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Helga se vê sozinha em cicloviagem, lida com o medo e chega aonde quer

A paulista Helga Bevilacqua atravessou a Europa de bicicleta em 2014 - Acervo pessoal
A paulista Helga Bevilacqua atravessou a Europa de bicicleta em 2014 Imagem: Acervo pessoal

23/05/2020 04h00

"Não vou conseguir responder."

Geralmente é isso que penso quando uma mulher me pergunta se é seguro encarar sozinha uma cicloviagem. Eu tento dar uma explicação sem fundamento, enrolo e não respondo com clareza, porque é muito fácil, da minha posição, dizer "tudo bem, vá tranquila", quando não sou eu quem sente aquele tipo de medo.

Eu, como cicloviajante, já senti muito medo. Na estrada e antes de partir. Quando sentimos isso, sobretudo no planejamento da viagem, buscamos inspiração em outras pessoas. Algumas nos dão a coragem necessária para começar.

Helga Bevilacqua fez isso, sem nem imaginar — decerto, fez isso com mais ciclistas. Em abril de 2019, ao ler seu relato sobre uma travessia de Barcelona a Amsterdã, feito em 2014, eu decidi tentar, meses depois, repetir o que ela fez. E o que ela fez foi grandioso.

Simplesmente porque seus planos traçados ainda no Brasil se perderam de repente, e ela se viu sozinha na estrada logo na sua primeira grande cicloviagem. Numa situação inesperada, Helga teve de lidar com o medo para seguir em frente, com bicicleta, bagagem, força e coragem.

Helga - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Helga atravessou a Europa em 30 dias e pedalou 1.500 quilômetros, 500 deles sozinha
Imagem: Acervo pessoal

A paulista de Sorocaba já havia feito algumas cicloviagens curtas aqui no Brasil, mas em 2014 decidiu atravessar a Europa com seu companheiro, um veterano nesse tipo de viagem. Os dois saíram juntos de Barcelona rumo à França — depois à Bélgica e, enfim, à Holanda.

Helga e seu companheiro, porém, passaram a ter alguns desentendimentos. Eles culminaram numa abrupta separação, que aconteceu na cidade francesa de Givet, já na fronteira com a Bélgica. Seu companheiro pedalou para um lado, e ela para outro, mas sem desistir de atingir a capital holandesa. Sozinha, numa mistura de receios, encarou os 500 quilômetros restantes, atravessou dois países e chegou a Amsterdã.

Ainda em território belga, ganhou um "curso" rápido de mecânica de um amigo viajante que havia hospedado em São Paulo meses antes. Mas o medo é inerente à viagem, é vivo, constante e libertador. E, segundo Helga, um aliado.

"O medo sempre vai existir, a maior besteira é achar que vai perder o medo. É preciso tê-lo como aliado, não como inimigo. Nunca perdi o medo. Ele como aliado dá espaço para intuição. Quando achamos que temos o controle de tudo, desligamos a intuição", disse a cicloviajante à Coluna.

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Depois das cicloviagens, Helga decidiu viver viajando pelo mundo como nômade digital
Imagem: Acervo pessoal

Helga conta que o maior medo estava ligado à possibilidade de assédio na estrada. Nos 1.000 km percorridos até o momento em que ficou sozinha, ela não cruzou com nenhuma mulher ciclista na estrada. Aflita, percebeu que esse tipo de receio a acompanhava desde o Brasil, em trajetos curtos na cidade de São Paulo. Por isso, chegar sozinha a Amsterdã foi tão marcante.

"Eu me senti empoderada. Pensei: 'eu posso pedalar 500 km sozinha'. Senti-me forte e poderosa. Foi uma grande transformação", ressaltou Helga, que, num texto escrito em 2018, explicou a relação com o medo: "Coragem - e eu demorei a entender isso - não é fazer o que os outros têm medo de fazer. Coragem é fazer o que você tem medo de fazer. E isso é muito diferente."

A ciclista ainda ressalta que encontrou muita solidariedade no caminho. Ter cumprido o trajeto, mesmo com uma separação no meio do caminho, tornou-se ainda libertador, de acordo com ela.

"Em nenhum momento ser mulher foi uma questão enquanto pedalei sozinha durante a viagem e essa foi uma das sensações mais libertadoras que senti. Não pelo fato ter superado o meu medo, mas pelo fato de não me sentir limitada por ser uma mulher", escreveu no mesmo texto de 2018.

O que Helga faz hoje?

Helga é formada em direito pela PUC de São Paulo. Ela chegou à capital paulista em 2000 e, oito anos depois, passou a ter a bicicleta como seu meio de transporte. O carro foi deixado de lado após um "arrastão" numa grande avenida da cidade.

Em 2013, infeliz, decidiu mudar de vida quando deixou um escritório de advocacia. Ela passou a se dedicar a uma peça de teatro, além de publicar um livro, que inspirou outra peça. "Comecei a fazer pequenas viagens e conheci o clube de cicloturismo", contou.

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Helga durante a passagem pela Malásia: viagem de três anos foi interrompida por causa do coronavírus
Imagem: Acervo pessoal

No ano seguinte, fez a travessia na Europa. Quando voltou ao Brasil, viu-se com desejo de dar a volta ao mundo de bicicleta, mas, por falta de financiamento, descartou o plano. Helga, porém, dedicou-se a viagens menores pelo Brasil.

Em 2016, montou sua empresa de marketing de conteúdo, chamada A Redatora. Nos últimos três anos, tornou-se nômade digital, com produção de conteúdo feita em diversos países do mundo. De Israel, no começo de 2017, ela já passou por Polônia, Servia, Portugal, Bulgária, Grécia, Cingapura, Malásia, Tailândia e Vietnã.

Em meia a tudo isso, Helga manteve ativa sua paixão pela bicicleta e até fez uma cicloviagem pela Croácia, além de trajetos menores na Jordânia e na Alemanha.

Ela voltou ao Brasil há um mês, em meio à pandemia no novo coronavírus. Os planos de viver pelo mundo — e, sem perceber, de inspirar outras pessoas — seguem intactos.

Um ano depois de ter feito a minha travessia, continuo sem respostas para a pergunta sobre o medo. Mas, afirmo, sem receio, que Helga foi fundamental para eu ter coragem de encarar tudo aquilo.