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Blocos de Rua

Bloco funk comandado por mulheres quer devolver Carnaval de rua aos negros

Lola Ferreira

Colaboração para o UOL, no Rio

23/02/2020 07h00

"Não criamos um bloco para ser só de preto: criamos um bloco para abraçar os pretos." É assim que Iuna Patacho, codiretora d'O Baile Todo, define o bloco que fez sua estreia no pré-Carnaval do Rio de Janeiro deste ano.

Com ares de bloco secreto, o cortejo com repertório exclusivamente focado em funk levou centenas de pessoas às ruas e praças do centro da cidade, mas além dos passinhos, do quadradinho e do batidão, Patacho conta que o bloco pretende fazer mais: lutar contra o racismo e "devolver" o Carnaval de rua aos negros.

O Baile Todo foi criado no ano passado por Matheus Viana e Maria Milward após perceberem que os sets de funk eram os que faziam mais sucesso nos blocos que frequentavam.

Veio a ideia, então, de entregar aos foliões horas do melhor do ritmo. Com a preparação para o primeiro desfile, em 2020, e a fama que correu pelos grupos da cidade, aconteceu uma estruturação da direção e uma equipe melhor definida. Assim, Patacho, Rômulo Cardoso e Polliana Souza, todos negros, se uniram à direção, que conta ainda com Thaísa Rudge.

Não é desproposital ressaltar a cor da pele dos integrantes, porque O Baile Todo se propõe a ser um esteio para as pessoas negras que se sentem deslocadas do Carnaval de rua, principalmente aquele que bomba mais entre o centro e a zona sul do Rio de Janeiro.

Tomado pelos instrumentos de sopro e pelas fantasias ousadas, os blocos desse eixo geralmente repetem inúmeros integrantes de banda e foliões, e a maioria é branca.

'Origem preta'

"Uma das coisas que eu mais vejo, critico e tento lutar contra é a ausência de pessoas negras no Carnaval de rua atual. Considerando que o Carnaval de rua tem origem preta, isso é muito sintomático, porque fala sobre a exclusão que pessoas pretas sofrem nesta cidade, neste país", avalia a codiretora.

Dominado por um ritmo originalmente de periferia e feito por pessoas negras, Patacho acredita que não teria como o bloco se desvencilhar da luta pela "redemocratização" do ritmo e contra o racismo.

Discurso antirracista

"O nosso objetivo, na verdade, é embasar o discurso antirracista e da descriminalização do funk. O que a gente está tentando é criar um espaço em que a gente possa dar voz a esse gênero musical que também é um movimento social", explica a diretora, responsável pelas coreografias que 10 pernaltas executam acima do público.

Bloco O Baile Todo estreia no Rio - Luciola Villela/ UOL - Luciola Villela/ UOL
Imagem: Luciola Villela/ UOL
O naipe que está sob seus cuidados exemplifica o desejo de representatividade que o bloco quer: dos 10 integrantes, metade é negra. O mesmo equilíbrio vale para a maioria das pessoas negras no corpo de baile, o Deborah Funker, em alusão à premiada coreógrafa Deborah Colker.

Mas eles ainda querem mais. Na bateria, os instrumentos de sopro, por exemplo, ainda são tocados por poucos músicos brancos. E isso, claro, também é uma expressão do racismo, na visão da codiretora. "Se considerarmos que a maior parte das pessoas pobres no Brasil é negra, a gente entende de onde isso vem."

Além do Carnaval

Com essas observações, O Baile Todo pretende expandir para além do Carnaval os seus ideais. Há projetos sendo criados para levar oficinas de ritmo, música e dança para as favelas do Rio, sempre alinhados com outros movimentos que lutam pela cultura do funk.

"Não queremos ser só um bloco. Queremos adentrar os movimentos não só para colorir. Quando falamos de funk, estamos falando do genocídio do povo preto e pobre, estamos falando de fome, violência, da história do Rio de Janeiro, que tem se aprofundado de forma muito grave em uma direção ruim", diz Patacho.

"Não queremos ser só um bloco que está na rua sem qualquer tipo de discurso que chame, que clame, que engaje as pessoas", afirma.

Ação contra as críticas

Questionada se a proposta social e cultural do bloco é alvo de críticas, Patacho destaca o pré-julgamento. Por ser um bloco estilo aqueles que são secretos e da zona sul (o horário do desfile, por exemplo, só foi divulgado poucas horas antes), ter muito instrumento de sopro e investimento pesado no figurino, há quem diga que tem banalização do ritmo e da sua influência social.

O Baile Todo - Luciola Villela/ UOL - Luciola Villela/ UOL
Imagem: Luciola Villela/ UOL
Patacho discorda. "A gente sempre lida com comentários de pessoas que não conhecem nosso objetivo, nosso discurso ou nossa história, que, apesar de curta, é intensa. São comentários do tipo 'é um bloco de branco tocando funk', mas a pessoa nem viu, porque quem fala isso, não conhece nosso balé, nosso corpo de pernaltas."

Expandir os privilégios

Iuna Patacho é cientista social, professora de pernaltas e instrumentista. Ela leva na pele, especificamente na coxa esquerda, uma tatuagem que sintetiza seus amores. Criada em Ramos, conta que a família sempre foi ligada ao Carnaval, mas de forma bem tímida: torcem para a Imperatriz Leopoldinense, escola de samba da região.

Sua relação com o Carnaval de rua, então, veio quase do zero: começou fazendo aulas de perna-de-pau e tudo mudou muito rápido. Hoje, dois anos depois de se arriscar nas alturas pela primeira vez, dirige um bloco que pretende revolucionar o microcosmo dos cortejos.

Público diverso

Patacho se tornou uma espécie de porta-voz d'O Baile Todo, mas sempre cita as outras pessoas negras que compõem o movimento e suas contribuições. A reportagem acompanhou o cortejo do bloco e confirmou: quem faz o bloco acontecer, em geral, é negro. Mas o público é ainda mais diverso. E isso não é um problema para ninguém naquele espaço.

A cientista social explica que o objetivo do bloco não é segregar brancos, mas fazer com que pretos se sintam à vontade, acolhidos. Patacho se autodefine como "privilegiada" social e economicamente, em comparação com a maioria da população negra, e afirma que seu objetivo é usar isto para mudar um pouco o mundo à sua volta. Quando encontrou O Baile Todo, foi match.

Propósito maior

"Quando eu fui convidada para fazer parte de um bloco de funk e os conheci, entendi que existia um propósito muito maior do que ser apenas mais um bloco se apropriando da cultura funk para ocupar a rua. Eu acho que ocupar a rua, seja da forma que for, é importante. Mas se você traz o funk, você precisa ter um discurso, uma ação que vá para além de 'vamos curtir'. E quando eu percebi isso, senti que estava no meu lugar", derrete-se ela, com um look que homenageava a MC Rebecca.

De Anitta a Rennan da Penha

Além da funkeira, o desfile do bloco contou com hits de várias épocas, de Claudinho e Buchecha a Anitta, passando por aqueles que estouraram graças ao DJ Rennan da Penha.

Se os outros blocos vão aprender a lição e alinhar o discurso e a diversão com a prática, a partir do exemplo d'O Baile Todo? "É o que queremos. É para isso que a gente existe. Temos um objetivo e vamos chegar lá", define.

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