'Quebrar radar só piora': mortes no trânsito seguem crescendo no Brasil

Ler resumo da notícia
O Brasil assumiu o compromisso de reduzir em 50% as mortes no trânsito até 2030, seguindo a meta global da Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, os dados mais recentes mostram que a realidade vai na direção oposta: os sinistros continuam aumentando e o país enfrenta desafios estruturais e culturais para reverter essa tendência.
O alerta é do secretário Nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, que embarca nesta semana para a Conferência Ministerial Global sobre Segurança no Trânsito, no Marrocos, promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
"Estamos enfrentando esse desafio de reverter a curva de crescimento das mortes no trânsito. Ela não é acentuada, mas está subindo. Temos cinco anos para alcançar essa meta de redução de 50%, mas a realidade é que o Brasil ainda registra aumento", afirma Catão.
Sinistros em alta e desafios estruturais
Os dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF) mostram que as fatalidades nas rodovias federais cresceram nos últimos anos. Os números revelam que as colisões frontais e os atropelamentos são as principais causas de óbitos. Além disso, as pistas simples continuam sendo os trechos mais perigosos para motoristas e passageiros.
Em 2021 foram registrados 5.397 óbitos em rodovias federais, número que subiu para 5.627 em 2023 e chegou a 6.153 em 2024, o maior índice da série histórica recente. O total de pessoas envolvidas em sinistros também aumentou de 161 mil em 2021 para 190 mil em 2024. É importante considerar que de 2021, ano pandêmico, a 2024 também foi registrado aumento de fluxo de veículos no país.
O levantamento ainda revela que as colisões frontais foram responsáveis por 1.986 mortes em 2024, consolidando-se como a principal causa de óbitos nas rodovias federais. Em seguida, aparecem os atropelamentos, que somaram 969 fatalidades no ano passado.
A análise dos tipos de vias confirma que as pistas simples continuam sendo as mais letais, registrando 4.286 óbitos em 2024, comparado com 1.562 em pistas duplas e 305 em pistas múltiplas.
Para enfrentar esse cenário e tentar inverter a curva, o governo federal tem priorizado investimentos em infraestrutura - números mostram que a "apenas" com a duplicação da via milhares de vidas seriam salvas.
"Estamos focados na duplicação de trechos críticos e na construção de contornos urbanos para tirar as rodovias do centro das cidades, onde os índices de mortes são mais altos", explica o secretário.
Além disso, há esforços para melhorar a segurança dos caminhoneiros, com a criação de postos de parada e descanso e a ampliação de áreas de escape. Esse tipo de alteração tem sido priorizado nas novas concessões de rodovias para administração privada.
Apesar dessas medidas, Catão destaca que o maior desafio não está apenas na estrutura das vias, mas na forma como a sociedade encara a segurança no trânsito.
"Temos um problema cultural. O trânsito mata muito, mas as pessoas não percebem isso da mesma forma que enxergam outras tragédias. Se um avião cai, a mobilização é imensa. No trânsito, temos mortes todos os dias, mas há uma banalização desse risco", aponta.
O desafio das cidades

Por mais que a direção nas estradas seja mais perigosa, pois os acidentes são mais graves nesses trechos, são nas cidades onde acontecem o maior número de sinistros. Para se ter uma ideia, em 2024, foram 38.121 acidentes em rodovias federais; 90.505 em estaduais e 424.976 em trechos municipais.
As mortes, por outro lado, têm maior volume nos trechos estaduais, levantando a responsabilidade dos governos locais na melhoria das estradas. No ano passado, 3.103 pessoas morreram em estradas estaduais; 1.756 nas cidades e 637 em trechos federais.
Catão critica a falta de debate sobre segurança viária nas eleições municipais e estaduais. "Você viu segurança no trânsito sendo discutida? Esse assunto não está na pauta dos candidatos. Poucos gestores tratam isso como prioridade, e essa ausência de compromisso reflete nos números", diz.
Para tentar mudar essa realidade, o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), construído pela Senatran, passou por uma revisão em 2023, estabelecendo que estados e municípios precisam definir suas próprias metas de redução. Além disso, o governo está tornando os dados sobre acidentes mais acessíveis, cobrando transparência dos gestores locais.
"Os municípios precisam assumir essa responsabilidade. O problema está na cidade, mas a discussão pública sobre mobilidade ainda prioriza o carro, e não o pedestre ou o ciclista", afirma o secretário.
Radares e fiscalização: um debate politizado
Outro ponto sensível na segurança viária é a fiscalização. Durante o governo Bolsonaro, houve uma drástica redução no número de radares fixos, além da restrição ao uso de dispositivos móveis. Agora, o governo tenta reverter essa política e retomar a fiscalização baseada em critérios técnicos.
"O Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) refez os contratos, e hoje temos radares onde precisam estar, não mais nem menos. Mas a questão é que a fiscalização foi politizada, e isso prejudicou a segurança. Tivemos prefeitos eleitos quebrando radares como se isso fosse positivo. A verdade é que um radar bem posicionado reduz atropelamentos e salva vidas", afirma Catão.
O secretário afirma que a ideia não é arrecadar mais com multas, mas reduzir a velocidade média nas vias. "Nosso foco é a segurança. A gente mudou a abordagem das campanhas para falar diretamente sobre a velocidade, que é um fator de risco determinante. Queremos que as pessoas e os gestores discutam esse tema com seriedade."
Redução até 2030: compromisso ou utopia?
A meta de reduzir pela metade as mortes no trânsito até 2030 ainda parece distante, e os números mostram que o Brasil segue na contramão desse objetivo. Enquanto em países desenvolvidos a segurança viária é tratada como prioridade, aqui o trânsito continua sendo visto como um problema secundário, sem planejamento adequado e com medidas importantes, mas insuficientes.
Nos países que conseguiram reduzir drasticamente as fatalidades no trânsito, o conceito de "perdoar o erro humano" foi levado a sério. Isso significa criar um sistema viário que minimize as consequências de falhas inevitáveis, seja por meio de ruas mais seguras para pedestres e ciclistas, rodovias bem projetadas para evitar colisões frontais ou veículos equipados com tecnologia avançada para evitar acidentes.
Lá, as regras são rigorosas e respeitadas porque há fiscalização eficiente, mas também porque há alternativas seguras e acessíveis para quem não quer - ou não pode - depender de um carro ou motocicleta.
No Brasil, o cenário é o oposto. Estradas mal sinalizadas, transporte público ineficiente e fiscalização enfraquecida fazem com que o erro humano tenha um custo alto, quase sempre pago com vidas. Apesar de a nossa legislação ser exemplar quanto à segurança exigida de carros novos, a maioria só tem recursos para veículos antigos, sem equipamentos mínimos, como airbags.
Muitos motoristas assumem riscos porque não têm escolha: motocicletas são a única alternativa viável para milhões de brasileiros que precisam se deslocar rapidamente, enquanto longas jornadas de trabalho obrigam caminhoneiros a dirigirem exaustos, sem infraestrutura adequada para descanso. Nas cidades, a prioridade ainda é do carro, e não do pedestre, o que agrava a desigualdade na mobilidade e eleva os índices de atropelamentos.
Reduzir as mortes no trânsito não será possível apenas com fiscalização ou campanhas educativas. É preciso encarar o problema com a seriedade que ele exige, investindo em infraestrutura, transporte público eficiente e políticas que protejam os mais vulneráveis.
Sem isso, a meta de 2030, 2040 ou 2100 será apenas mais uma promessa distante, enquanto milhares de vidas continuam sendo perdidas ano após ano.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.