Paula Gama

Paula Gama

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
ReportagemCarros

Montadoras chinesas assumem fábricas ociosas de outras marcas no Brasil

Nos últimos anos, o Brasil passou a ocupar um papel central na estratégia de expansão das montadoras chinesas. E esse movimento está longe de ser discreto. Com anúncios públicos, cifras bilionárias e articulações de alto nível, empresas como GWM, BYD, Geely e GAC Motor estão reativando fábricas que foram deixadas por gigantes tradicionais - como Ford e Mercedes-Benz - ou ocupando linhas de montagens ociosas, redesenhando o mapa industrial do setor automotivo no país.

A GWM (Great Wall Motors), por exemplo, comprou em 2021 a fábrica desativada da Mercedes-Benz em Iracemápolis, interior de São Paulo. A planta, que já foi símbolo de ambição premium da marca alemã no Brasil, agora se prepara para um novo capítulo. A produção da GWM está prevista para começar em julho de 2025. A capacidade inicial será de 50 mil veículos por ano, com planos claros de expansão.

Segundo a empresa, a nacionalização de componentes deve saltar dos atuais 35% para 60% até 2026 — uma clara sinalização de comprometimento com a indústria local. A marca já contratou 400 funcionários e pretende dobrar esse número até o fim do ano.

No Nordeste, em Camaçari (BA), a antiga fábrica da Ford, que fechou as portas em 2021, está sendo transformada pela BYD em um complexo para produção de veículos elétricos, híbridos e também baterias. Com investimentos que somam R$ 5,5 bilhões, a capacidade projetada é de até 150 mil veículos por ano.

A operação deve começar até o fim de 2026. A estimativa é de geração de até 20 mil empregos diretos e indiretos. A BYD não esconde que quer fazer do Brasil uma plataforma estratégica para exportação de elétricos para a América Latina.

Já a Geely optou por um caminho diferente. Em vez de comprar uma fábrica, firmou uma parceria com a Renault do Brasil e se tornou acionista minoritária da operação nacional da marca francesa. A ideia é usar parte da capacidade ociosa da planta em São José dos Pinhais (PR), em uma espécie de "coworking industrial".

O SUV Geely EX5 será o primeiro a chegar ao Brasil, com lançamento previsto para julho de 2025, ainda importado da China. Mas a produção local está nos planos, condicionada ao sucesso do acordo e à aceitação do público.

E o movimento mais recente vem da GAC Motor, que anunciou um investimento de US$ 1,3 bilhão (cerca de R$ 7,4 bilhões) para iniciar sua operação industrial no Brasil a partir de 2026. O local escolhido foi Catalão, em Goiás, onde funciona atualmente a fábrica da HPE Automotores, responsável pela produção dos veículos da Mitsubishi.

Apesar de a Mitsubishi ter deixado claro que sua planta não está à venda, a parceria pode ser parecida com a estabelecida entre Renault e Geely, usando a capacidade ociosa. A produção nacional completa, com exceção das baterias, deve começar até o segundo semestre de 2026. A capacidade anual ainda não foi revelada.

Continua após a publicidade

Por que China escolheu o Brasil?

A movimentação das montadoras chinesas não apenas reativa fábricas que estavam abandonadas ou subutilizadas - como também joga luz sobre uma questão incômoda: o Brasil está preparado para competir com uma China altamente produtiva, automatizada e com custos mais baixos?

Para o consultor automotivo Milad Kalume, sim - mas com ressalvas. Ele explica que o Brasil ainda é um mercado estratégico global, figurando consistentemente entre os dez maiores do mundo em volume de produção e vendas. No entanto, Kalume alerta que o mercado interno ainda é limitado.

"Se somarmos as capacidades anunciadas por GWM e BYD, estamos falando de até 200 mil veículos por ano. E isso sem contar Geely e GAC. Mas nosso mercado gira hoje em torno de 2,5 milhões de unidades por ano. Ele cresceu, mas não o suficiente para absorver tudo isso", explica.

E há mais. Com a taxa de juros ainda elevada (14,75% em maio de 2025) e crédito restrito, o potencial de consumo segue amarrado. Kalume lembra que, para um mercado saudável e com geração de lucro para todos os elos da cadeia, o ideal seria uma base de 3,5 milhões de veículos por ano. "Só com juros baixos, crédito amplo e aumento de renda é que isso vai acontecer", diz.

A escolha das chinesas por fábricas já existentes também tem um motivo logístico claro: elas estão localizadas em polos com cadeias de suprimentos já consolidadas, como São Paulo, Paraná, Bahia e Goiás. Isso reduz o custo e o tempo de operação. "É muito mais fácil reativar uma fábrica em Iracemápolis do que montar uma do zero no Acre, por exemplo", brinca Kalume.

Continua após a publicidade

Enquanto isso, há tensão nos bastidores. Montadoras tradicionais veem com preocupação a agressividade chinesa. Os veículos são modernos, com design competitivo e preços que desafiam os modelos atuais. E, apesar da alíquota de importação chegando a 35%, os chineses ainda conseguem ser competitivos. A ameaça é real. Nos corredores da Anfavea, só se fala em buscar formas de conter esse avanço.

Em um país onde fábricas fechadas viraram um símbolo do declínio industrial nos últimos anos, a volta à atividade - mesmo que sob novas bandeiras - representa, ao menos, uma nova chance. Mas o futuro dessa aposta depende menos da origem dos investidores e mais da nossa capacidade de reerguer um mercado capaz de sustentar tantos novos competidores. O jogo está sendo jogado. E, agora, com regras redefinidas.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.