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Eleições: Brasil pode ter 1ª trans no Congresso; por que isso é importante?

Erica Malunguinho com Guilherme Boulos no evento de lançamento de sua pré-candidatura, em março - Divulgação
Erica Malunguinho com Guilherme Boulos no evento de lançamento de sua pré-candidatura, em março Imagem: Divulgação

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

12/04/2022 04h00

Aparelha Luzia é o nome de um espaço de eventos no centro de São Paulo que se autodenomina "quilombo urbano". No dia 31 de março, o lugar estava lotado, e a maioria das pessoas era negra. Trans e travestis, idosos, crianças, lideranças do candomblé, artistas como Liniker, Majur e Urias e, do lado de fora, uma fila aguardando a entrada: esse foi o cenário da festa de lançamento da pré-candidatura a deputada federal de Erica Malunguinho, primeira mulher trans da história a ser eleita deputada estadual em São Paulo, em 2018, pelo PSOL.

Como ela, outras parlamentares trans e travestis já confirmaram que vão concorrer à Câmara dos Deputados. Entre elas a vereadora Érika Hilton (PSOL-SP) e a codeputada Robeyoncé Lima (PSOL-PE), ambas com votações bastante expressivas em suas regiões. Também entram nessa lista personalidades que ainda não estão na política, mas miram uma vaga em Brasília como primeiro passo: a ex-BBB Ariadna Arantes (PSB) e as ativistas Paula Benett (PSB) e Symmy Larrat (PT).

A maioria das candidatas e das eleitas são de partidos de esquerda porque, historicamente, eles estão mais abertos a pautas identitárias, explica a pesquisadora e professora Hannah Maruci Aflalo, que leciona Ciência Política na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). "Grupos minorizados, em geral, não são contemplados por partidos de direita, por isso eles vão para partidos que têm como prioridade a justiça social, a igualdade. Por isso hoje essas pautas estão concentradas na esquerda e na centro-esquerda", afirma.

Para Maruci, as eleições deste ano podem eleger não uma, mas talvez duas ou três deputadas trans ou travestis, pelo aumento no número de candidatas e pela maior visibilidade que conseguiram alcançar. Universa conversou com ela e outra especialista para entender as reais chances de isso acontecer e por que é importante ter uma pessoa transgênero eleita no pleito deste ano.

Para a advogada Amanda Souto Baliza, conselheira da OAB-GO (Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás) e vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB, a resposta está em uma palavra: representatividade.

Congresso nunca aprovou lei para população LGBT

Baliza lembra que, até hoje, o Congresso Nacional não aprovou um projeto sequer que garantisse direitos ou protegesse a população LGBTQIA+ —todos os direitos conquistados nos últimos dez anos, como o casamento homoafetivo e a criminalização da homofobia, vieram por meio de decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

"Hoje, o Judiciário é o que a gente tem, mas não é o ideal, porque as decisões tomadas no STF estão mais sujeitas a alterações do que as leis elaboradas e ratificadas pelo Legislativo", explica.

"O Congresso tem apenas quatro parlamentares abertamente LGBTQIA+. À medida que conseguimos eleger mais gente, mais nossas pautas poderão avançar na agenda legislativa", defende. "Existem bons projetos de lei, mas também existem propostas muito assustadoras, contrárias aos nossos direitos. A gente precisa eleger pessoas que vão fazer contraponto ao retrocesso".

Além dessa representatividade ser importante na aprovação de projetos, também cumpre um papel pedagógico, acredita a advogada: "A partir dessa convivência diária na Câmara, os outros parlamentares se sensibilizam e passam a respeitar pessoas trans e travestis".

Erika Hilton en frente à Câmara dos Vereadores, em São Paulo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Erika Hilton en frente à Câmara dos Vereadores, em São Paulo
Imagem: Arquivo Pessoal

Candidatas precisarão de apoio nacional, diz pesquisadora

Nas últimas eleições para vereador, Erika Hilton recebeu mais de 50 mil votos, número alto para os padrões municipais que fez dela a mulher mais bem votada em todo o país em 2020, e a sexta pessoa mais votada em São Paulo. Dois anos antes, Erica Malunguinho, primeira trans a ocupar uma vaga na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), recebeu pouco mais de 54 mil votos no estado.

Para Maruci, os números expressivos com os quais elas foram eleitas em pleitos locais não são garantia de que chegarão à Câmara dos Deputados. "Entram nessa conta o apoio do partido, o peso da federação partidária, como se dará a campanha, tudo isso influencia bastante", explica Maruci, codiretora do projeto A Tenda das Candidatas, que fomenta a representação de mulheres na política.

Lançamento da pré-candidatura de Erica Maluguinho à Câmara dos Deputados - Divulgação - Divulgação
Lançamento da pré-candidatura de Erica Maluguinho à Câmara dos Deputados
Imagem: Divulgação

Pré-candidatas já pensam em formação de bancada LGBTQIA+

"Certamente teremos", crava Érika Hilton em relação a uma bancada pelos direitos LGBT no Congresso. "Essa é uma tendência que vem se construindo nos últimos pleitos e que com certeza se consolidará na Câmara dos Deputados. Minha luta e minha esperança é que consigamos, numerosas, articuladas e organizadas, avançar e arrancar esses direitos de uma vez por todas, sendo protagonistas de nossas próprias histórias".

Malunguinho completa, porém, que não será feita uma "política de nicho". "Pessoas trans têm muito mais conteúdo a ser oferecido além daqueles que giram em torno de suas causas. Temos representantes plenamente capacitados para pensar o bem-estar geral".

Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão conjunta do Congresso Nacional  - Waldemir Barreto/Agência Senado - Waldemir Barreto/Agência Senado
Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão conjunta do Congresso Nacional
Imagem: Waldemir Barreto/Agência Senado

Trajetória de ataques e ameaças

Ataques e ameaças são comuns a parlamentares trans e travestis pelo país: em 2019, Malunguinho foi ameaçada pelo deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP) de ser expulsa do banheiro feminino da Alesp "a tapas"; no ano passado, a vereadora Benny Brioli, de Niterói, teve que deixar o país por medo que ameaças de morte se concretizassem.

"Desde o primeiro momento em que acenamos possibilidades de ingresso na política institucional os ataques foram constantes, por vezes explícitos e quase sempre presente nas entrelinhas", lembra Erica Malunguinho.

Mas, para a advogada Amanda Souto Baliza, elas podem estar mais protegidas em Brasília do que nas casas estaduais e municipais.

"Há uma estrutura maior para um parlamentar se defender desse tipo de ataque, sejam verbais, físicos e ameaças de morte. Obviamente elas vão sofrer ataques, mas terão mais estrutura para ajudar na sua proteção e integridade física", prevê.

Maruci completa falando sobre a importância do que chama de "política da presença": "Essas mulheres eleitas, até agora, estão isoladas, são as únicas em suas casas legislativas, e enquanto estiverem sozinhas nestes espaços, estão mais sujeitas a violência. Quanto mais forem eleitas, mais estarão seguras".

Para Érika Hilton, se ela ou outra mulher trans ou travesti for eleita, será, sim, uma vitória, mas atrasada. "A chegada dos corpos travestis na Câmara dos Deputados é de suma importância. Mas que isso ocorra apenas em 2023 é uma denúncia de que demorou muito tempo para que deixássemos de ser sentenciadas à prostituição e à morte por violência e pudéssemos ser eleitas."