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Kelly Fernandes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Racismo contra negros na Guerra da Ucrânia também ocorre em nosso quintal

Refugiados chegam da Ucrânia a bordo de trem, incluindo africanos que residiam no país europeu; muitos relataram racismo - Attila Kisbenedek/AFP
Refugiados chegam da Ucrânia a bordo de trem, incluindo africanos que residiam no país europeu; muitos relataram racismo Imagem: Attila Kisbenedek/AFP

Colunista do UOL

11/03/2022 04h00

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"Eu não sou uma mulher?" foi o título dado ao discurso de Sojourner Truth, realizado em 1.851 durante a Women's Rights Convention (Convenção de Direito das Mulheres) em Akron, Ohio, Estados Unidos.

O discurso da abolicionista estadunidense e ativista dos direitos afro-americanos ocorreu em reação às falas que procuravam evidenciar a fragilidade e desqualificar o papel da mulher na sociedade, bem como os limites do feminismo branco.

Ao fazer isso, ela traz à tona questões quanto aos direitos das mulheres negras, para quais foi negada a maternidade e a feminilidade. Truth também chama atenção para o fato de que a existência das mulheres negras era resumida à sua força de trabalho e à condição de mercadoria que pode ser vendida e comprada a qualquer momento.

Na última semana, reli o discurso de Sojourner após me deparar com notícias dramáticas sobre o tratamento diferenciado imposto às pessoas negras durante o processo de evacuação de cidades ucranianas vítimas da guerra. Durante a fuga para salvar suas vidas neste momento, quando permanecer significa perdê-las, pessoas negras (pretas e pardas) de diferentes países tiveram o acesso adiado — ou mesmo negado —, aos ônibus e trens utilizados como meio para atravessar as fronteiras com outros países.

"Nas estações de trem de Kiev, crianças primeiro, mulheres em segundo lugar, homens brancos em terceiro, depois o restante das vagas é ocupado por africanos. Esperamos muitas horas pelos trens e não conseguimos entrar devido a isso.", tuitou Alexander Somto (Nze) Orah, no dia 25 de fevereiro. Em trecho da matéria "Imigrantes negros na Ucrânia dizem ser alvo de racismo e barrados em trens ao tentar fugir", publicada no dia 28 de fevereiro na "Folha de S.Paulo", Rtn Chimaobi expõe vídeo em que uma mulher africana tenta proteger seu filho de 2 meses de um frio de 3ºC, pois sua passagem pela fronteira foi negada. Porém, o mesmo não ocorreu com mulheres brancas.

A desigualdade de acesso segundo raça e gênero também ocorre no nosso quintal. No Brasil, historicamente, as restrições de acesso impostas às pessoas negras, impedidas de acessar coisas tão básicas como a terra e salários equânimes, criou um espécie de segregação à brasileira.

Por segregação "podemos entender ações que são promovidas com o objetivo de separar pessoas que são identificadas como de determinado grupo de uma mesma sociedade com base em critérios étnicos ou raciais, na medida em que a distância física é equivalente à distância social", segundo trecho retirado do capítulo que escrevi para o livro Mobilidade Antirracista, publicado em 2021 pela editora Autonomia Literária, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.

Sabendo disso, basta olhar para o território para perceber como a segregação racial impõem distâncias sociais que são sistematicamente reforçadas, por exemplo, pelo número de horas que mulheres, sobretudo as negras, dedicam às atividades de cuidado; ou pela desigualdade salarial entre pessoas brancas e negras, sendo que, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua realizada pelo IBGE em 2019, as mulheres negras são as que possuem menor renda habitual em comparação aos homens negros, às mulheres brancas e aos homens brancos.

Essas condições impactam diretamente em seus padrões de mobilidade e possibilidade de acesso ao sistema público de transporte coletivo, cujos custos e distâncias crescentes aumentam o tamanho da barreira entre o local de residência e os locais de serviços públicos e de opções de lazer e recreação.

Para a semana do dia Internacional da Mulher, na qual discutimos — ou deveríamos discutir — os direitos da mulher e seu papel na sociedade, deixo como reflexão e contribuição a necessidade de promover discussões e políticas públicas interseccionais, que consigam colocar sobre a mesa questões relacionadas com sexismo, racismo, classismo, homofobia, transfobia e capacidade social. Se assim não fizermos, continuaremos negligenciando o sistema de privilégios e opressões que recaem principalmente sobre as mulheres negras e indígenas, afetando suas possibilidades de mobilidade e acesso ao transporte, suas vidas na cidade e até mesmo as situações de fronteira entre a vida e a morte.