Refém da Ranger: por que a Ford carece de produtos competitivos no Brasil

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Em janeiro de 2021, o Brasil enfrentava o auge da pandemia de covid-19. A indústria automobilística, assim como diversos setores da economia, estava em crise, embora o pior já tivesse passado. Então, veio o anúncio que chocou o mercado: o fim da produção de carros na fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia.
Como a empresa já havia encerrado as atividades em sua outra planta, em São Bernardo do Campo (SP), aquela notícia significava que o Brasil perdia uma de suas mais antigas e tradicionais fabricantes de automóveis. Dali em diante, a Ford passaria a atuar no Brasil como importadora.
Esta semana, começo uma série sobre montadoras responsáveis por grandes reviravoltas no mercado brasileiro nos últimos anos. Vou analisar as que chegaram, as que dispararam em vendas e também as que perderam espaço. No primeiro episódio, o assunto é a Ford, que já foi uma das maiores do País e, em uma reviravolta de fatos, passou à condição de importadora.
Quatro anos se passaram desde o fim da produção nacional e a Ford, que era uma das cinco maiores fabricantes, está fora do "top 10" do ranking de montadoras. Manteve um produto produzido na região do Mercosul, que tem o Brasil como principal mercado. Trata-se da Ranger, fabricada na Argentina. A picape, que chegou à nova geração em 2023, é um grande sucesso, e conseguiu superar a Chevrolet S10 para ser segunda mais vendida de seu segmento - atrás da Toyota Hilux.
Mesmo com a Ranger, a Ford não é a número 1 em emplacamentos entre as importadoras. Esse posto é da BYD, que este ano soma 30.156 unidades vendidas. Por enquanto, esta traz exclusivamente modelos chineses, mas promete iniciar a montagem de carros no Brasil no fim de junho (na planta de Camaçari que pertencia à norte-americana).
Enquanto isso, a Ford soma 14.994 unidades vendidas em 2025 (até abril). Olhando os números, é fácil notar que, sem a Ranger, a situação seria muito complicada para a montadora, que se tornou praticamente uma refém da picape. Este modelo somou, este ano, 10.343 emplacamentos.
Ou seja: sem a Ranger, a Ford tem 4.651 unidades vendidas no Brasil em 2025, menos que a BMW - que é fabricante, mas é também marca de luxo, com carros a partir de R$ 321 mil. Dá quase para dizer que a norte-americana é marca de um veículo só. Porém, há um outro produto com leve relevância. Trata-se do Territory, do qual falaremos mais adiante.
Transição
Passar de fabricante à importadora não é um processo simples. Ainda mais como falamos daquela que foi a primeira a montar carros no País - a partir de 1919, com o modelo T. E que, nos últimos anos como montadora, estava focada em segmentos de automóveis compactos com apelo popular - com o Ka, o Ka Sedan e o EcoSport.
De vendedora de compactos a marca que tem como carro-chefe a Ranger, a mais de R$ 200 mil, é um passo e tanto. E a primeira insatisfação veio da rede de concessionárias - bastante reduzida, aliás, na transição de fabricante para importadora.
Além disso, a marca teve de optar por uma pegada mais premium. Afinal, não dá para importar modelos populares de locais como México, Estados Unidos e China e mantê-los com preços competitivos. Isso, atualmente, é difícil até para montadoras chinesas, que também focam suas estratégias em carros de maior valor agregado.
Só que a história de construção de marca da Ford é muito diferente da Mitsubishi, por exemplo. A japonesa é generalista no mundo, mas aqui no Brasil sempre manteve uma aura premium, por nunca ter atuado em segmentos populares. Para a norte-americana, ex-fabricante de Ka e Fiesta, trabalhar uma imagem mais sofisticada é um longo processo, com transição que não ocorre do dia para a noite.
Por fim, há os produtos. Como a Ranger, a Ford tem outros bons produtos oferecidos no Brasil, importados de diversos locais. A picape, no entanto, se dá bem por ser um produto moderno e tecnológico em um segmento de concorrentes bastante defasados. Já os demais acabam se dando mal em um universo de rivais muito superiores.
Produtos
O brasileiro pode até esbravejar nas redes sociais sobre a falta de confiança causada pela mudança da Ford da condição de fabricante à importadora. Mas o fato é que, se o produto é bom, tem ótimo custo-benefício e está muito acima da concorrência, o brasileiro compra. Simples assim, em alguns casos.
E esse é o caso da Ranger. O brasileiro está comprando e o brasileiro está gostando. Não é fácil vender mais que a S10, que tem um grande índice de fidelização. Além disso, para se manter líder sem ameaça, a Toyota passou a dar mais atenção do que antes às versões de entrada da Hilux - afinal, o grande trunfo do modelo da Ford é a tecnologia embarcada nas opções mais caras.
