Paula Gama

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Likes acima da lei: caos no trânsito vira rotina em busca por engajamento

Nos últimos anos, a relação dos brasileiros com o carro tem passado por uma transformação perigosa. Se antes veículos eram símbolos de status, liberdade e até rebeldia, agora são instrumentos para outro tipo de reconhecimento: o engajamento digital.

Cada vez mais, influenciadores do ramo estão ultrapassando os limites da lei para criar conteúdo que viraliza nas redes sociais. De eventos clandestinos a desafios de velocidade, o que importa não é a segurança, mas a quantidade de curtidas.

Infrações que viram entretenimento

O caso mais recente dessa tendência foi o "rolê dos sem topete", um encontro ilegal que reuniu 150 carros em péssimo estado de conservação para percorrer as ruas de São Paulo. Os veículos, muitos sem teto, portas ou até para-brisa, rodavam sem nenhuma segurança e, ainda assim, estampavam na lataria as '@' de seus donos no Instagram. A intenção era clara: viralizar.

A Polícia Militar foi pega de surpresa e conseguiu apreender apenas cinco dos 150 carros. Enquanto isso, os participantes gravavam tudo e zombavam dos agentes nas redes sociais. No fim das contas, quem ganhou mais foram os perfis que cresceram com o escândalo.

Poucos dias antes, outro caso chamou atenção: um influenciador foi flagrado dirigindo um carro-forte pelas ruas da capital paulista. Ele comprou o veículo blindado em um leilão e transformou sua posse em uma série de conteúdos.

Vinícius Carvalho, influenciador que comprou um carro-forte
Vinícius Carvalho, influenciador que comprou um carro-forte Imagem: Reprodução

O problema? Ele não tinha habilitação para dirigir veículos pesados. Só foi barrado pela polícia porque o carro estava com os pneus carecas. Mas, em vez de um prejuízo, o episódio se tornou mais um atrativo para seu perfil.

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E esses são apenas alguns exemplos. Casos de influenciadores dirigindo muito acima da velocidade da via já viraram rotina. Alguns, inclusive, já causaram acidentes. Mas isso não impede que novos criadores surjam com desafios cada vez mais ousados - e irresponsáveis.

Por que isso está acontecendo?

O que motiva essa onda de influenciadores que desafiam leis de trânsito? Existem três fatores principais:

1. O algoritmo premia o absurdo
Quanto mais extremo o conteúdo, mais visualizações ele recebe. Um vídeo de alguém dirigindo corretamente não tem o mesmo apelo de um carro a 250 km/h na rodovia ou de um Uno sem teto andando na Marginal Tietê. As redes sociais não fazem distinção entre conteúdo educativo e irresponsabilidade, desde que gere engajamento.

2. A impunidade ainda reina
O Brasil não permite multar com base em vídeos da internet, exceto quando há crime envolvido. Isso significa que motoristas podem se exibir correndo, ignorando leis e desrespeitando a sinalização sem grandes consequências -- desde que não sejam pegos no ato.

Essa realidade poderia ter mudado em 2022, quando um projeto de lei propôs a punição de motoristas flagrados em vídeos cometendo infrações. O PL 130/2020, apresentado pela ex-deputada Christiane Yared, buscava modificar o Código de Trânsito Brasileiro para permitir que vídeos publicados na internet fossem usados como prova para punir infratores.

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A proposta também previa a suspensão da CNH de quem promovesse esse tipo de conteúdo, além de responsabilizar plataformas como YouTube e Instagram caso não removessem as postagens quando notificadas pela Justiça.

Porém, o projeto foi barrado pelo então presidente Jair Bolsonaro, que vetou a proposta sob o argumento de que a punição às redes sociais poderia ser interpretada como censura prévia.

Com isso, o Brasil continuou sem um mecanismo para punir digitalmente essas infrações - o que, na prática, só impulsionou essa nova geração de criadores que exploram o risco e a ilegalidade para ganhar seguidores.

3. Monetização do caos
Além da fama, muitos criadores de conteúdo lucram com infrações de trânsito. Canais no YouTube conseguem ganhar milhares de reais por mês mostrando rachas e manobras arriscadas. Enquanto houver dinheiro envolvido, a tendência é que essas ações continuem.

O que pode ser feito?

A questão que fica é: como combater essa cultura de imprudência digital?

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  • Endurecimento da legislação: o Brasil precisa atualizar suas leis para punir infrações registradas online. Outros países já fazem isso, aplicando multas e até cassando habilitações com base em vídeos.
  • Responsabilização das redes sociais: plataformas como YouTube, Instagram e TikTok devem ser mais rigorosas com conteúdos que incentivam crimes de trânsito. Se ganham dinheiro com esse tipo de material, deveriam também ser responsabilizadas.
  • Mais fiscalização e campanhas de conscientização: o Estado precisa melhorar a fiscalização de eventos clandestinos e reforçar campanhas que mostrem o risco real dessas infrações.

O problema é que, enquanto as mudanças não chegam, o show continua. E o trânsito vira palco para quem acredita que curtidas valem mais que a lei.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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