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Mora nos Clássicos

Herói nacional, Interlagos é escasso, delicado e valorizado até lá fora

Colunista do UOL

05/12/2020 07h00

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(SÃO PAULO) - Numa certa manhã de 1982, em Sumaré, no interior de São Paulo, a única missão do estudante Sergio Campos era tocar algumas campainhas e convidar os moradores a responderem a uma pesquisa de mercado. Nem imaginava que no fim do dia voltaria para casa dirigindo um Willys Interlagos, o carro de seus sonhos.

"Havia um Gordini na garagem de uma das casas que abordei. O dono me atendeu e começamos a conversar sobre o carro. Até que ele me levou para os fundos da casa e me mostrou um Interlagos abandonado, mas bem conservado. Depois de uma rápida revisão no mecânico da cidade, fechei negócio por um valor simbólico, que seria uns R$ 1.000 hoje. Na época, a Rodovia Anhanguera ainda era nova, e só estávamos eu e o Interlagos na estrada, voltando para casa", relembra Campos.

Entusiasta de esportivos nacionais, o galerista e escritor revela o que o esportivo da Willys-Overland tem de especial: "primeiro o design, que para mim é espetacular. Em segundo lugar seu histórico ligado às corridas, justamente nos anos dourados das competições de rua no Brasil".

Willys Interlagos Anhembi f - Divulgação  - Divulgação
Imagem: Divulgação

No começo dos anos 1960 surgiram corridas dominadas por marcas nacionais. Primeiro veio a Vemag, com seu DKW. Na sequência, FNM (correndo de 2000 JK), Simca (de Chambord) e em abril de 1962 a Equipe Willys, que estreou nos Mil Quilômetros de Brasília com um terceiro lugar de Christian Heins e Aguinaldo de Góes Filho pilotando um Interlagos.

Bino, como também era chamado Heins, além de ser um piloto jovem e promissor, comandava a Equipe Willys, que nada menos foi do que a catapulta de pilotos como José Carlos Pace, Emerson Fittipaldi, Wilson Fittipaldi e Bird Clemente, entre outros. Daí certa aura de herói ao redor do pequeno esportivo derivado do francês Alpine A108.

Alpine A108 - Divulgação  - Divulgação
Alpine A108
Imagem: Divulgação

Depois daquele modelo verde-água, Campos teve mais nove. "É uma delícia de dirigir e arranca sorrisos por onde passa. Tive um conversível que com ele viajei três vezes para o encontro de Águas de Lindóia", relembra.

E o nono está à venda. "Tenho o carro há quase vinte anos, e agora é hora de deixar fluir, curtir outros antigos, criar novos laços. Quero que o novo dono curta tanto ou mais do que eu, quero passar adiante, para as novas gerações, a alegria que tive com o Interlagos", explica.

Nota-se que é preciso certa sensibilidade para ter um Willys Interlagos.

Valorizado internacionalmente

Interessados no exemplar de Sergio Campos devem desembolsar R$ 170 mil pelo modelo, um Berlineta 1966 branco com interior vermelho.

Willys Sergio Campos VE - O Acervo - O Acervo
Willys Interlagos de Sergio Campos está à venda por R$ 170 mil
Imagem: O Acervo

"Considerando sua relevância histórica aqui, como primeiro esportivo nacional, e lá fora, com as conquistas dos Alpines nos ralis, além do estado de conservação e sua baixa produção, de apenas 822 unidades, é um valor adequado", avalia Henrique Mendonça, d'O Acervo, responsável pela comercialização do veículo.

"E a tendência é convergir com a cotação internacional, hoje em 40 mil (R$ 250 mil)", avisa Mendonça. Corrobora sua análise o valor que Jorge Lakatos recebeu para despachar um dos seus Interlagos para a Europa.

"No fim do ano passado, vendi meu Berlineta, que estava muito bom, por 30 mil (R$ 190 mil) para um revendedor na França, que ainda deve ter tido um bom lucro. Mas os preços variam muito de acordo com a qualidade da restauração, além do fato de haver poucos carros à venda, porém ainda menos compradores", explica o colecionador, que teve seu primeiro Interlagos nos anos 1960 e hoje, aos 74, é um dos principais entusiastas do modelo.

Willys Lakatos - Jorge Lakatos / Arquivo pessoal  - Jorge Lakatos / Arquivo pessoal
O exemplar azul, em primeiro plano, foi vendido para a Europa
Imagem: Jorge Lakatos / Arquivo pessoal

"Encontra-se alguns exemplares por cerca de R$ 20 mil, mas daí gasta-se muito mais do que o valor do carro para restaurar", alerta.

Restaurar é desafio, mas também terapia

Como todo carro de personalidade, tem suas peculiaridades.