Porém, para os demais produtos, a vida é muito mais difícil. A F-150, apesar de ser o veículo mais vendido dos EUA, veio em uma versão cara, para ser veículo de nicho. O mesmo ocorre com o Mustang. Neste ano, os produtos tiveram respectivamente 404 e 241 unidades emplacadas.
Já com o Bronco Sport, a coisa começa a mudar. O modelo não deveria ser de nicho, mas é. Por R$ 260 mil, tem boa capacidade off-road, motor que garante agilidade na estrada e muito prazer de dirigir. Mas, em 2025, somou apenas 560 emplacamentos. Isso pode estar relacionado à mudança que ocorrerá em breve. Mas fato é que o SUV nunca fez grande sucesso por aqui.
O Territory tinha tudo para ser um fenômeno de vendas. Trazido da China, custa R$ 215 mil. Desde o lançamento da atual geração, no segundo semestre de 2023, o aumento foi de apenas R$ 5 mil. O preço e o espaço interno são os grandes apelos.
Porém, isso poderia fazer sentido em um universo de SUVs médios como Compass, Corolla Cross e Taos. O problema é que, cada vez mais, montadoras chinesas enchem o mercado de produtos híbridos plug-in, com centrais multimídia conectadas e amplo espaço interno. Isso por preço semelhante, um pouco superior ou, em alguns casos (como o do Song Pro) até inferior ao do Territory.
Nesse panorama, o produto chinês da Ford perdeu apelo. Ele tem propulsor a combustão convencional (169 cv), sem eletrificação. O multimídia não empolga e os sistemas de assistência à condução são os mesmos que encontramos em tantos outros SUVs médios. O Territory é bom e competitivo. O problema é que a concorrência (chinesa) acabou se mostrando muito superior.
Diante da concorrência chinesa, barato mesmo é Caoa Chery Tiggo 7, por menos de R$ 150 mil. Um produto de R$ 215 mil passa a não parecer assim tão interessante.
Mas, no universo da Ford, o Territory é o segundo mais vendido, com 2.055 emplacamentos este ano. Enquanto isso, a linha Song, da BYD, soma 11.784 exemplares, o Caoa Chery Tiggo 7 tem 8.383 e o GWM Haval H6, 7.589.
O segmento tem muitos outros produtos, como Corolla Cross, Compass e Taos. Aqui, no entanto, a comparação foi com outros carros chineses, ou de origem chinesa (a exemplo do Tiggo 7, que tem versões montadas no Brasil).
Futuro
A Maverick ficou de fora da lista de produtos acima, mas este ano teve 491 emplacamentos apenas. Isso porque acaba de mudar. A Ford lançou a versão reestilizada do modelo, que pode agora ser a grande aposta de crescimento da montadora.
Afinal, para quem não atua em segmentos mais populares, picapes como a Maverick são uma boa aposta, por terem alto apelo de vendas. A Toro, por exemplo, somou nada menos do que 15.229 emplacamentos em 2025.
O modelo da Fiat não é o foco da Maverick, mas a Rampage é. O produto da Ford chega a partir de R$ 219.990 para encarar o da RAM, que teve 7.246 unidades vendidas em 2025. É um número considerável. Se a marca americana conseguisse algo próximo, reduziria sua dependência da Ranger.
De resto, a Ford vem testando o interesse em alguns produtos, como o Bronco (rival do Jeep Wrangler) e o Everest (SUV da Ranger). Porém, nenhum deles tem lançamento confirmado. Para 2025, a marca prometeu dez novidades. Já chegaram picapes Tremor (com apelo aventureiro), Mustang manual, versões da Transit, Territory 2025 e a nova Maverick. Em breve, virá o Bronco Sport reestilizado.
A coluna entrou em contato com a assessoria de comunicação da Ford para saber a posição da empresa sobre questões como expectativas para o futuro, projeção de crescimento, planejamento de produtos e perspectivas como fabricante no Mercosul, entre outros aspectos abordados nesta reportagem. De acordo com a montadora, "a Ford deixou de investir em todos os segmentos do mercado para focar naquilo que sabe fazer de melhor." Nesse grupo, a empresa coloca as categorias de picapes e SUVs, e fala também sobre "ícones" (como o Mustang).
A Ford informa também que, no ano passado, cresceu 70% (na comparação com 2023). "Em 2025, nosso plano é continuar a crescer acima do mercado". A montadora aponta que, até maio, já avançou 19%, ante os 3,5% das vendas gerais. Sem revelar números, a empresa informa ainda que, "desde a operação do novo modelo de negócios, a operação da Ford é lucrativa no Brasil." Por ora, não há plano de voltar a produzir veículos no País.
Com exceção dos números divulgados pela Ford, os dados de vendas e posições em ranking desta análise estão em relatório da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). No próximo episódio, vamos falar sobre a Hyundai, a discreta quarta força do mercado brasileiro.
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