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Rio de Janeiro

Carnaval carioca tem uma campeã justa e uma virada de mesa injustificável

Anderson Baltar

Colaboração para o UOL

02/03/2017 11h43

O Carnaval carioca mais tumultuado da história tem uma campeã justa. A Portela fez um desfile técnico e empolgante e, com todos os méritos, quebrou o jejum de 33 anos sem títulos, enlouquecendo sua fanática torcida.

Ainda sob o efeito da morte de seu presidente, Marcos Falcon, ocorrida em setembro passado, a azul e branca pisou forte na Sapucaí conjugando uma ótima evolução, o canto consistente e um enredo muito bem desenvolvido por Paulo Barros. A festa foi grande em Madureira, que também celebra a volta do tradicional Império Serrano ao Grupo Especial. A grata surpresa ficou por conta da Mocidade Independente de Padre Miguel. Ausente do Desfile das Campeãs desde 2003, a verde e branca conquistou um comemorado vice-campeonato. Salgueiro, Mangueira, Grande Rio e Beija-Flor completam o grupo de escolas que desfilarão no próximo sábado.

Se, no topo da tabela, o resultado do Carnaval tem coerência, o mesmo não pode ser dito ao se analisar a classificação como o todo e, principalmente, o critério de julgamento utilizado. Várias notas foram absolutamente inacreditáveis, demonstrando que, para muitos julgadores, o peso da bandeira ainda é decisivo. O Paraíso do Tuiuti, a despeito do problema com seu último carro, impressionou o público em alguns aspectos, como bateria e fantasias. Porém, suas notas foram as mais baixas na maioria dos quesitos, ficando com notas que raramente passavam do 9,8.

Após quebrar o seu segundo carro alegórico e ter seu desfile arruinado na maioria dos quesitos, a Unidos da Tijuca contou com a benevolência de vários jurados, que a livraram do merecido último lugar. Mesmo com a passagem de mais de dez alas à frente do seu carro acidentado, o enredo da escola só foi penalizado em oito décimos.

Com componentes que passaram à avenida chorando, a harmonia computou uma nota dez e duas 9,9, conseguindo mais pontos do que Tuiuti, União da Ilha e São Clemente e igualando-se à Imperatriz e Vila Isabel. Mesmo parada na pista por mais de 10 minutos, ter formado um buraco do tamanho de um setor de arquibancada e corrido para não estourar o tempo, sua evolução ainda conseguiu ser mais bem avaliada do que a do Tuiuti. Se não acontecesse a vergonhosa virada de mesa, que cancelou o rebaixamento, a escola do Borel seria salva pelo gongo.

Em um momento de forte descrédito em todas as instituições, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) promoveu uma decisão esdrúxula e inacreditável. O não rebaixamento de nenhuma escola para o Carnaval 2017 foi uma punhalada dolorosa no peito dos amantes da folia e, por que não dizer, do povo carioca, tão maltratado pelos recentes desatinos de seus governantes. Não há justificativa que seja suficiente para chancelar uma decisão desse tipo. O desfile não foi prejudicado por uma queda de luz ou de som na avenida, sequer por um dilúvio e, sim, por falhas cometidas pelas escolas.

Ao ser ventilada no início da tarde e, logo após confirmada pela Liesa, a decisão revoltou a comunidade sambista do Rio de Janeiro. Em poucos minutos, bandeiras da Unidos da Tijuca com o escudo do Fluminense eram compartilhadas freneticamente nas redes sociais – numa clara alusão ao caso Heverton, que livrou o time das Laranjeiras do rebaixamento em 2013. A quantidade de menções negativas à Liga nas redes sociais foi assustadora. Mas o apelo da opinião pública, hoje em dia bastante considerada no ambiente corporativo, encontrou ouvidos moucos nos mandatários da folia. Também, pudera. A Liesa não utiliza o Twitter e tem uma página decorativa no Facebook. O que esperar de uma entidade que vende os ingressos para o desfile por fax?

A manobra, à primeira vista assimilada como um artifício para segurar a Unidos da Tijuca no desfile principal, revelou-se, após a abertura dos envelopes, como um benefício ao Tuiuti. Esta é a outra face da crueldade do julgamento do Carnaval. Mesmo fazendo um péssimo desfile em todos os critérios de avaliação, a escola presidida por Fernando Horta ainda conseguiria um lugar dentre as grandes. A partir daí, surge a constatação: ao que parece, para os jurados e dirigentes do Carnaval, existem escolas “caíveis” e “incaíveis”. Neste ponto, o Carnaval paulistano está anos-luz à frente do carioca, com o rebaixamento da tradicional Nenê de Vila Matilde e o título inédito da Acadêmicos do Tatuapé.

O momento é triste para o Carnaval carioca. Vítima de uma elefantíase que transformou os carros alegóricos em armas brancas, da insensibilidade de continuar o “espetáculo” a todo custo, mesmo que pessoas estejam feridas necessitando de socorro. Refém de um esquema que privilegia algumas escolas em detrimento de outras e contando com um corpo de jurados covarde e acovardado, que penaliza excessivamente escolas de menor tradição e preserva outras.

Em um momento de crise econômica, em que patrocinadores cada vez mais estão raros e com um prefeito que sequer colocou os pés na Sapucaí, as escolas de samba cariocas precisam acordar e entender, de uma vez por todas, que o maior patrimônio do dito “espetáculo” tem de ser a credibilidade. Caso contrário, estamos assistindo ao início do fim de uma paixão que mobiliza milhões de brasileiros.