A musa extraordinária

Entre plumas e cristais, a estilista Michelly X completa 10 anos de Carnaval sem pisar na avenida há 20

Renata Nogueira Do UOL, em São Paulo Iwi Onodera/UOL

Um manequim, dois looks, sandálias, acessórios, cabeças... Michelly X enfrenta mais uma segunda-feira chuvosa em São Paulo e protege com o próprio corpo as plumas e cristais das roupas de seu acervo. Há uma década, para ela, janeiro e fevereiro são os meses mais corridos do ano. Quando 2020 mal havia começado, o ateliê da estilista paulistana já estava produzindo vinte figurinos só para o próximo Carnaval.

Embora tenha cruzado a passarela do samba pela última vez há 20 anos, quando desfilou no Rio pela Caprichosos de Pilares, Michelly X é presença garantida em todo Carnaval. Suas criações já vestiram musas como Sabrina Sato, Claudia Raia, Susana Vieira, Deborah Secco, Ivete Sangalo, Anitta e Xuxa.

"Tenho uma equipe com cinco pessoas fixas, mas no Carnaval chego a contar com 12. Mais que isso não dá porque vira um caos, é um 'Big Brother' dentro do ateliê", conta a estilista, que busca atender todas as pessoas que a procuram, mas prefere manter seu trabalho de forma artesanal. A costura é feita por suas próprias mãos e só mais uma pessoa. O restante da equipe ajuda a bordar e a forrar as peças.

As roupas que fazem as musas literalmente brilharem na avenida carregam a história da estilista fã de Xuxa que começou na profissão por brincadeira, no final dos anos 1980. E ela se orgulha de sua trajetória, especialmente por ter vencido a barreira do preconceito como mulher transexual. "Antes, eu tinha medo de ter a imagem de mulher 24 horas por dia e aquilo fechar portas. Hoje vejo que tive sorte."

Iwi Onodera/UOL
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Do Gala Gay à Globo

Foi Monique Evans que levou Michelly X para o Carnaval. A estilista era responsável pelos looks da apresentadora no Baile Gala Gay, no Rio, até que Monique pediu para que ela costurasse um espartilho para um desfile na Grande Rio.

"O Carlinhos [figurinista da escola de samba] adorou, e eu comecei a fazer também macacões e várias outras peças para ele. Na época [2010], eu sentava na máquina e fazia tudo sozinha, não tinha ninguém para ajudar", relembra.

Quando Carlinhos saiu da escola, dois anos depois, a estilista paulistana assumiu o posto de figurinista convidada pelo presidente da Grande Rio e, de novembro a fevereiro, se mudava para o Rio com a sua equipe. "Comecei a vestir a Susana Vieira, a Cristiane Torloni, a Chris Vianna, a Ana Furtado... Claudia Raia gostou tanto de uma roupa que também fiz para ela desfilar na Beija-Flor."

A partir do trabalho na Grande Rio, novos convites surgiriam. Em 2015, Michelly X assinou as roupas do musical "Raia 30", em comemoração aos 30 anos de carreira de Claudia Raia. Ela também confeccionou as roupas da apresentadora Fernanda Lima durante três temporadas de "Amor & Sexo", na Globo, outro trabalho que a obrigava ficar no Rio de Janeiro. Com medo de avião, enfrentava horas na estrada dentro de um ônibus quando precisava voltar a São Paulo.

Se ela se arrepende da sequência de trabalhos fora de casa? De jeito nenhum. "Foi meu 'boom'. Depois disso veio a Ivete Sangalo, a Xuxa, a Anitta, todo mundo", comemora. Hoje Michelly evita abrir o ateliê às vésperas da folia para que nenhuma roupa vaze antes da hora. A relação com as clientes é baseada na confiança e na energia que troca com cada pessoa que veste uma peça sua. "Elas são muito exigentes e eu, muito paciente. É uma troca que resulta em um trabalho legal", acredita.

