O samba não foge à luta

Viradouro e Portela se destacam em noite de desfiles engajados, mas com inúmeras falhas técnicas

Do UOL, no Rio Rudy Trindade/FramePhoto/Estadão Conteúdo

O Rio de Janeiro deixou para trás o passado e se voltou para o presente. As mazelas sociais da cidade tomaram a Marquês de Sapucaí na primeira noite de desfiles do Grupo Especial, e grande parte das escolas pisou na avenida disposta a discutir temas atuais, com sambas críticos, engajados e carregados de esperança.

Em vez do luxo das monarquias, as favelas ganharam lugar de fala. Mulheres foram protagonistas. Cristo foi retratado como um homem comum, e a intolerância religiosa foi combatida. A devastação da natureza não foi esquecida. A miséria e a violência foram escancaradas, e a mensagem de dias melhores, lançada.

Nos quesitos que definem a grande campeã do Carnaval, no entanto, muitos erros. Viradouro e Portela falharam menos e se destacaram, mas dificilmente a agremiação vitoriosa sairá desta primeira noite de desfiles. Desde 1985, apenas seis vezes a vencedora saiu do domingo. E, a julgar pelo desempenho das sete escolas que passaram pela Sapucaí, a chance de a história mudar é pequena.

Vice-campeã de 2019, a Unidos do Viradouro contou a história das ganhadeiras de Itapuã e mostrou a riqueza da cultura negra baiana. Fez um desfile empolgante e de visual impactante. A bateria de mestre Ciça levantou as arquibancadas com um arsenal de paradinhas ousadas e bem ensaiadas, fazendo com que a escola deixasse a avenida com a sensação de dever cumprido.

A Portela foi a última a desfilar, e o dia já amanhecia quando a escola de Madureira pisou na Sapucaí. A azul e branca apresentou o Rio de Janeiro antes da chegada dos colonizadores portugueses. O bom samba-enredo foi cantado pelos componentes e sustentado por uma ótima performance da bateria de mestre Nilo Sérgio.

Com um desfile classudo, a Portela não chegou a empolgar o público enquanto desfilou, mas, no fim, foi seguida por um arrastão de foliões, que tomaram a Marquês de Sapucaí, cantando a alegria de um Carnaval que, apesar das falhas técnicas, foi democrático.

Veja, abaixo, o que de mais marcante aconteceu no primeiro dia de desfiles no Rio.

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Rudy Trindade/FramePhoto/Estadão Conteúdo
Júlio César Guimarães/UOL

No caminho da Estácio tinha uma pedra

A Estácio de Sá retornou hoje à elite do Carnaval do Rio de Janeiro com o enredo "Pedra". Da Pré-história ao garimpo, a agremiação abriu os desfiles na Marquês de Sapucaí contando a evolução do uso do material pela humanidade e criticou a destruição do ambiente para extrair minérios. A experiente Rosa Magalhães foi a carnavalesca responsável pelo desfile.

Uma caverna com pinturas rupestres e ossadas de animais compôs o primeiro carro alegórico, que de tão caprichado parecia ter sido construído com pedras, mas foi fabricado com papel. No quinto carro alegórico, a Estácio reproduziu a saga dos garimpeiros escalando Serra Pelada, no Pará, eternizada em fotos de Sebastião Salgado. Uma das garimpeiras foi a própria Rosa Magalhães, que tradicionalmente desfila entre os componentes.

Fundada em 1955, a Estácio de Sá ganhou um título do Grupo Especial em 1992, mas conviveu com rebaixamentos. Nos últimos 13 anos, disputou na elite em três desfiles: 2007, 2016 e nesta noite.

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Luciola Vilella/UOL

As mulheres fortes da Viradouro

Segunda escola a desfilar na Marquês de Sapucaí, a Unidos do Viradouro homenageou as mulheres que lutaram para construir o Brasil e levantou o público na Sapucaí. Com um samba-enredo que funcionou bem na avenida, a agremiação de Niterói animou com paradonas comandadas por mestre Ciça, um dos mais famosos mestres de bateria do Carnaval carioca.

Com o enredo "Viradouro de Alma Lavada", a escola apresentou, na comissão de frente, mulheres interpretando ganhadeiras, que sobreviviam lavando roupas. Ao longo do desfile, elas trocavam de roupa.

A atleta Anna Giulia Veloso, da seleção brasileira de nado sincronizado, representou uma sereia e ficou um minuto submersa em um tanque com 7.000 litros de água, simulando a lagoa do Abaeté, em Itapuã, na Bahia. A cantora baiana Margareth Menezes fez sua estreia na Sapucaí e desfilou no quarto carro alegórico.

A última alegoria da escola entrou na Sapucaí com problemas. O gerador que iluminaria o carro falhou, mas não comprometeu a apresentação.

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Júlio César Guimarães/UOL

Todos os Cristos da Mangueira

Para defender o título conquistado no ano passado, a Mangueira apostou em uma mensagem forte, que esbarrou na política. O enredo "A verdade vos fará livre" narrou a trajetória de Cristo, transportando a figura sagrada para a contemporaneidade e fazendo uma crítica nada velada ao presidente Jair Bolsonaro e à ideologia política que ele representa.

Com diversas referências a Jesus, que na visão da escola era uma pessoa "da gente", mostrado com rosto negro, sangue índio e corpo de mulher, a Mangueira fez um desfile visualmente elaborado e engajado, criticando a opressão e a intolerância. O fundamentalismo cristão entrou na mira.

"Não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão", cantaram os integrantes, em alusão ao presidente, Jair Messias Bolsonaro. O título do enredo, aliás, é uma das citações bíblicas prediletas do presidente.