"O Interlagos tem probleminhas crônicos, como superaquecimento. Mas, aquele primeiro que tive, nunca ferveu. O controle de qualidade da época não era tão rigoroso como são os de hoje, e por isso é difícil saber o que diferenciava um exemplar de outro, porque um fervia e o outro, não. Mesmo assim, entre os países que produziram os Alpine A108 e A110 sob licença, como Bulgária, México e Espanha, o mais bem resolvido, mais caprichado, era o modelo fabricado pela Willys no Brasil", explica Sergio Campos.

É preciso levar em conta também as exíguas dimensões do esportivo, sobretudo seu 1,16 metro de altura. "Já fui abalroado por um caminhão porque o motorista não me viu. Tem gente que não consegue entrar no carro, ou sente alguma fobia na cabine, que é apertada", adverte.

É o caso de Jorge Lakatos. "Um dos motivos por que vendi foram as pancadas da minha perna no painel, que me deixaram uma marca. Já dei até curso de como entrar e sair de um Interlagos".

Para restaurar também há desafios. "O primeiro é encontrar um carro razoável para restaurar e com documentos em dia, o que hoje está difícil. Em compensação, temos um grupo de 'Interlagueiros' com mais de 100 membros, que estão neste momento restaurando mais de 50 carros. É uma rica fonte de informações e dicas", revela Lakatos.

Paulo Mostardeiro já teve 26 exemplares, dos quais 20 demandaram algum nível de restauro. "Depois do meu primeiro, comecei a ficar conhecido pelas minhas restaurações. Hoje, a maior dificuldade é encontrar mão de obra qualificada. Temos poucos profissionais no Brasil aptos a atenderem certas demandas", lamenta o colecionador e restaurador de Brasília.

Outro problema é a falta de peças. Para Mostardeiro, é mais fácil colecionar e restaurar um carro americano, pois há peças disponíveis para montar tudo como se fosse zero-quilômetro. No caso do Interlagos, na maioria das vezes, é preciso mandar manufaturar certas peças. E aí o valor gasto pode variar.

"Tudo depende do estado original do carro. Se pegar um no esqueleto, tiver que mandar fazer chassis, ir buscar peças na Argentina ou na França, aí fica bem mais caro. Já cheguei a gastar em um exemplar ruim, no 'osso', R$ 60 mil", conta o colecionador e restaurador.

No que se refere ao acabamento interno, o mais difícil são peças como volante, suportes do quebra-sol, velocímetro e conta-giros, além dos bancos.

"A saída é reproduzir esses detalhes seguindo o padrão original. Já a parte mecânica é mais fácil, porque muita coisa pode ser aproveitada do Gordini", dá a dica Octávio Gomes, outro apaixonado pelo modelo, que conclui: "hoje, com a valorização do Interlagos, tem muita gente reproduzindo essas peças de maior dificuldade, como rodas e calotas", o que facilita o processo.

Terapia

Proprietário de um Berlineta 1964 há 20 anos, César Augusto Micheloni levou 12 anos para refazer seu carro. "Eu mesmo corri atrás de informações e peças. Dentista de profissão, nunca havia restaurado um carro, e para isso até curso para mexer em fibra eu fiz", explica o entusiasta.

Willys César 2 - César Micheloni / Arquivo pessoal   - César Micheloni / Arquivo pessoal
O Willys antes da restauração...
Imagem: César Micheloni / Arquivo pessoal

Ele conta que foi um prazer, e não um martírio reformar um Interlagos por tanto tempo. "Além das amizades que fiz, um fato marcante para mim foi que logo após comprar o carro fui diagnosticado com linfoma. E em meio a depressão, tratamentos e exames, escapava para ver o carro, mexer em algo, e assim esquecia que estava doente", relembra Micheloni, hoje curado.

Willys César  - César Micheloni / Arquivo pessoal  - César Micheloni / Arquivo pessoal
...e depois
Imagem: César Micheloni / Arquivo pessoal

Mas, se restaurar um Interlagos é tão desafiador, demorado e caro, o que há nele de especial?

"Cheguei a ir até a França, numa feira de carros antigos em Avignon, para comprar alguns itens que faltavam. Foi quando minha esposa começou a gostar do Interlagos, vendo tanta gente reunida em volta de modelos clássicos. Após 3 anos e 3 meses o carro ficou pronto, e durante o processo de restauração fui conhecendo pessoas formidáveis e acabei fazendo novas amizades após os 60 anos", explica o engenheiro mecânico Oswaldo Porto.

Willys Oswaldo  - Oswaldo Porto / arquivo pessoal  - Oswaldo Porto / arquivo pessoal
O Willys de Oswaldo Porto levou três anos para ficar pronto
Imagem: Oswaldo Porto / arquivo pessoal

Octávio Gomes é sucinto: "é uma paixão, e paixão não pede explicação".