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Violenta falta de ação diante do coronavírus é genocídio, sim; isso é crime

Elisa Larkin Nascimento

Colaboração para Universa

24/07/2020 04h00Atualizada em 15/12/2020 19h24

Duas mulheres brancas, lourinhas. Uma delas esposa do governador, com cargo na fundação social do Estado. Rindo, as duas aconselham as amigas: não tenham pena dessa gente que fica na rua. São uns irresponsáveis, não querem ficar nos abrigos. Responsáveis somos nós, mulheres poderosas. Chegamos aonde estamos por mérito e competência.

Outra primeira-dama lourinha manda a empregada negra passear com o cachorro. Enquanto a serva cuida do xixi do amado canino da madame, esta põe o filho da empregada no elevador e o manda passear sozinho. Com 5 anos. Ele cai do nono andar e morre espatifado. Por mérito, naturalmente, a dona primeira-dama paga fiança e fica solta. Se este menino preto pudesse crescer, as chances de ele ser mais um inocente preso ou assassinado são maiores do que as de ele conseguir um ensino sólido, se formar como engenheiro e ajudar a construir o país.

Morador de condomínio de luxo, o empresário branco passa longos minutos a xingar e agredir verbalmente o policial negro que tenta abordá-lo. O policial ouve tudo calado. "Aqui é Alphaville, mano! Você é um bosta. É um merda de um PM que ganha R$ 1.000 por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Quero que você se foda, seu lixo de caralho. Você não me conhece. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta."

Nos últimos dias foi a vez do desembargador destratar e agredir o guarda negro que lhe informou da obrigatoriedade da máscara. Rasgou a multa e a jogou no chão.

Enquanto isso, pessoas negras apanham e morrem todos os dias. Nove jovens pisoteados em uma ação policial em Paraisópolis (SP), e um menino de 14 anos assassinado com tiro nas costas quando a polícia invade o lar da família em São Gonçalo (RJ), são pequenos exemplos do terror diário que a população favelada sofre. Esses dias, a bota do policial paulista pisando o pescoço de uma comerciante negra lembrou a terrível morte de George Floyd, em Minneapolis, Estados Unidos, que desencadeou uma onda de protestos mundo afora.

Nos últimos tempos, vimos assistindo cenas que passam na velocidade frenética da difusão de vídeos e notícias pelas redes sociais, ilustrando nitidamente o racismo e as desigualdades abissais das sociedades contemporâneas. Mas essas cenas não apresentam novidades.

A violência contra pessoas negras pouco mudou, só passou a circular filmada. E a indiferença diante dela continua igualmente, secularmente firme.

Nos Estados Unidos, a violência policial ceifa umas 1.100 vidas negras por ano. A polícia do governo Witzel matou esse montante em poucos meses, em um só Estado da federação. No Brasil, milhares morrem por ano.

Esses fatos são apenas um aspecto do racismo que Abdias do Nascimento descreveu no seu livro "O Genocídio do Negro Brasileiro" (Editora Perspectiva). A palavra "genocídio" chocou o público há 42 anos, assim como hoje seu uso pelo ministro Gilmar Mendes ocasionou uma revolta entre militares. Foi o termo correto, técnico, para o que acontece hoje: o extermínio de populações. Aos índios se nega água potável via canetada.

Às famílias que perderam 84 mil entes queridos mortos por Covid-19 se nega empatia ou mesmo o reconhecimento de sua dor. À população negra (preta e parda) - para quem o coronavírus é três vezes mais letal - se nega a dignidade humana das mais diversas formas, desde a violência policial até os matizes nada sutis de corriqueiras expressões cotidianas.

O maior privilégio de nós brancos é o de não precisarmos pensar no racismo, porque a brancura é a norma, o mundo se define por ela, e, portanto, até muito recentemente o privilégio passava despercebido.

Hoje ainda reina o discurso da meritocracia, mas ele vai recuando diante da força autêntica da denúncia do racismo estrutural.

No meu caso, talvez eu conheça melhor o racismo porque convivo com pessoas negras. Minha família. Mas também porque eu me interessei. Estudei. Publiquei alguns livros, inclusive pela pioneira Selo Negro Edições. Atuei em causas jurídicas e políticas antirracistas, e assim conheci a pessoa com quem construí minha vida em família e em ação.

Você, mulher branca privilegiada como eu, faço-lhe um convite: de ler o livro "O Genocídio do Negro Brasileiro" para você conhecer as bases empíricas, teóricas e históricas desse termo que caracteriza com precisão o racismo nos seus aspectos múltiplos.

O genocídio não se limita à matança direta das dezenas de milhares de jovens cujas mães choram enquanto você lê este artigo no conforto do seu lar. As mortes não se restringem às perdas físicas de pessoas amadas. O racismo mata talentos, apaga futuros, destrói subjetividades. Corrói a saúde de organismos mal alimentados ou desesperados pela falta de meios de subsistência.

E o racismo está nas políticas governamentais, quando entregam R$ 1,2 trilhão aos bancos sem qualquer condicionamento ou regulamentação, para eles comprarem títulos podres, recusarem empréstimos e verem o recurso empoçado remunerado no final do dia com dinheiro público. Para ficar em um só exemplo.

A violenta falta de ação diante do coronavírus é genocídio, sim, e o genocídio não é uma hipérbole.

É crime previsto no Tratado de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, ratificado pelo Brasil pelo Decreto 42.121 de 1957, portanto dispositivo da lei nacional. É crime previsto no Artigo 208 do Código Penal Militar do Brasil. Crime que deve ser rigorosamente punido!

Como disse uma sábia e valente mulher negra em um desses vídeos que circulam nas redes: "Ainda bem (para os brancos) que os negros procuram justiça e reparação, e não vingança".

Errata: este conteúdo foi atualizado
O governador Wilson Witzel terminou seu primeiro ano de governo no Rio com o maior número de mortes provocadas por policiais na história do estado: 1.810.