A rainha de bateria Evelyn Bastos surgiu vestida como Jesus mulher, com coroa de espinhos, acorrentada e usando um vestido roxo. Ela não sambou durante o desfile. Já a comissão de frente apresentou Jesus pobre, com apóstolos negros e cubos que formavam uma favela. Alcione foi destaque em um dos carros alegóricos da Mangueira, representando Maria.

O desfile da escola mais popular do Carnaval carioca costuma levantar o público na avenida. Mas este ano não foi exatamente o que aconteceu. O samba acabou não pegando como em outros anos.

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Alessandra Roberta/Agência Estado

Tuiuti e a esperança de dias melhores

Em busca do título inédito, a Paraíso do Tuiuti levou para a avenida o tema "O Santo e o Rei - Encantarias de Sebastião". O enredo cruzou a história de dom Sebastião, rei de Portugal desaparecido no século 16 após uma batalha no Marrocos, com a de são Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro e também da escola.

Apesar do tema histórico, a escola manteve a tradição e conseguiu mais uma vez levar seu desfile para a atualidade, fechando com uma mensagem à cidade, tomada pela violência. O último carro tinha uma enorme escultura de são Sebastião, e o destaque segurava uma faixa com a inscrição "vai passar".

O segundo carro da Tuiuti teve dificuldades para entrar na avenida, o que causou um buraco entre as alas, deixando os integrantes da escola desesperados.

A apresentadora Lívia Andrade estreou como rainha de bateria da Tuiuti.

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Dikran Junior/Futura Press/Estadão Conteúdo

Grande Rio contra a intolerância religiosa

A Acadêmicos do Grande Rio levou para a Sapucaí a história de Joãozinho da Goméia, pai de santo negro e homossexual que venceu o preconceito e ficou conhecido como um dos líderes religiosos mais respeitados do país. Com um samba empolgante, a escola levantou o público e mostrou um desfile belo e contagiante.

Com alegorias exuberantes, figurinos originais e um conceito bem amarrado, a agremiação mostrou como Joãozinho ascendeu no candomblé e conseguiu se tornar uma personalidade influente na política e no mundo artístico nas décadas de 1950 e 1960, combatendo a intolerância religiosa.

Mas nem tudo foi brilho. Problemas técnicos podem tirar a Grande Rio da luta direta pelo título.

A escola teve dificuldade para manobrar carros no aquecimento, e o abre-alas não conseguiu entrar por completo, por conta de um atraso no posicionamento de destaques. Apenas a primeira parte da alegoria foi colocada na avenida, o que gerou muito corre-corre e um buraco considerável na pista. A escola deve perder pontos em evolução.

Fantasiada de Cleópatra, Paolla Oliveira roubou a cena. Na concentração, foi muito tietada por quem passava e precisou parar diversas vezes para tirar fotos. Outras musas também chamaram a atenção, principalmente antes de o samba rolar, como Luisa Sonza, Monique Alfradique e Adriana Bombom.

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Júlio César Guimarães/UOL

União da Ilha põe a favela em destaque

A União da Ilha entrou na Marquês de Sapucaí cheia de esperança e disposta a chegar entre as seis primeiras colocadas do Carnaval deste ano, mas enfrentou problemas que podem rebaixá-la.

A segunda alegoria da escola, um ônibus, acelerou na dispersão e quase atropelou componentes. Além disso, uma falha no motor de um dos carros causou um enorme buraco bem no meio do desfile. A alegoria precisou ser empurrada pelos integrantes da escola.

Comovido com a situação, o público aplaudiu muito o esforço dos integrantes da União da Ilha, que não desanimaram e seguiram cantando o enredo com alegria. O final do desfile foi marcado pela correria para que a escola não estourasse o tempo, o que não foi possível. Os portões foram fechados com o cronômetro marcando 1 hora e 11 minutos, um a mais do que o permitido.

A União da Ilha levou para a Sapucaí um enredo que falou dos desafios enfrentados pelas favelas cariocas. A agremiação apostou no realismo para escancarar o problema das comunidades carentes do Rio de Janeiro. O abre-alas reproduzia uma favela cenográfica com elementos típicos: barracos, pequenos comércios, salões de beleza, animais de rua, caixas de som, mototáxi, teleférico, pipas, igrejas, varais.

Helicópteros com a mensagem "Deus está conosco nas comunidades do Brasil" demonstravam tanto o temor com os tiros disparados por policiais como a esperança de uma vida mais segura.

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Luciola Vilella/UOL

Os índios da Portela

Tendo o amanhecer carioca como pano de fundo, a Portela entrou na Sapucaí propondo a "conscientização política e social da coletividade no Brasil". Os índios foram mostrados como os primeiros habitantes do Rio, fechando em grande estilo o primeiro dia do Grupo Especial.

A agremiação retomou a grandiosidade de seus últimos desfiles, promoveu um show de luzes, cores e luxo. Alas coreografadas e muito capricho técnico deram o tom da apresentação, que teve a comissão de frente como um de seus maiores destaques.

Sob o comando do coreógrafo Carlinhos de Jesus, a escola encenou um ritual de antropofagia do povo tupinambá, com direito a captura e decapitação de um homem.

Outra surpresa que os torcedores da Portela sempre aguardam com ansiedade é: como será representada a mítica águia que simboliza a escola? Neste ano, no carro abre-alas, ela veio mais baixa e em uma versão luminosa, com cabeça e asas articuladas, que pareciam se multiplicar em ondas. Um belo e inédito movimento, que surpreendeu.

O desfile da última escola a pisar na Sapucaí foi seguido por um arrastão formado por milhares de foliões, que saíram das arquibancadas e acompanharam o encerramento da primeira noite de desfiles no Rio. Os gritos de "é campeão" contagiaram.

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