S

A estreia da marca no universo dos carros em estágio 4 de automação também está prevista para o ano que vem. O modelo será a nova geração do Classe S.

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Audi A8

O A8 atual chegou com a promessa de ser o primeiro autônomo de nível 3 do mercado, mas os planos esbarraram em fatores como legislação. O carro tem a tecnologia, mas ela não está habilitada. Na renovação prevista para o sedã no ano que vem, a fabricante pretende lançar o quarto estágio do sistema.

Ilze Filks/Reuters Ilze Filks/Reuters

Veículos comerciais

Para o engenheiro mecatrônico Jonathan Marxen, da SAE Brasil, o uso da tecnologia de automação em veículos comerciais (caminhões e ônibus) será fundamental para viabilizar o sistema em carros de passeio. "Por ter muitos radares, trata-se de uma tecnologia cara. Com o uso comercial, os componentes já começam a ganhar escala."

Além do fator econômico, Marxen diz também que a automação em modelos comerciais é mais simples que em carros de passeio. Em um ônibus urbano, a implementação da tecnologia é menos complexa, pois esse veículo anda a maior parte do tempo em uma faixa específica.

Já os caminhões usados em lavouras, por exemplo, podem usar tecnologias autônomas em ambientes controlados. A Mercedes-Benz e a Volvo já vendem veículos do segmento com GPS integrado à direção.

Na mineradora Vale, já há caminhões autônomos em operação. Para eles, há um operador, que fica à distância e faz assume o comando por controle remoto apenas quando o veículo não sabe como agir. Ao volante, não há ninguém.

Próximos passos

Para Jonathan Marxen, os próximos passos deverão ser focados na evolução dos sistemas de segurança e automação. "Os carros deverão ficar cada vez mais drive by wire (controlados por sistemas eletrônicos)."

Para os especialistas, é preciso também manter o foco na evolução dos sistemas de segurança já existentes, para que fiquem cada vez mais precisos.

Com o lançamento comercial do autônomo de nível 4 capaz de rodar sem ajuda na estrada, no ano que vem, o desenvolvimento da tecnologia deverá se voltar para o desafio de levar a automação para o ambiente das cidades.

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Empresas de tecnologia na corrida

As companhias de tecnologia estão fortes na corrida pelo carro autônomo, seja como parceiras ou concorrentes das montadoras. Além da Uber, que já desenvolveu protótipos com a Volvo, empresas como Argo, Baidu e Cruise estão investindo milhões nessa tecnologia.

A líder dessa corrida, seja no setor de tecnologia ou no automotivo, é a Waymo. A empresa foi criada pelo grupo Alphabet, o conglomerado da Google, para desenvolver sistemas autônomos.

A Waymo já fez parcerias com FCA e Jaguar Land Rover. Recentemente, anunciou que passa a ser parceira de uma das montadoras que estão mais comprometidas com o carro autônomo, a Volvo.

De acordo com informações da agência Bloomberg, a Waymo já rodou 32 milhões de quilômetros em testes com seus 600 carros autônomos em vias dos Estados norte-americanos de Arizona e Califórnia.

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