Foliões de bloco tradicional de MG voltam a usar blackface em 'fantasias'

O bloco 'Domésticas de Luxo', tradicional em Juiz de Fora, na Zona da Mata de Minas Gerais, voltou a utilizar blackface em suas fantasias após 6 anos. A prática é historicamente utilizada para retratar estereótipos racistas de pessoas negras.

O que aconteceu

O desfile do bloco ocorreu no último sábado (22). O cortejo é um dos mais tradicionais da cidade e do estado, com mais de 60 anos em atividade.

Foto mostra o ex-presidente Itamar Franco interagindo com um folião do 'Domésticas de Luxo'
Foto mostra o ex-presidente Itamar Franco interagindo com um folião do 'Domésticas de Luxo' Imagem: Reprodução/Redes sociais

Os foliões utilizaram roupas que retratam, de forma depreciativa, mulheres negras. As fantasias, usadas desde os primórdios do bloco, contam com malhas pretas por baixo de vestidos coloridos e maquiagem que cobre o rosto todo de preto.

Em 2019, o bloco havia se comprometido a abolir a fantasia racista. Em fevereiro daquele ano, após uma reunião com a Comissão de Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Juiz de Fora e representantes da Funalfa (Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage), os organizadores decidiram abandonar as vestimentas.

No ano anterior, manifestantes fizeram um protesto contra o bloco. Representantes do movimento negro da cidade levaram cartazes ao desfile e apontaram as implicações racistas da caracterização.

O retorno das fantasias aconteceu após uma mudança na diretoria do bloco. A troca ocorreu entre o carnaval de 2024 e o de 2025, e os responsáveis pelo acordo de não utilização dos elementos de blackface saíram da organização.

Modelo de maquiagem adotado pelos foliões do 'Domésticas de Luxo' após 2019
Modelo de maquiagem adotado pelos foliões do 'Domésticas de Luxo' após 2019 Imagem: Reprodução/Redes sociais

Nos últimos anos, a gente vinha adotando a postura de não usar o blackface. Os integrantes faziam questão de sair com a cara pintada, mas estavam saindo com [a maquiagem] metade preta e metade branca, em uma tentativa de não acabar com a tradição do bloco — que eram as caras pintadas —, mas também para não representar o blackface, explicou a antiga organização do bloco ao UOL.

A Prefeitura de Juiz de Fora divulgou uma nota de repúdio. O texto, publicado nas redes sociais da administração municipal na segunda-feira (24), diz que o retorno do blackface em 2025 está em "desacordo com as determinações dos anos anteriores".

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A cidade de Juiz de Fora está vivenciando dias de grande alegria, confraternização e participação popular com a realização do Carnaval. No entanto, infelizmente, em desacordo com as determinações dos anos anteriores, tivemos o lamentável retorno do "blackface" prática racista que já deveria ter sido banida de nossa festa - por um tradicional bloco da cidade. A Prefeitura de Juiz de Fora, a Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa) e a Secretaria Especial da Igualdade Racial (Seir) repudiam veementemente esse ato e, com o compromisso de garantir um ambiente de respeito e inclusão, informam a decisão de que tais práticas não serão mais toleradas na programação oficial do Carnaval. Prefeitura de Juiz de Fora (MG), em nota

A OAB também se manifestou sobre o caso. A entidade esclareceu que, em 2019, "serviu de mediadora entre as partes" na reunião em que o bloco se comprometeu a abandonar as fantasias com blackface. "Não houve homologação porque não era uma demanda judicial", explica Geovane Lopes de Oliveira, presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB de Juiz de Fora.

A entidade pediu uma investigação. "É preciso que haja uma apuração minuciosa para identificar se foram atos isolados atribuíveis a indivíduos ou se foi uma orientação específica do bloco, e isso é atribuição da Polícia e do Ministério Público", afirma Geovane.

Ainda que a caracterização de alguns dos foliões com a abjeta "blackface" não tenha sido orientada, organizada ou estimulada pelo coletivo carnavalesco, é dever dos organizadores coibir e proibir essa prática, monitorando os participantes, identificando aqueles que insistem em ofender a população negra e expulsá-los do cortejo e exigir deles que retirem as caracterizações ofensivas. Geovane Lopes de Oliveira

O UOL entrou em contato com a diretoria atual do bloco, mas não obteve resposta. Se houver retorno, a matéria será atualizada.

O que é blackface?

A prática é utilizada na Europa há muitos anos, e tomou uma nova dimensão nos Estados Unidos do século 19. Na época, atores brancos pintavam a pele com tinta escura para realizar os chamados "minstrel shows" (em português, "espetáculos de menestréis") — espetáculos de comédia baseados na ridicularização de pessoas negras.

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Na época, o racismo já era apontado. Em texto publicado em 1848, o autor abolicionista Frederick Douglass descreveu os espetáculos como "a escória imunda da sociedade branca, que nos roubou a pele que a natureza lhes negou para ganhar dinheiro e agradar aos gostos corruptos de seus colegas brancos".

As apresentações reforçavam estereótipos racistas utilizados para justificar a escravidão. Elas retratavam pessoas negras como preguiçosas, ignorantes, hipersexualizadas e criminosas. No entanto, o público branco assistia aos espetáculos com normalidade e humor.

Os espetáculos eram tão populares que influenciaram outras formas de arte. No século 19, quando a segregação impedia pessoas negras de acessarem os mesmos locais que os brancos, atores brancos utilizavam a mesma caracterização dos minstrel shows para retratar personagens negros.

Os estereótipos também tiveram sua influência na cultura brasileira. A Tia Anastácia, do "Sítio do Picapau Amarelo", é uma reprodução fiel da personagem "Mammy" presente em diversos espetáculos de menestréis. O arquétipo foi utilizado para criar a falsa narrativa de que mulheres negras escravizadas gostavam de realizar serviços domésticos para famílias brancas.

Diversas produções brasileiras também utilizaram o blackface nos últimos anos, sob protestos do movimento negro. Mesmo quando a intenção não é ridicularizar a população negra, a caracterização continua exagerando seus traços e reforçando os estereótipos racistas.

Injúria racial é crime no Brasil. A Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023, equiparou o crime de injúria racial, que consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, ao crime de racismo. A nova lei também prevê que crimes previstos nela "terão as penas aumentadas de 1/3 até a metade quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação."

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* Com informações de reportagem publicada em 14/12/2021.

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