Topo

"Trabalhar com o novo coronavírus é uma oportunidade histórica"

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Marcos Pivetta da Pesquisa FAPESP

09/04/2020 04h00Atualizada em 09/04/2020 17h53

Bióloga Rafaela da Rosa Ribeiro, que faz estágio de pós-doutorado em hospital de Milão, foi estudar o vírus da zika e acabou entrando em projeto sobre o Sars-CoV-2.

*

Cheguei em 1º de junho do ano passado em Milão, capital da Lombardia, na Itália. Vim para ficar um ano, mas, com a epidemia do novo coronavírus, pedi prorrogação de dois meses de minha bolsa de pesquisa. É uma oportunidade histórica poder trabalhar com o vírus Sars-CoV-2 na Itália. Vou ficar aqui até meados de agosto deste ano. No trabalho, me comunico 100% em inglês. Meu italiano ainda é macarrônico. Mas me sinto bem acolhida.

Em São Paulo, faço pós-doutorado no Hospital Israelita Albert Einstein. Há uns três anos, decidi trabalhar com o emprego da técnica de edição gênica CRISPR para estudar vias de morte celular em células neuronais infectadas pelo vírus zika. Queria estabelecer uma parceria no exterior para desenvolver estudos nessa área. Mandei e-mails para vários grupos de pesquisa da Europa e dos Estados Unidos. Entre os que me responderam e aceitaram meu pedido, o grupo de pesquisa do Hospital San Raffaele me pareceu o mais interessante. Vim para cá e acabei entrando na equipe de dois laboratórios, um de virologia, que já trabalhava com zika, e outro de neurologia.

A pesquisadora Rafael Rosa Ribeiro - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A pesquisadora brasileira Rafaela Rosa Ribeiro
Imagem: Arquivo Pessoal

Por coincidência, minha supervisora na virologia, Elisa Vicenzi, é especialista em coronavírus. Ela trabalhou com o vírus Sars-CoV em 2002 e 2003, quando foi a responsável por seu isolamento na Itália. Desde janeiro deste ano, ela dava palestras sobre o novo coronavírus e monitorava a situação da Covid-19 na Itália. Quando o Sars-CoV-2 chegou com tudo aqui, mandamos às pressas projetos de pesquisa para algumas empresas e instituições. Há pouco mais de uma semana, a maioria desses projetos foi aprovada e ela me convidou para entrar na pesquisa da Covid-19. Aceitei. Era uma oportunidade histórica, científica. Todos estão motivados e estamos desenhando os experimentos com o novo coronavírus. A Elisa é uma das cientistas mais ouvidas aqui pela imprensa sobre esse tema.

Em meia hora, vou da minha casa ao hospital. Os laboratórios de pesquisa ficam dentro do hospital. Pego o metrô, que sempre estava cheio, e um ônibus para chegar ao San Raffaele. A epidemia mudou completamente minha rotina. Agora encontro no metrô uma ou duas pessoas no vagão e estão sempre de máscara. Antes da epidemia, chegava todo dia às 8 horas no laboratório e ficava oito ou dez horas lá. Os experimentos são longos e demorados. Como trabalho em dois laboratórios, o ritmo sempre foi bem frenético e circulo bastante no hospital.

Com o fechamento de Milão por causa do avanço da epidemia, passamos a fazer escala nos laboratórios. Mas quase ninguém vai. Os estudantes de mestrado e doutorado estão dispensados de ir. Quando alguém vai a um laboratório, fica apenas algumas horas. A neurociência conta com 28 pessoas, entre alunos, técnicos e professores. Mas hoje (27/3), por exemplo, só foram duas, outra pós-doc e eu. Na virologia, somos em oito pessoas. Apenas quatro estão indo ao laboratório, eu, outra pós-doc, uma técnica e a Elisa Vicenzi. Vou nos dias em que estou na escala dos experimentos, três vezes por semana. Mas, como disse, não fico o dia inteiro. Alguns vão de manhã, outros, à tarde, para evitar aglomerações. Por ora, estamos conseguindo tocar o trabalho assim.

A pesquisadora Rafael Rosa Ribeiro - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Com o avanço da epidemia na Itália, brasileira passou a ir apenas três dias por semana ao trabalho
Imagem: Arquivo Pessoal

Uso sempre máscara, seja no metrô ou no trabalho. Estou me expondo muito. Não tive nada ainda. Mas temos muitos infectados no hospital. Muitas pessoas que trabalham conosco têm mais de 60 anos, estão na faixa etária de risco e com outras patologias. Por isso, usamos máscaras para não transmitir o coronavírus caso estejamos infectados sem saber. Na virologia, tivemos um caso de coronavírus na nossa equipe. Uma pesquisadora de 45 anos ficou doente e está internada há três semanas. Ela está estável, mas ainda precisa de medicamentos e de respirador. Normalmente, a recuperação demora de três a seis semanas. Tivemos também um aluno que deu positivo para o Sars-CoV-2. Ele apresenta sintomas brandos e está em casa. Casos desse tipo vemos aos montes.

Na virologia, estamos clonando o novo coronavírus para fazer estudos com a enzima luciferase, um tipo de marcador celular. Também coletamos amostras de pacientes com a Covid-19, como urina, sangue e secreção, em diferentes estágios da doença. Estamos fazendo um banco de dados desses pacientes, separados por idade, sexo, casos assintomáticos, brandos e severos. Pretendemos analisar a resposta inflamatória causada pelo vírus e caracterizar melhor a doença e seus sintomas.

Temos ainda um projeto que acabou de ser aprovado para testar alguns fármacos contra a Covid-19. Foram separadas quatro drogas comerciais, que estão no mercado e são usadas para tratar outras doenças. Temos parcerias com empresas para testar esses fármacos, que não sabemos quais são. Testaremos as drogas in vitro e vamos verificar os efeitos e mecanismos em células infectadas com o vírus, de maneira cega, sem saber quais fármacos estamos testando. Acho que os primeiros resultados desse experimento só devem sair para o fim do ano.

No início de fevereiro, não sabíamos que já havia transmissão comunitária na Itália. Até então, havia apenas um casal de turistas chineses em Roma que estava com a doença. Naquele momento, a OMS [Organização Mundial da Saúde] considerava que os casos suspeitos de Covid-19 tinham de ter duas características: os sintomas da doença e ter tido contato com alguém que veio do então epicentro da epidemia, a China. Muita gente tinha os sintomas da doença, mas eram dispensados dos hospitais porque não tinham tido contato com alguém vindo da China. Foi mais ou menos isso que ocorreu com o chamado paciente número 1 da Itália. Ele procurou o sistema de saúde, mas foi, digamos, rejeitado porque não teria tido contato com alguém do epicentro. Mas, na verdade, tudo isso já era um aviso de que havia transmissão comunitária, uma ideia que ainda não era aceita.

A Itália não sabia que a doença sobrecarregaria em demasia o sistema de saúde, sobretudo por causa de sua grande população de idosos. Pensavam que era como uma gripe e que apenas poucas pessoas precisariam de hospitalização. Primeiro eles fecharam algumas cidades e regiões do Norte e depois o resto do país. Eles fecharam logo a região de Codogno, na Lombardia, onde foi diagnosticado o paciente 1, mas demoraram muito para fazer o mesmo em Bérgamo, que é um grande centro industrial da Lombardia. Eles tinham medo dos efeitos que essas medidas teriam sobre a economia do país. Agora toda a Itália está fechada. Mas estou mesmo é preocupada com o Brasil, onde a Covid-19 chegou há menos tempo. Moro sozinha em Milão e toda minha família está em Ponta Grossa, no Paraná.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.