Topo

Mora nos Clássicos

Fiat Marea é o carro mais zoado na internet. Mas fama de "bomba" é justa?

Colunista do UOL

08/07/2020 00h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

(SÃO PAULO) - Não há carro mais achincalhado na internet atualmente do que o Marea. Por grupos de Whatsapp chegam os factoides mais absurdos sobre o sedã médio que a Fiat vendeu por aqui durante nove anos. Quase todos relacionados a uma suposta fragilidade dos motores mais potentes, de cinco cilindros, batizados de Fivetech.

Um dos memes estampa a capa da edição de Quatro Rodas em que o Fiat confronta Honda Civic e Chevrolet Vectra, com o seguinte veredito: "Três carrões. Mas o Marea é a melhor escolha". O desconhecido autor da brincadeira retruca logo abaixo: "e assim começaram as fake news".

Outro meme apresenta um homem contando que vendeu seu Marea há um ano e, com o dinheiro economizado nas manutenções, pôde comprar um Lamborghini Gallardo Spyder. Há também a zoeira com uma imagem de satélite onde se vê, de longe, um foco de fumaça. Aparentemente um incêndio. Conforme a imagem se aproxima, chega-se a um Marea pegando fogo.

Nem da covid-19 ele escapa:

MArea Covid  - Reprodução/internet - Reprodução/internet
Imagem: Reprodução/internet

Lançado em maio de 1998 para substituir o Tempra no Brasil (dois anos depois da Europa), o Marea foi um dos carros mais avançados de seu tempo. Teto solar elétrico, comandos de som no volante e faróis com tecnologia elíptica eram ineditismos para um Fiat nacional. Nas configurações de topo de gama, HLX, havia airbags laterais.

Marea 1998 - Divulgação  - Divulgação
Imagem: Divulgação

Hoje o principal alvo dos deboches, o motor 2.0 de cinco cilindros em linha, 20 válvulas com comando variável e 142 cv já foi o mais sofisticado instalado em um modelo nacional. Em agosto de 2000, o aumento da cilindrada de 1.998 cm3 para 2.446 cm3 elevou a potência para 160 cv e resolveu a timidez e o atraso do torque: de 18,1 kgfm saltou para 21,3 kgfm, enquanto o pico desceu das 5.000 rotações para 3.500, sendo 95% dele já escancarado a 1.500 rpm.

Marea vinho  - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Empolgada com o prestígio da dupla Tempra Turbo e Tempra Stile, a Fiat não titubeou com o Marea e lhe deu uma versão sobrealimentada pouco depois do lançamento, ao fim de 1998. Quando imaginaríamos ter um sedã médio nacional dotado de motor 2.0 turbo, cinco-cilindros, de 182 cv e 27 kgfm de torque, veloz o bastante para resvalar nos 230 km/h de velocidade máxima?

Marea reest frente - Divulgação - Divulgação
Marea Turbo 2002
Imagem: Divulgação

E quem torcia o nariz para a traseira do sedã enxergava na perua Weekend um estilo mais harmonioso e instigante. Tanto Marea Turbo quanto Marea Weekend Turbo são ainda dois raros exemplos no mercado brasileiro de esportivos natos e automóveis familiares ao mesmo tempo.

Marea Weekend traseira  - Divulgação - Divulgação
Marea Weekend
Imagem: Divulgação

Custava muito dinheiro, é claro. No caso das versões mais potentes os preços chegavam a R$ 40 mil, equivalentes a R$ 210 mil atualmente. Em 2001, uma reestilização trouxe discretas mudanças na dianteira e novas lanternas - inspiradas nas do Lancia Lybra - para o sedã. A aposentadoria veio em 2007. No ano seguinte a Fiat lançou o Linea, sem o charme do antecessor.

Marea int manual - Divulgação - Divulgação
Interior do Marea era espaçoso e luxuoso
Imagem: Divulgação

Carro-bomba

Mas a fama de carro problemático, frágil e incendiário procede?

Na visão de José Acácio Ramos é uma "injustiça". Ele foi analista de desenvolvimento do Marea a partir da linha 2001, e acredita que a fama vem de pessoas que nunca tiveram o carro e se baseiam apenas na opinião dos proprietários que não cuidavam corretamente do modelo.

"O Marea foi um carro lançado com muita tecnologia que, até então, era novidade para muitos. A manutenção acabava ficando cara nas concessionárias, o que fazia com que os clientes procurassem oficinas alternativas. Acontece que muitos mecânicos nem sabiam como dar a correta manutenção por falta de ferramentas especificas ou por desconhecimento técnico. Para não deixarem os clientes esperando muito, eles tentavam consertar de qualquer maneira, não fazendo a manutenção adequada", justifica Acácio.

