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Rico Vasconcelos

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

A controvérsia em torno do comprimido que protege contra ISTs bacterianas

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

19/02/2021 04h00

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Se por um lado a prevenção do HIV se desenvolveu bastante na última década e hoje podemos ver que em algumas regiões do mundo a incidência dessa infecção está despencando, para as outras ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), como sífilis, gonorreia e clamídia, a ciência parece ainda estar à procura de uma forma de controle eficiente.

Recentemente, o estudo francês Ipergay mostrou que o uso de um antibiótico depois das relações sexuais reduziu de forma significativa os casos incidentes de ISTs bacterianas, mas essa intervenção ainda é motivo de controvérsia e divide os especialistas em todo o mundo.

No estudo, um grupo de 232 homens cisgênero gays e bissexuais usuários de PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) ao HIV, foi acompanhado entre 2015 e 2016 com visitas de retorno a cada 2 meses, em que eram feitos testes para as ISTs. Os participantes foram sorteados aleatoriamente para receberem somente a PrEP ou PrEP e Doxiciclina, com a orientação de tomarem 2 comprimidos do antibiótico 24 horas depois de cada relação sexual que tivessem.

Durante o acompanhamento, o grupo que recebeu o antibiótico teve 70% menos infecções incidentes por clamídia e 73% menos casos de sífilis. O número de casos de gonorreia foi semelhante nos dois grupos e nenhum participante com adesão correta à PrEP se infectou com HIV.

Segundo o último Relatório de Vigilância Global de ISTs da OMS (Organização Mundial da Saúde), publicado em 2018, anualmente são reportados em todo o mundo cerca de 220 milhões de novas infecções por sífilis, gonorreia e clamídia. E assim, a OMS tem falhado na sua ambiciosa meta de controlar essas ISTs globalmente até o ano de 2030.

No caso do HIV, a fórmula que deu certo foi a ampliação do acesso a um conjunto de intervenções, que incluem tanto a testagem e o tratamento do HIV, quanto a camisinha e as PrEP e PEP (Profilaxias Pré e Pós-Exposição), ao que damos o nome de Prevenção Combinada. Mas foi só depois da chegada dos medicamentos antirretrovirais na prevenção que as coisas realmente começaram a melhorar.

Para as ISTs bacterianas, os trabalhos que avaliaram a promoção de estratégias comportamentais de prevenção, tais como o uso do preservativo nas relações sexuais e a redução do número de parcerias sexuais, demonstram um impacto bastante limitado no controle de novas infecções.

As outras intervenções disponíveis, como a notificação e tratamento das parcerias recentes dos indivíduos com diagnóstico de uma IST e o rastreamento de portadores assintomáticos dessas bactérias, são atualmente realizadas por uma parcela insuficiente da população e não são estimuladas pelas autoridades de saúde pública.

Nesse cenário, um método adicional de prevenção contra ISTs bacterianas seria muito bem-vindo, mas parece que a PEP com Doxiciclina tem causado mais preocupação do que alegria.

O principal receio da recomendação do uso populacional da PEP com Doxiciclina está relacionado com o potencial de indução de resistência bacteriana aos antibióticos, problema já de máxima importância quando falamos da gonorreia, que não teve sua incidência reduzida no estudo Ipergay exatamente por já ser frequentemente resistente à Doxiciclina.

Nem para o Treponema pallidum, bactéria causadora da sífilis, nem para a clamídia há relatos em humanos de resistência a esse antibiótico, no entanto não sabemos o que o seu uso disseminado poderia provocar numa população. E mais do que isso, um estudo com pouco mais de 200 pessoas acompanhadas por apenas 1 ano certamente não será capaz de responder isso.

Nem os defensores da PEP com Doxiciclina para ISTs bacterianas recomendam o início do seu uso sem que antes a questão da resistência bacteriana seja elucidada, mas acreditam que a estratégia tem potencial e deve ser mais bem estudada, sobretudo o seu uso restrito e direcionado para os grupos com maior vulnerabilidade a ISTs.

A beleza da ciência está na capacidade do questionamento, da investigação. Nada é tão perfeito que não possa ser melhorado. E aquilo que falha por não funcionar, como a recomendação isolada do uso da camisinha, deve ser abandonado se de fato queremos vencer as ISTs.