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Blog do Dunker

Site de checagem de verbas mostra que nossas eleições parecem um condomínio

Símbolo da plataforma 72 Horas - Reprodução
Símbolo da plataforma 72 Horas Imagem: Reprodução

02/10/2020 04h00

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O sistema eleitoral brasileiro é um retrato fiel de como funciona nossa lógica de condomínio. Sua segurança é moderna e renovada pela constituição de 1988. As urnas eletrônicas foram implantadas há décadas. Instituições de monitoramento, como o Tribunal Superior Eleitoral, funcionavam como um síndico eficaz. O regime federativo de representação poderia ser atualizado. O voto distrital ainda aguarda a reforma política.

Nada disso impede que certos partidos funcionem como uma caixa preta, proliferando muros, síndicos e decisões "feitas às pressas", profundamente inconsequentes com os seus próprios eleitores. Isso transparece nas novas regras sobre o dinheiro para campanha eleitoral.

Fruto do trabalho de oito senadoras e seis deputadas federais, foi estabelecido que partidos políticos devem reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), hoje estimado em R$ 2 bilhões, sem contar os repasses do Fundo Partidário (FP) e as doações individuais, para financiar campanhas de candidatas mulheres.

Uma regra tão simples pode se tornar um circuito condominial Kafka, quando o ambiente é povoado pela hipertrofia de regulamentos e condições de aplicação incompreensíveis para o cidadão comum não especializado.

A opacidade em torno de como os partidos funcionam, a instrumentalização de regras, como as que promovem o aumento da proporcionalidade de mulheres e negros, a dificuldade de acompanhar como os fundos eleitoral e partidário são geridos, levam qualquer uma a desistir e afastar-se do campo político.

A situação se torna exasperante quando olhamos para o lado e vemos que os recursos de aprimoramento de processos por meio de plataformas digitais mostram-se quase inertes nesta matéria. Plataformas e apps aparecem na política, via de regra, para denunciar o viés de processos algorítmicos, a manipulações eleitoral, como no caso da Cambridge Analytica. Nos acostumamos a ver desequilíbrios produzidos por robôs, fake news e disparos massivos nas redes sociais.

Mas agora parecem surgir robôs "do bem", ou melhor "a" robô. A plataforma "72 Horas" promete informar, em tempo quase real, o trajeto e a distribuição do dinheiro nas diferentes campanhas eleitorais.

Setenta e duas horas é o tempo que os partidos têm para tornar pública a destinação da verba eleitoral que repassam aos seus candidatos. Isso permitirá que certas distorções possam se tornar visíveis a tempo de gerar consequências para o próprio candidato e seu partido.

O rastreio do dinheiro permite acompanhar, indiretamente o "poder dentro do poder" por meio do qual candidaturas periféricas, negras, mulheres, indígenas e outras minorias estão sendo historicamente sub-subvencionados nas campanhas eleitorais.

Plataforma 72 Horas divulga dados eleitorais - plataforma72horas/Facebook - plataforma72horas/Facebook
Plataforma 72 Horas divulga dados eleitorais
Imagem: plataforma72horas/Facebook

Na eleição de 2016, candidaturas femininas receberam menos dinheiro que candidatos homens [1]. Essa prática redundou em menos de 14% de vereadoras compondo as Câmaras Municipais brasileiras hoje. Uma em quatro cidades não elegeu nenhuma mulher. Das 649 mulheres eleitas em 2016 apenas 10 são negras. Isso é inaceitável.

Como tantas vezes no condomínio Brasil, não bastam regras bem-feitas se sobre elas vigora um sistema de agenciamento e aplicação seletiva de regulamentos.

Essa é a origem da corrupção praticada dentro da lei, que cria um ambiente de compromissos informais e que evolui para práticas como a "rachadinha", criando uma franja de impunidade, causada pela implicação de cada vez mais pessoas no "negócio" do empreitamento da coisa pública.

Um bom exemplo disso são as candidatas laranjas do PSL em Minas Gerais. Várias delas receberam dinheiro, devolveram uma parte, mas ficam com algum. O bastante para exercer um efeito comprometedor que dá cobertura e silenciamento ao esquema.

Na Alemanha, depois do desastre nazista, algumas medidas foram tomadas para que aquilo jamais se repetisse. Entre elas o veto de partidos ou candidaturas que expressem valores segregativos, antidemocráticos ou fascistas. Além disso, criou-se uma verba para os partidos desenvolverem projetos de educação política. Às vezes tais projetos se desenvolvem sob o escopo de fundações ou em colaboração com escolas. Percebe-se assim o sentido exato da Escola sem Partido, como forma de aproximar as pessoas da política real.

Segundo a plataforma 72 Horas, considerando apenas o estado de São Paulo, somente nos últimos 15 dias, R$ 250.920,00 foram repassados para candidatos do gênero masculino, contra apenas R$ 193,62 para mulheres. Isto mesmo: centro e noventa e três reais e sessenta e dois centavos! Considerando o Brasil, nos últimos trinta dias, a diferença é de R$ 1,51 milhão para homens e R$ 880 para mulheres.

A plataforma permite discriminar quanto foi repassado para qual candidato, por município, por estado, por gênero e por raça. Ela é formada e mantida por iniciativa aberta da sociedade civil, sob forma de crowdfunding [clique aqui para ir à pagina do financiamento do projeto]. Vários movimentos que lutam pela paridade de gênero, com 25% de mulheres negras, já nas próximas eleições apoiam a iniciativa. Curvas e comparações podem ser produzidas livremente pelos usuários.

"Siga o dinheiro". Com esta expressão os jornalistas do caso Watergate conseguiram desvendar um escândalo que culminou na saída o presidente Richard Nixon, em agosto de 1974. Ele era acusado de "saber" de operações ilegais realizadas contra a oposição durante a campanha eleitoral de 1972. Ajudados por um informante, conhecido como Garganta Profunda, os repórteres do Washington Post seguiram o conselho que permitiu revelar a trama.

Para a democracia brasileira, para aqueles que dizem que o brasileiro não sabe votar, para aqueles que adoram se esconder e atacar em nome da ignorância, foi dado um prazo para acordar: 72 horas.

REFERÊNCIA

[1] O cenário mudou um pouco a partir de 2018, quando o TSE determinou a aplicação de ao menos 30% do fundo público de financiamento de campanhas em candidaturas femininas: mulheres que disputaram uma vaga na Câmara dos Deputados receberam, em média, 13,6% mais, enquanto homens tiveram uma redução da verba de quase 50%. Informações em "Candidatas recebem mais verba eleitoral após cota, mas partidos descumprem regras", na Folha de S.Paulo, em 3 de julho de 2019