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Dados de celulares provam que quarentena é luxo de que tem mais dinheiro

Times Square esvaziada em Nova York, nos EUA, durante a pandemia de coronavírus - Lev Radin/Pacific Press/LightRocket via Getty Images
Times Square esvaziada em Nova York, nos EUA, durante a pandemia de coronavírus Imagem: Lev Radin/Pacific Press/LightRocket via Getty Images

Marcos Bonfim

Colaboração para Tilt

01/06/2021 04h00

Sem tempo, irmão

  • Estudo analisou dados anonimizados de 45 milhões de usuários de telefones celulares nos Estados Unidos
  • Levantamento mostra que pessoas que vivem em bairros desfavorecidos e com menor poder aquisitivo passaram menos tempo dentro de casa durante lockdown
  • Entre os motivos, estão a ausência de uma reserva financeira que as permita ficar em casa e trabalho em profissões que não possibilitam home office

No começo da pandemia de covid-19, uma frase ressoou como verdade absoluta: estamos todos no mesmo barco. O avanço da doença e as suas consequências romperam com essa ideia nada empática. A tempestade pode ser a mesma, mas as embarcações são totalmente diferentes, segundo prova um estudo realizado nos Estados Unidos com dados de 45 milhões de celulares.

A pesquisa mostra que pessoas que vivem em bairros desfavorecidos e com menor poder aquisitivo precisaram passar menos tempo dentro de casa durante o lockdown. Os resultados foram publicados na revista Annals of the American Association of Geographers (Anais da Associação Americana de Geógrafos).

E dois motivos explicam esse comportamento: quem ganha pouco geralmente não tem dinheiro para ficar em casa, vivendo de reserva financeira. O segundo é que as profissões em que algumas delas atuam não permitem a adoção do home office.

Como funcionou?

O levantamento se propôs a investigar os níveis de adoção pelos cidadãos das medidas de restrição nos Estados Unidos. À época, em março de 2020, as pessoas foram aconselhadas a ficar em casa e as empresas não essenciais fecharam, migrando o trabalho do escritório para a casa dos funcionários.

Os pesquisadores analisaram dados de rastreamento anonimizado de 45 milhões de usuários de telefones celulares no país e calcularam quanto tempo os moradores de cidades como Nova York, Los Angeles, Chicago, Dallas, Houston, Washington D.C., Miami, Filadélfia, Atlanta, Phoenix, Boston e São Francisco passaram em casa no período entre 1 de janeiro de 2020 e 31 de agosto de 2020.

A partir dessas informações, fizeram a comparação com dados demográficos sobre os bairros em que as pessoas viviam, coletados pela The American Community Survey (Pesquisa sobre a Comunidade Americana, em tradução livre), um programa de pesquisa demográfica conduzido pelo Departamento do Censo dos Estados Unidos.

Os resultados revelaram que as pessoas que moram em áreas com uma porcentagem maior de residentes ricos e com nível de renda familiar médio mais elevado tendem a ficar mais tempo em casa seguindo as medidas de restrição do que quem vive em comunidades pobres. Essa descoberta ficou evidente em todas as cidades analisadas pelos pesquisadores.

Outro dado correlacionado com a adoção das medidas é o nível educacional. O estudo registrou que as pessoas que moravam em bairros com uma alta porcentagem de pós-graduados tendiam a ficar mais tempo em casa.

Para Xiao Huang, um dos autores do estudo e professor assistente de Geociências da Universidade de Arkansas, o levantamento mostra o que ele descreveu como "natureza luxuosa" dos pedidos para que as pessoas fiquem em casa, logo que os grupos de baixa renda não contam com essa possibilidade.

"Essa disparidade agrava as questões de desigualdade social de longa data presentes nos Estados Unidos, causando potencialmente uma exposição desigual a um vírus que afeta desproporcionalmente as populações vulneráveis", afirma Huang.

Impacto no Reino Unido

Resultados semelhantes sobre o impacto das medidas em diferentes realidades têm sido colhidos também no Reino Unido.

Dados do Escritório de Estatísticas Nacionais (ONS), que trabalha com informações populacionais, econômicas e sociais, revelam que as pessoas que vivem nos bairros mais carentes têm mais do que o dobro da probabilidade de morrer de covid-19 do que as vivem em vizinhanças mais abastadas.

Entre as razões, está o fato de os trabalhadores de baixa renda normalmente terem empregos que não podem ser feitos a partir de suas casas, o que os coloca em maior exposição e, consequentemente, maior risco de contrair a doença.

Reino Unido em lockdown - Tolgaa Akmen/AFP - Tolgaa Akmen/AFP
Reino Unido em lockdown
Imagem: Tolgaa Akmen/AFP

Contam também para essa realidade no Reino Unido os contratos sem garantia, ou "zero hora", um modelo comum na região em que o empregador não é obrigado a oferecer um número específico de horas ao funcionário. Isso gera mais incertezas para as pessoas, que ficam com receio de perderem as suas posições.

Pesquisas anteriores da SAGE (Grupo de Aconselhamento Científico para Emergências), que assessora o governo central britânico, também mostraram que as pessoas que ganham menos de 20 mil libras anualmente (R$ 143 mil, em cotação atual), ou que têm economias de menos de 100 libras (R$ 714,00), têm três vezes menos probabilidade de adotarem o isolamento.

Os autores do estudo nos Estados Unidos afirmam que é preciso fazer mais ações para a proteção dos grupos vulneráveis. "Devemos enfrentar a desigualdade social sistêmica e exigir uma avaliação de alta prioridade do impacto a longo prazo da covid-19 sobre os grupos geográfica e socialmente desfavorecidos", complementa Xiao Huang.