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Kelly Fernandes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Confiança e medo: os sentimentos de uma ciclista nas ruas das cidades

Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal

Colunista do UOL

01/04/2022 04h00

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Confiança e medo na cidade é o título de um livro do Zygmunt Bauman, mais um dos que me fisgou logo na capa. Talvez porque acredito que o medo e a confiança são a chave para entender a nossa relação com o mundo, o que inclui as cidades. Pois esses sentimentos afetam e limitam nossa interação com os ambientes urbanos, podendo torná-los mais ou menos convidativos.

A lembrança do título do livro do filósofo polonês não ocorreu por acaso, apesar dele estar na prateleira logo acima da minha cabeça enquanto escrevo este texto, mas porque medo e confiança são os sentimentos mais presentes em minha vida nas últimas semanas — precisamente a oscilação entre os dois. Tudo isso por conta da mudança para uma cidade nova e inédita para mim.

Mudar de cidade é algo curioso. Muitas vezes, os desafios se sobrepõem ao prazer das novas experiências. O medo foi o primeiro sentimento que experimentei, presente nas ciclovias escuras, nas ruas vazias, infinitas áreas gramadas, as passagens por baixo da via e o silêncio interminável.

Todos esses desafios interferiram na minha relação com a nova, intrigante e misteriosa cidade. Nos primeiros dias, só me atrevia a dar a volta no quarteirão e andar até as quadras vizinhas, sempre reclamando da ausência de calçadas, faixa de pedestres, iluminação e do número excessivo de carros.

Em um dia limite, desci as escadas com a bicicleta nos ombros e pedalei por uma ciclovia próxima, ao subir a rampa de acesso à ciclovia depois de atravessar uma via movimentada, senti uma sensação imediata de alívio. Ufa, estou segura! Isso apesar dos inúmeros problemas no caminho, rampas ausentes, buracos e falta de sinalização nas travessias.

O que não impediu o aumento da sensação de confiança e diminuição proporcional do medo, até me sentir traída por trechos descontínuos. Perante a sensação de, com mais algumas pedaladas, estar sendo levada para uma situação de risco materializada logo a frente em uma rodovia cuja velocidade é 80 quilômetros por hora, onde não há faixas de travessia e não existe nenhuma referência de caminho seguro para prosseguir, restando como alternativa arriscar-se ou voltar, sendo que o voltar significa não conhecer um dos parques mais bonitos da cidade cujas copas das árvores já saltam ao olhos.

Tão longe e tão perto, no meio do caminho entre mim e meu destino está o medo. Na hora da escolha, vem na cabeça a imagem das duas bicicletas brancas deixadas ao longo do caminho para manter viva a memória de quem perdeu a vida no trânsito, assim como pequenos santuários que lembram "casinhas", em muitas rodovias brasileiras, também materializam a dor e a lembrança de quem perdeu alguém para o trânsito.

A opção foi continuar e competir com o tráfego intenso de veículos. Enquanto isso, imaginei que parte das pessoas no volante estaria se perguntando: o que ela está fazendo no meio da rua? Depois morre e não sabe o porquê. Pois é: eu só queria ir ao parque.

Depois desse dia, voltei muitas vezes a esse lugar que se tornou o meu preferido na cidade. Para a perfeição, só falta que o parque seja integrado à cidade, algo tão simples e tão pouco frequente quando se fala de equipamentos públicos como esse ou, praças, centros esportivos, hospitais etc.

Porém, acostumada com essa carência de acessibilidade, naquele momento em que eu buscava um caminho menos arriscado ou uma rota mais rápida, tentei identificar alguma pista, como um trecho desgastado na grama causado pela recorrência de passagem de pés e pneus, ou em guias quebradas no tamanho de um pneu de bicicleta formando pequenas rampas artesanais de cimento em pontos estratégicos. São pequenos detalhes que te fazem fugir de situações de risco, mas que também revelam a falta de atenção do poder público com a vida e a segurança da população.

Sempre me sinto tomada por uma sensação de frustração profunda quando me entrego para uma experiência urbana e ela me trai, mas uma esperança me toma quando vejo os sinais de resistência contra a cidade construída para o carro.

Para algumas pessoas, o medo pode ser algo passageiro. Para outras, pode ser uma barreira intransponível que as mantêm durante toda uma vida presas em uma lata hermética de uma tonelada, movida a quatro rodas ou trancada dentro de casa.

Se existe o medo e as alternativas para contorná-lo, no outro extremo está a confiança, que pode ser traduzida como àquela sensação que sentimos quando o trem para na plataforma exatamente no horário previsto, quando as bicicletas indicadas no aplicativo de compartilhamento estão lá esperando ou quando estamos em um calçadão que oferece acessibilidade, sombra e um lugar para tomar um sorvete.

A confiança é libertadora, na medida que sua presença sempre vem acompanhada da redução do estresse, ansiedade, risco etc, que também se traduz na possibilidade de pedalar até o parque em segurança. Planejar e projetar cidades deveria ser um processo norteado pela necessidade de gerar confiança em quem vive nelas, a ponto de que o medo seja banido da experiência urbana.