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Kelly Fernandes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que drive-thru gera desigualdade social e racial no acesso à vacina

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

16/04/2021 04h00

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Semana passada uma notícia me chamou atenção: "Idoso vai de retroescavadeira tomar vacina contra covid: 'A pé não podia' ". Na imagem que acompanha o texto, que acabou virando meme nas redes sociais, vemos um idoso em um veículo pouco usual, aparentando dificuldade para compreender as instruções dadas pela profissional de saúde. O quanto essa cena diz sobre como os "drive-thrus da vacinação" podem ser excludentes?

Para começar a responder a pergunta, é importante evidenciar que, no Brasil, "70% dos domicílios formados por somente negros não possuem automóveis, enquanto esta é a situação de 38% dos domicílios formados por somente brancos".

Os dados segundo trecho retirado da pesquisa "Posse de veículos por raça no Brasil", realizada pela Multiplicidade Mobilidade Urbana com base em dados do IBGE (2017-2018), são um ótimo ponto de partida para discutir os efeitos da adoção do modelo de drive-thru que, a julgar pelo contexto de acesso aos automóveis no país, por si só já é excludente.

Com a intenção de compreender mais sobre os impactos negativos dos drive-thrus de vacinação para o já vacilante Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19, decidi recorrer a um amigo que admiro muito, Matheus Z. Falcão, pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP (Cepedisa/USP).

Enquanto conversávamos sobre o fato de um idoso precisar usar sua retroescavadeira para ter acesso à vacina, Matheus explicou: "A partir do momento que a pessoa precisa adaptar-se ao sistema de saúde, e não o contrário, isso significa que a política de saúde falhou ou é incompleta".

E então passamos a debater quais condições são necessárias para a realização do direito à saúde e chegamos à conclusão de que a garantia de acesso só é possível por meio da participação comunitária, prevista na Constituição Federal, especificamente no inciso III do artigo 198, como destacou Matheus.

Sabendo que as dificuldades do dia a dia da população só aparecem através da troca entre civis e o poder público, só é possível desenhar planos e programas abrangentes e inclusivos por meio do diálogo e do olhar atento ao território.

Os conflitos entre os drive-thrus da vacina e a realidade da população não apareceram só em Assis (SP), cidade na qual o idoso José Almeida e sua retroescavadeira agora são ainda mais conhecidos.

Exemplo disso é a denúncia feita na conta do Instagram @diariodeceilandia sobre a impossibilidade de pessoas idosas de 66 anos ou mais, sem carro próprio e/ou moradoras das periferias do DF, serem vacinadas por estarem fora do alcance dos drive-thrus instalados em regiões onde residem pessoas de classe alta, como Lago Norte, Águas Claras e Brasília.

Sabendo que carros são bens de alto custo de aquisição e manutenção, viáveis apenas para uma parcela restrita da população, o ganho de escala e o aumento da acessibilidade à vacina por meio de soluções de acesso exclusivo para pessoas em automóveis coloca em risco um importante princípio do Sistema Único de Saúde (SUS): a equidade que, trocando em miúdos, trata de garantir para toda e qualquer pessoa, independentemente de raça/cor, sexualidade, gênero e renda, acesso igualitário ao sistema.

Dados sistematizados pela Agência Pública mostram que 3,2 milhões das pessoas vacinadas são brancas, ante 1,7 milhão de negras, resultado que em parte expressa as diferenças e dificuldades de acesso aos locais de vacinação segundo raça/cor. Em paralelo, pretos e pardos são o grupo de pessoas que mais são contaminadas e morrem em decorrência da Covid-19.

Contribuições realizadas por integrantes do GT Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), frente aos dados levantados pela agência, apontam como uma das possíveis causas da diferença de acesso à vacina a ausência de acessibilidade aos pontos de vacinação, chamando a atenção para a situação de pessoas moradoras de zonas rurais, periferias ou áreas isoladas.

Por fim, é preciso olhar para os dados e situações mencionadas aqui e também para outros casos que aparecem em jornais, redes sociais, nas ruas e nas filas de vacinação à procura de elementos para aprimorar e rever as estratégias locais de aplicação da vacina.

Precisamos estar vigilantes ao fato de que, quando o Plano Nacional Operacionalização da Vacinação dá as costas para uma parcela expressiva da população, as situações de desigualdade aprofundam-se e a fila da vacina anda mais rápido para algumas pessoas e mais devagar para outras. Afinal, é aceitável deixar de vacinar alguém em um contexto tão emergencial por estar a pé ou de bicicleta?