Hoje, uma roupa de Michelly X pode custar até R$ 80 mil, dependendo da quantidade de cristais ou plumas, que são os itens mais caros de uma fantasia de Carnaval. Se a cliente não puder gastar muito, a estilista diz que, a partir de R$ 5 mil, "dá para dar um truque" e criar uma fantasia bacana.

Clientes VIP

Eduardo Anizelli/Folhapress

Ivete Sangalo

Michelly X fala com carinho especial sobre Ivete. Além de vestir a cantora no Carnaval de Salvador, ela é uma de suas principais clientes fora da folia. O look usado no Rock in Rio 2019 --homenageando David Bowie-- leva a assinatura dela. Na edição anterior do festival, usou um casaco bordado com o nome do filho Marcelo e revelou a gravidez das gêmeas, também feito pela estilista. A maior gratidão de Michelly a Ivete, porém, é por ela ter sido a ponte entre Michelly e Xuxa, que hoje também é cliente assídua.

Dhavid Normando/Futura Press

Xuxa

Inpiração para o X que Michelly adotou em seu nome, Xuxa também foi a responsável pela descoberta da vocação de Michelly. Ainda adolescente, ela juntou as amigas e criou um grupo de paquitas. Além de ensaiar as meninas, Michelly era a responsável pelos figurinos do conjunto, que foi parar na TV. A criatividade e acababamento das roupas logo chamaria a atenção de artistas e figurinistas, que passaram a encomendar peças. A brincadeira virou trabalho e, 30 anos depois, a fã hoje costura para a apresentadora.

Iwi Onodera/UOL Iwi Onodera/UOL

Clodovil antes do Carnaval

Em 2005, quando Clodovil montou a peça de teatro "Ele e Ela", Michelly X foi chamada para fazer as roupas do balé. "A equipe me procurou porque ele desenhava, mas não costurava", relembra. Ali, nasceria uma amizade que duraria até o fim da vida dele, em 2009.

Mas nem tudo foram flores no início. "Ele tinha um pouco de preconceito porque eu era trans. Ficava armado, não gostava", recorda Michelly X. A estilista diz que isso só mudou quando Clodovil conheceu sua mãe. "Quando ele me conheceu de verdade, ele mudou de opinião e virou meu amigo. Ele frequentava minha casa e via que a minha mãe estava sempre comigo no dia a dia."

Clodovil era apaixonado por essa coisa de mãe. E viu que eu estava com a minha mãe o tempo inteiro. Ele então percebeu que eu era um bom filho, e virou meu amigo. Ele até se vestiu de mulher na última peça dele.

A amizade durou alguns anos. "Depois que ele entrou para a política a gente se falava mais por telefone, mas viramos amigos. Ele era terrível, mas eu sabia lidar com ele. Ele era muito louco, muito engraçado, tinha um jeito forte, mas eu gostava muito dele", recorda.

Iwi Onodera/UOL

Nasce Michelly X

Michelly X escolheu seu alter-ego há décadas e usa este nome desde o início da carreira, embora ainda ainda não tenha feito o registro em seus documentos oficiais. "É muita burocracia", lamenta. "Tenho preguiça de ir atrás porque já é muito cansativa a minha vida", diz ela, que bateu seu recorde no Carnaval de 2014, quando produziu 32 fantasias.

A escolha é bastante simbólica, já que esse seria o nome de uma irmã desejada por ela que nunca nasceu. "Minha mãe perdeu um bebê que se chamaria Michelly. Eu queria que se chamasse assim, pois desde criança eu gostava de um menino que se chamava Michel e inventei para minha mãe que queria esse nome para a minha irmãzinha. Ela acabou perdendo o bebê e eu passei a usar em homenagem."

Casada há 25 anos, a estilista vê o apoio da família como essencial para o sucesso que ela colhe hoje. "Eu tive sorte porque a minha família inteira me apoia. Meus pais, irmãos, tios. Sempre tive apoio da minha família. E isso é o principal para você não ir para outro caminho", conta Michelly.

Tenho várias amigas que não conseguem arrumar emprego e não têm outra opção a não ser ir para a prostituição. Eu tive a sorte de não precisar passar por isso. O amor de família é o que faz você buscar, ir atrás e não desistir.

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