Topo

Lei da TV paga ficou ultrapassada e deve ser revista, dizem especialistas

Fox tem 30 dias para parar de oferecer conteúdos nos apps - Reprodução
Fox tem 30 dias para parar de oferecer conteúdos nos apps Imagem: Reprodução

Helton Simões Gomes

Do UOL, em São Paulo

21/06/2019 11h44

A disputa entre a Fox e a NET/Claro pela transmissão de canais pela internet escancarou um problema muito maior, que envolve estúdios de Hollywood, emissoras, como Globo e Record, e gigantes das telecomunicações, como Claro e AT&T. O debate é sobre os rumos da TV paga diante do serviço de streaming de vídeo, dizem especialistas ouvidos pelo UOL Tecnologia. Para eles, a lei brasileira foi atropelada por novos modelos (como a Netflix, HBO GO e Amazon Prime) e precisa ser revista.

Nesta semana, a Agência Nacional das Telecomunicações (Anatel) proibiu a Fox de transmitir online a programação de seus 11 canais, depois de receber uma reclamação da NET/Claro, maior operadora do segmento no Brasil.

A Fox tem 30 dias para pôr fim às ofertas, sob pena de R$ 100 mil por dia de descumprimento. A medida é cautelar, a Anatel receberá manifestações de envolvidos para tomar uma decisão definitiva.

O que a Fox faz

Desde agosto de 2018, você pode ver os 11 canais (Fox, Fox Sports, Fox Sports 2, Fox Premium 1 e 2, Fox LifeFX, NatGeo Wild, NatGeo Kids e BabyTV) pela internet, pagando R$ 34,90 ao mês. Dá para assistir séries, programas e filmes quando quiser, mas também dá para ver a programação ao vivo, transmitida pela TV paga.

A HBO, por exemplo, oferece conteúdos da TV paga no HBO Go. A diferença é que o serviço pago da internet não possui uma programação fixa (com grade de horários).

Ao dar ao consumidor o poder de escolher qualquer item em seu catálogo, o serviço de streaming é classificado como Serviço de Valor Agregado (SVA), que não é regulado pela Anatel.

O que a Anatel alega

A Fox não pode mais vender esse pacote por três motivos principais:

  • Dá acesso a conteúdo da TV paga para não assinantes do serviço;
  • Oferece grade de programação e transmissão ao vivo nos moldes do que é oferecido na TV paga;
  • Tem programação que não respeita as cotas de conteúdo nacional.

Para a agência, esses três pontos violam a lei 12.485, de 2011, que regulamentou os Serviços de Acesso Condicionado (SeAC), o nome técnico da TV por assinatura no Brasil.

O que diz a lei

  • Produtoras (que criam os conteúdos) e programadores (os canais) não podem distribuir conteúdo
  • Distribuidoras (que vendem pacotes de TV paga) não podem criar conteúdo ou programações
  • Canal de programação é um "arranjo de conteúdos audiovisuais organizados em sequência linear temporal com horários predeterminados"

Resumindo, a coisa fica assim:

  • A Fox é uma programadora
  • A Claro (do grupo América Móvil, dono de Embratel e NET) é a maior distribuidora --detém quase metade dos 17 milhões de assinantes de TV paga do Brasil

Só que a Fox estaria empacotando os mesmos canais que vende para a Claro e vendendo em seu serviço na internet.

O que incomoda as empresas

Essa não é uma disputa limitada às duas empresas, ressalta Ari Lopes, da consultoria britânica Ovum:

O plano de fundo é o mercado de TV paga sendo ameaçado

A ameaça, você já deve ter adivinhado, é a Netflix, que roubou clientes e minguou a receita da TV paga. Nos últimos anos, o Brasil perdeu cerca de 2 milhões de conexões.

Quando o número de assinantes caiu, os programadores, que faturavam negociando canais com as distribuidoras, viram suas receitas minguar. E, sem receita, não se investe em conteúdos, o que afetou os produtores.

"Há uma grande tendência no mundo todo dos programadores irem diretamente ao mercado, eliminando os intermediários, que são os distribuidores de TV por assinatura. A internet permite isso: você pode ter aplicativos para ver o conteúdo ao vivo ou sob demanda diretamente de quem produz", comenta Renato Pasquini, analista da Frost & Sullivan.

E este era o caminho que a Fox estava trilhando até esbarrar em restrições previstas na lei brasileira.

A tecnologia está disponível. A barreira principal são os contratos que amarram as partes, porque a operadora paga uma nota para esses programadores para ter exclusividade
Renato Pasquini

O que diz quem é contra a decisão da Anatel

Abert e Abratel, associações de emissoras de rádio e TV, que têm ao seu lado os estúdios de cinema e programadores norte-americanos, acusam a Anatel de impor uma reserva de mercado:

"Criou uma autenticação tecnicamente injustificável, que implica em verdadeira reserva de mercado para operadoras de televisão por assinatura serem artificialmente contratadas apenas para validar o acesso dos consumidores a conteúdos na internet."

E de invadir a seara de outra agência:

"A decisão, por fim, extrapola competência, também, ao interferir no livre acesso ao conteúdo online e justificar tal medida como necessária para proteção à produção de conteúdo audiovisual nacional, matéria sabidamente de atribuição da Agência Nacional do Cinema (Ancine)."

Elas informaram que irão recorrer da decisão da Anatel.

O que diz quem é a favor da decisão

A Claro/Net, que tem ao seu lado a NeoTV (associação que reúne programadores brasileiros, que dependem das distribuidoras), acredita que a decisão da Anatel dá maior segurança a quem pretende investir no Brasil:

"Sinaliza o tratamento indicado para todo e qualquer produto disponibilizado por empresa estrangeira ou nacional, que não tenha licença para prestar SeAC."

Não vai resolver assim...

Ainda que esta disputa pontual seja resolvida por uma decisão da Anatel, casos assim devem continuar acontecendo, porque o problema é outro, dizem os especialistas.

"Esse é mais um sintoma de que a lei do SeAC, como foi pensada, estabeleceu uma série de restrições, tanto para produtores quanto para o pessoal de TV por assinatura e das programadoras. Como a conjuntura está mudando por causa do streaming, a lei mostra ter problemas", diz Eduardo Tude, da consultoria Teleco.

A Claro até tem razão, diz Pasquini:

Se você está prestando um serviço de streaming por demanda, é valor adicionado mesmo. Mas, se está colocando uma programação linear e cobrando do usuário, é como uma IPTV. Aí é TV por assinatura e deve seguir as regras da Anatel

No entanto, as restrições de atuação definidas pela nossa lei já estão sendo colocadas à prova por outros movimentos.

É o caso da aquisição da WarnerMedia, antiga Time Warner, pela AT&T, que foi aprovado em junho passado nos Estados Unidos. O negócio colocou dentro do mesmo grupo a Sky (distribuidora de TV paga e de banda larga) e os canais HBO, Cartoon Network, TNT, Warner e outros.

Técnicos da Anatel já avaliaram que viola a lei brasileira e uma saída seria a venda da Sky ou da WarnerMedia no Brasil. A AT&T rebate, ameaçando tirar os canais da TV paga no Brasil.

Ou seja, o país virou uma pedra no meio do caminho dos planos da empresa, que quer lançar um serviço de streaming de vídeo, ao estilo Netflix. Nele, seriam exibidas produções dos diversos canais. O caso ainda está sendo avaliado por Anatel e Ancine.

Isso tudo é reflexo de que precisa rever a legislação. Ela está ficando antiga. A restrição entre conteúdo e infraestrutura não está acontecendo no mundo, onde o que há é uma convergência
Ari Lopes, da Ovum