'Amo ser motoboy': a rotina dos cadeirantes que trabalham como entregadores
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Cléber Vaz, de Manaus, e Juliano Daurelio, de São Paulo, não se conhecem, mas compartilham a mesma paixão: estar sobre duas rodas. Cadeirantes e entregadores, eles transformaram a moto adaptada em meio de sustento, liberdade e superação. Mas, por trás do amor pela profissão, há também obstáculos diários que a maioria dos motoboys nunca vai enfrentar — desde calçadas irregulares até a ausência de políticas inclusivas nas plataformas de delivery.
"A moto que me tirou a mobilidade foi a mesma que me devolveu a liberdade"
Juliano, 37 anos, ficou paraplégico após um acidente de moto em 2015. A lembrança daquele dia ainda é um borrão. "Fazia dois dias que eu estava sem dormir, fui para balada com meu irmão. Não lembro do acidente, só lembro de quando saí... e acordei no hospital."
Ele sofreu fratura em quatro vértebras e esmagou a medula. "O médico disse: 'Você caiu da moto, esmagou a medula e não vai andar mais'. Aí eu fiquei doido. Não admitia."
A reabilitação não foi só física. Ele tentou tirar a própria vida três vezes. "Eu imploro perdão para Deus todo dia por isso. A gente não tem o direito de tirar a própria vida."
O ponto de virada veio sozinho, em um momento de silêncio. "Puxei a cadeira e falei: 'Se eu tiver que aceitar viver em cima de você, vou aceitar. Mas quero saber se você vai me aceitar. Porque se você não me aguentar, eu vou te destruir no meio. Você não vai me destruir'. A partir dali, eu meti marcha na vida."
Hoje, Juliano é motoboy com moto adaptada com uma rampa, para que possa pilotar em sua cadeira de rodas. E é orgulhoso do que conquistou: "você não tem ideia do prazer que é estar em cima da moto. Buscar e levar. Tomar chuva, andar por aí. Tem coisa melhor?"
"Não existe trabalho para PCD cadeirante. Nenhuma empresa contrata"
Cléber Vaz, 44 anos, é cadeirante há 23. Ele vive em Manaus e é pai de três filhos. Sem oportunidades no mercado formal, Cléber se reinventou como entregador.
"Nenhuma empresa quer contratar cadeirante, se for para contratar alguém com deficiência, preferem que seja algo leve. Quem falta um dedo, quem é surdo. Mas cadeirante, não. Aí a gente tem que correr por fora. Vi nas entregas uma forma de sustentar minha família. Hoje sou eu quem põe o alimento na mesa."
A moto que ele usa foi adaptada com rampa traseira, permitindo que ele suba com a cadeira de rodas. "Foi feita por um amigo meu. Custou cerca de R$ 25 mil. Teve muita ajuda, muita vaquinha. Mudou minha rotina. Quando comecei, fazia 20, 30 entregas por dia."
Hoje, com menos plataformas operando em Manaus, Cléber atua por conta própria. "Espero alguém me chamar. Não é como antes. É como uma loteria." Para complementar a renda, ele e a esposa vendiam alho e bolo de aipim nas ruas. "A moto foi uma forma de expandir isso também. As pessoas pediam para entregar em outros bairros. Foi aí que tudo começou."
"É rampa, escada, calçada ruim. Mas eu vou"
Tanto Cléber quanto Juliano enfrentam dificuldades específicas da mobilidade urbana. Prédios sem acesso, calçadas desniveladas e distâncias que, para cadeirantes, se tornam enormes obstáculos.
"Tem condomínio que a portaria fica 500 metros do apartamento. Alguns porteiros deixam eu entrar com a moto. Outros, não. Aí eu descia da moto, colocava a mochila nas costas e ia. Eu nunca vi minha deficiência como obstáculo", diz Cléber.
Juliano conta que cada entrega é um desafio. E ele adora isso. "Tem umas entregas difíceis, com muita escada. Mas eu levo como missão. Pego, coleto, entrego como se fosse pra mim. Eu oro pelo meu trabalho. Eu amo ser motoboy."
Mesmo com limitações, ele prefere trabalhar da forma mais raiz possível. "Tem gente que fala: 'Faz uma capinha pra não tomar chuva'. Eu falo: 'Então não sou motoboy raiz. Motoboy raiz toma sol, toma chuva, parceiro'."
Invisíveis para as plataformas
A coluna entrou em contato com a maior plataforma de entregas do Brasil, o iFood, para entender quantos cadeirantes atuam como entregadores, mas se surpreendeu ao saber que a empresa não consulta seus parceiro sobre o tema.
"Para realizar o cadastro na plataforma, o iFood não solicita informações relacionadas à deficiência. Qualquer pessoa que atenda aos requisitos para conduzir um carro, motocicleta ou bicicleta pode se cadastrar na plataforma. A empresa trabalha continuamente para aprimorar a experiência na plataforma, desenvolvendo soluções que tornem a rotina mais acessível e inclusiva para todas as pessoas."
Na prática, isso significa que entregadores cadeirantes são invisíveis para o sistema. Sem políticas específicas, sem dados, sem suporte técnico ou estrutura adaptada.
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