Marea int autom - Divulgação - Divulgação
Câmbio automático, de quatro marchas, surgiu em 2001
Imagem: Divulgação

Importadas, as peças do motor eram caras e muitas vezes demoravam a chegar à rede de concessionárias. E também não contribuía a recomendação da própria Fiat para a troca de óleo a cada 20 mil quilômetros, o que se descobriu depois ser um intervalo longo.

"Acho que essa troca era muito alta. No Marea Turbo, então, era ainda mais crítico, pois era um carro que instigava a pisar fundo, o que aquecia demais o vão do motor e consequentemente o óleo", reconhece Acácio, que também questiona se todo proprietário seguia a recomendação de trocar o filtro de óleo e o de ar a cada troca de óleo - que aliás deveria ser semissintético, o que muitos ignoravam.

Versões com motores 1.6 16V e 1.8 16V tinham mecânica mais simples, e por isso são praticamente invisíveis para o bullying digital.

Marea reest tras  - Divulgação - Divulgação
Reestilização, em 2001, se inspirou na traseira do Lancia Lybra
Imagem: Divulgação

Ainda de acordo com o ex-funcionário da marca, as concessionárias estavam preparadas para o Marea, mas talvez não o bastante.

"Era um carro topo de linha que necessitava de mais atenção não só pela sua complexidade, como também pela sua importância para a Fiat, que precisava se consolidar em um segmento muito exigente e competitivo, com características bem distintas. Talvez, se fosse feito algo em relação à manutenção, ao tempo de chegada das peças, se a mão de obra fosse mais barata nas concessionárias ou houvesse mais peças nacionalizadas, sua reputação seria melhor", conclui.

Para Acácio, no entanto, esses fatores não têm relação com o tempo de vida do Marea, que poderia ter durado um pouco, mas não muito mais no mercado brasileiro.

Marea painel - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Gambiarras e afins

Proprietário da oficina multimarcas Motorfast, em São Paulo, Bruno Tinoco se alinha ao entendimento de Acácio sobre o destino inglório do Marea.

"Foi uma revolução não apenas para a Fiat, mas para o mercado nacional. Porém, sua manutenção era um pouco mais complicada. Ele tem um motor muito grande para o cofre. Na hora de trocar a correia dentada, por exemplo, era preciso tirar o motor dali, pela dificuldade de espaço e acesso. Hoje já sabemos trocá-la sem descer o motor, mas havia esse complicador no começo", relembra Tinoco.

"Outro ponto é que o mercado de reposição está dominado por peças chinesas. Daí o cara compra um Marea, que hoje é barato, e quer colocar peças igualmente baratas, achando que vai ficar bom. Não é bem assim. Se não for colocar peças de primeira linha, melhor nem comprar o carro. Um engenheiro planejou aquilo, aí vem o proprietário com gambiarras e adaptações. E quem leva a fama é o carro", analisa.

E concorda com ambos Alexandre Dias Generoso, da oficina High Torque, localizada em Vinhedo (SP). "O Marea é bomba? Sim, tão bomba quanto outros carros da época são hoje. Só que com um agravante: ele tinha muita tecnologia para a época. Para você ter uma ideia, no lançamento do 2.4, em 2001, ele já tinha cilindros com bobinas individuais, acelerador eletrônico, variador de fase do comando de admissão, coletor de admissão modular...Estava muito além do seu tempo", relembra "ADG", como também é conhecido.

"Era falado que as trocas de óleo deveriam ser a cada 20 mil quilômetros, como se estivéssemos na Europa. Aqui não funciona assim. Não tínhamos nem os óleos com a tecnologia que se tem hoje", completa Generoso.

Vai encarar?

Mas, afinal, é possível para ter um Marea hoje em dia? "Assim que comprasse um, trocaria imediatamente todas as correias, mangueiras, sensores, o radiador e a bomba d'água termostática. Porque o sistema de arrefecimento é outro ponto delicado. Tem que estar funcionando perfeitamente", avalia Tinoco.

Só não faça a mesma pergunta para Generoso. "Não indicaria de jeito nenhum, pois não há peças de reposição. Mas isso vale para qualquer carro que já passou dos 15 anos, porque a partir daí começam os problemas de abastecimento de peças, e há um grande risco de o veículo ficar encostado na garagem", avisa. Casa de ferreiro, espeto de pau: o empresário já teve um Turbo e ainda mantém um modelo 2.4.

Para ele, o vanguardismo também foi algoz do Marea: "quem comprou no início extraiu dele todo seu potencial. Era um carro excelente, mas não para o Brasil. A complexidade do motor exige mão de obra técnica, ferramental correto, gabaritos".

Há somente uma exceção: "encare se for como carro de coleção".