Montadoras chinesas assumem fábricas ociosas de outras marcas no Brasil

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Nos últimos anos, o Brasil passou a ocupar um papel central na estratégia de expansão das montadoras chinesas. E esse movimento está longe de ser discreto. Com anúncios públicos, cifras bilionárias e articulações de alto nível, empresas como GWM, BYD, Geely e GAC Motor estão reativando fábricas que foram deixadas por gigantes tradicionais - como Ford e Mercedes-Benz - ou ocupando linhas de montagens ociosas, redesenhando o mapa industrial do setor automotivo no país.
A GWM (Great Wall Motors), por exemplo, comprou em 2021 a fábrica desativada da Mercedes-Benz em Iracemápolis, interior de São Paulo. A planta, que já foi símbolo de ambição premium da marca alemã no Brasil, agora se prepara para um novo capítulo. A produção da GWM está prevista para começar em julho de 2025. A capacidade inicial será de 50 mil veículos por ano, com planos claros de expansão.
Segundo a empresa, a nacionalização de componentes deve saltar dos atuais 35% para 60% até 2026 — uma clara sinalização de comprometimento com a indústria local. A marca já contratou 400 funcionários e pretende dobrar esse número até o fim do ano.
No Nordeste, em Camaçari (BA), a antiga fábrica da Ford, que fechou as portas em 2021, está sendo transformada pela BYD em um complexo para produção de veículos elétricos, híbridos e também baterias. Com investimentos que somam R$ 5,5 bilhões, a capacidade projetada é de até 150 mil veículos por ano.
A operação deve começar até o fim de 2026. A estimativa é de geração de até 20 mil empregos diretos e indiretos. A BYD não esconde que quer fazer do Brasil uma plataforma estratégica para exportação de elétricos para a América Latina.
Já a Geely optou por um caminho diferente. Em vez de comprar uma fábrica, firmou uma parceria com a Renault do Brasil e se tornou acionista minoritária da operação nacional da marca francesa. A ideia é usar parte da capacidade ociosa da planta em São José dos Pinhais (PR), em uma espécie de "coworking industrial".
O SUV Geely EX5 será o primeiro a chegar ao Brasil, com lançamento previsto para julho de 2025, ainda importado da China. Mas a produção local está nos planos, condicionada ao sucesso do acordo e à aceitação do público.
E o movimento mais recente vem da GAC Motor, que anunciou um investimento de US$ 1,3 bilhão (cerca de R$ 7,4 bilhões) para iniciar sua operação industrial no Brasil a partir de 2026. O local escolhido foi Catalão, em Goiás, onde funciona atualmente a fábrica da HPE Automotores, responsável pela produção dos veículos da Mitsubishi.
Apesar de a Mitsubishi ter deixado claro que sua planta não está à venda, a parceria pode ser parecida com a estabelecida entre Renault e Geely, usando a capacidade ociosa. A produção nacional completa, com exceção das baterias, deve começar até o segundo semestre de 2026. A capacidade anual ainda não foi revelada.
Por que China escolheu o Brasil?
A movimentação das montadoras chinesas não apenas reativa fábricas que estavam abandonadas ou subutilizadas - como também joga luz sobre uma questão incômoda: o Brasil está preparado para competir com uma China altamente produtiva, automatizada e com custos mais baixos?
Para o consultor automotivo Milad Kalume, sim - mas com ressalvas. Ele explica que o Brasil ainda é um mercado estratégico global, figurando consistentemente entre os dez maiores do mundo em volume de produção e vendas. No entanto, Kalume alerta que o mercado interno ainda é limitado.
"Se somarmos as capacidades anunciadas por GWM e BYD, estamos falando de até 200 mil veículos por ano. E isso sem contar Geely e GAC. Mas nosso mercado gira hoje em torno de 2,5 milhões de unidades por ano. Ele cresceu, mas não o suficiente para absorver tudo isso", explica.
E há mais. Com a taxa de juros ainda elevada (14,75% em maio de 2025) e crédito restrito, o potencial de consumo segue amarrado. Kalume lembra que, para um mercado saudável e com geração de lucro para todos os elos da cadeia, o ideal seria uma base de 3,5 milhões de veículos por ano. "Só com juros baixos, crédito amplo e aumento de renda é que isso vai acontecer", diz.
A escolha das chinesas por fábricas já existentes também tem um motivo logístico claro: elas estão localizadas em polos com cadeias de suprimentos já consolidadas, como São Paulo, Paraná, Bahia e Goiás. Isso reduz o custo e o tempo de operação. "É muito mais fácil reativar uma fábrica em Iracemápolis do que montar uma do zero no Acre, por exemplo", brinca Kalume.
Enquanto isso, há tensão nos bastidores. Montadoras tradicionais veem com preocupação a agressividade chinesa. Os veículos são modernos, com design competitivo e preços que desafiam os modelos atuais. E, apesar da alíquota de importação chegando a 35%, os chineses ainda conseguem ser competitivos. A ameaça é real. Nos corredores da Anfavea, só se fala em buscar formas de conter esse avanço.
Em um país onde fábricas fechadas viraram um símbolo do declínio industrial nos últimos anos, a volta à atividade - mesmo que sob novas bandeiras - representa, ao menos, uma nova chance. Mas o futuro dessa aposta depende menos da origem dos investidores e mais da nossa capacidade de reerguer um mercado capaz de sustentar tantos novos competidores. O jogo está sendo jogado. E, agora, com regras redefinidas.
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